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“Bob”

6 de dezembro de 2016

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Jose-GeraldoBons tempos, aqueles, em que, pouco depois da decolagem, o comandante avisava que em instantes iniciariam o serviço de bordo e lá vinham as comissárias com seus carrinhos frigobar oferecendo sucos em caixinha, café, amendoins, barrinhas de cereais, refrigerante diet, água e, dependendo da duração do voo e do savoir-faire da companhia aérea, uma refeição frugal e vinhos de razoável procedência. Tudo de graça (eu disse “de graça”?). Agora, por decisão de algumas dessas empresas, as comissárias circulam entre os passageiros com aquelas indefectíveis maquininhas de cartões de crédito e cardápios de snacks doces e salgados seguidos dos preços nem sempre compatíveis com a qualidade da comida e folders promocionais de produtos duty free como vinhos, relógios, chaveiros, perfumes, canetas, bolsas e jóias femininas. No jargão dos aeronautas, entramos na era “bob”. “Bob” é uma sigla inventada para “buy on board”, ou “venda a bordo”. A era do lanchinho 0800 está de pouco em pouco chegando ao fim.

Os especialistas concordam que a decisão de suspender o fornecimento gratuito de lanches e de iniciar as vendas a bordo não atingiu nenhum dos seus objetivos imediatos – aumentar a receita das empresas aéreas e enxugar os custos dos voos –, com a agravante de ter criado, sem necessidade, duas “áreas de turbulência” entre passageiros e aeronautas.

A antipatia dos passageiros é compreensível porque estavam acostumados a receber o lanche de graça e qualquer cobrança agora soa atemporal e é naturalmente rejeitada. Ninguém sai da sua zona de conforto sem exigir algo em troca, e o preço, neste caso, pode ser até mesmo optar por outra companhia aérea nos próximos voos. No caso dos empregados das empresas aéreas o preço a pagar pode ser ainda mais salgado. Embora todos os comissários recebam comissões sobre as vendas que fazem, seu mal-estar é mais sério porque está desembocando na Justiça do Trabalho a bordo de processos trabalhistas onde reclamam, particularmente, o reconhecimento judicial de que as comissões têm natureza jurídica de pagamento indireto e, assim, tanto quanto as gorjetas dos restaurantes, devem ser somadas ao valor do salário que recebem como aeronautas para reflexos em todos os demais títulos do contrato de trabalho como FGTS, descanso semanal remunerado, INSS, férias e 13o salário, onerando ainda mais a folha de salários. Além disso, como as vendas são feitas a bordo das aeronaves e obviamente durante a jornada de trabalho no ar, pedem que o juiz fixe, por sentença, uma segunda remuneração para esse trabalho adicional, calculada, em regra, em percentuais que estimam de 30% a 50% do valor do salário de aeronauta e retificação da carteira profissional pela suposta descaracterização do contrato de trabalho.

Não há consenso entre os juízes do trabalho sobre a melhor solução. Para alguns, se os empregados da empresa aérea já recebem comissão sobre as vendas, não há base legal para se fixar uma segunda remuneração e não é caso de se falar em dupla função porque as vendas são feitas na mesma jornada de trabalho e decorrem da atividade principal do aeronauta, que já é remunerada pelo salário principal e pelas comissões sobre as vendas. Mas a integração da média das comissões ao salário para reflexos é necessária porque essa quantia adicional é habitual e faz parte do ganho mensal do empregado. É remuneração como qualquer outra. Não tributá-la implicaria legitimar um ganho “por fora” e autorizar a sonegação do imposto de renda, do FGTS e do INSS. Para outros, a obrigação de vender a bordo desvirtua o contrato de trabalho do aeronauta e apenas a empresa aérea lucra com isso, sendo imprescindível reconhecer a existência de dupla função na mesma jornada de trabalho e fixar uma segunda remuneração para o empregado, sob pena de legitimar o enriquecimento sem causa do patronato.

De certo modo, as duas correntes têm lá um pingo de razão. O contrato de trabalho não tem conteúdo específico e resume uma obrigação de fazer. Segundo o parágrafo único do art.456, da CLT, na falta de prova de que o contrato individual de trabalho permite o desempenho de determinadas funções e proíbe o de outras ou na inexistência de cláusula expressa a esse respeito, entende-se que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal. Numa primeira abordagem, portanto, a venda de lanches a bordo dos aviões seria possível e não modificaria em nada o contrato original de trabalho dos comissários de bordo porque é apenas uma nova faceta de uma tarefa que esses trabalhadores sempre executaram – serviço de bordo –, só que até então sem custo para os passageiros. Não é difícil concluir que o fato de a refeição a bordo passar a ser cobrada, por decisão da empresa, em nada altera a natureza do trabalho do aeronauta porque essa incumbência sobressalente sempre esteve incluída na rotina dos comissários durante os voos. A questão das vendas duty free a bordo exige outra leitura. Não se trata de uma tarefa que os aeronautas sempre fizeram em razão do ofício ou do contrato de trabalho com a empresa aérea nem de um serviço que a companhia habitualmente oferecia aos seus clientes. Mais que isso: ao contrário das refeições, essas vendas não se ligam a uma necessidade fisiológica transitória dos passageiros, que tem de ser satisfeita de alguma forma pela empresa aérea porque o cliente não pode satisfazê-la de outro modo. A venda de produtos a bordo é uma estratégia recente de marketing, idealizada por algumas empresas aéreas, que oferecem a terceiros o espaço interno de suas aeronaves e um público cativo compulsoriamente sujeito à ação dos vendedores. Obviamente, a companhia aérea não faz isso de graça e recebe do fabricante um percentual sobre as vendas feitas aos passageiros. Se ganha com isso, e para realizar essas vendas utiliza o seu próprio pessoal, é justo que os empregados recebam parte dos lucros. Isso já é feito na forma de comissões. Tanto quanto as gorjetas pagas pela clientela aos garçons nos bares e restaurantes, essas comissões, a despeito de não serem consideradas salário em sentido estrito, compõem a remuneração do empregado[1] e têm natureza jurídica de salário, integrando-se ao salário padrão do cargo do aeronauta e refletindo em todos os demais títulos do contrato de trabalho, dos quais, por exigência da lei, os ganhos variáveis fazem parte como um dos itens da remuneração[2].

Resta a outra ponta do problema. Para avaliar se o “bob” modifica para pior o contrato de trabalho do aeronauta e justifica o pedido de pagamento de um segundo salário por cumprimento de dupla função é preciso interpretar o contrato de trabalho como palco de um comércio jurídico entre o dador do trabalho “o empregado – e o tomador – patrão”. Todo contrato de trabalho contém um feixe de atribuições específicas e outras periféricas. As específicas, ou nucleares, dão ao contrato a sua característica principal. Constituem a sua essência, o núcleo da atividade laboral e não podem ser unilateralmente modificadas pelo patrão sob pena de se alterar a própria relação de emprego, com sérias consequências que a própria CLT prevê, dentre essas até mesmo a rescisão indireta por falta grave patronal por descumprimento das obrigações do contrato[3]. Mas, ao lado dessas atribuições ditas nucleares, ou essenciais, existem outras, chamadas acessórias, complementares ou periféricas que decorrem naturalmente da execução desse contrato e se inserem naquele rol elástico de que fala o art.456 da CLT. Como regra, as partes podem dispor livremente das condições de trabalho, desde que respeitada a legislação protetiva do empregado[4]. Em princípio, todas as alterações são permitidas, mas não podem trazer prejuízo imediato ou potencial ao trabalhador[5]. Se o contrato de trabalho não previr quais atividades podem ser exigidas do empregado e quais não podem, a presunção comum é a de que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal. Um exemplo talvez calhe: não se pode exigir de uma babá que lave a piscina e apare a grama do jardim ou leve os cães da família para passear enquanto a criança dorme porque essas atividades são totalmente estranhas àquelas do núcleo do contrato doméstico de babá. Não são acessórias do contrato original, cuja obrigação nuclear é a de zelar pelo filho do senhorio. Uma exigência dessas alteraria substancialmente a essência do contrato de trabalho doméstico e permitiria que essa empregada o rescindisse de modo indireto, por culpa exclusiva do empregador[6]. Mas é perfeitamente possível exigir da babá que, enquanto a criança dorme, arrume o quarto do bebê, guarde os brinquedos espalhados pelo chão, prepare as refeições, o banho, os remédios. Essas funções são periféricas, acessórias das principais e sua exigência não infringe nenhuma regra escrita ou tácita dessa profissão.

No caso dos aeronautas, não há nenhum fundamento jurídico que obrigue a empresa aérea a lhes pagar uma segunda remuneração porque a “bob” já é remunerada por comissões sobre o preço dos produtos e realizada na mesma jornada de trabalho. A venda a bordo é compatível com a condição pessoal dos comissários, pode ser entendida como uma atividade periférica do contrato principal do aeronauta e não modifica a sua estrutura nuclear. Mesmo que, em tese, fosse possível fixar uma segunda remuneração para essa segunda função, não há qualquer fundamento legal que autorize a estipulação, pelo juiz do trabalho, de um percentual sobre a remuneração original do aeronauta. Quando muito, essa “segunda remuneração” poderia ser fixada com base na média física das comissões sobre as vendas a bordo auferidas no último ano de trabalho. Na prática, nem isso, porque os empregados já recebem a remuneração pelo que vendem e o juiz do trabalho não pode administrar salários por sentença. A buy on board, cada dia mais comum nas empresas aéreas, é ainda uma “área de turbulência” na relação de emprego dos aeronautas. Patrões e empregados somente poderão ter alguma segurança jurídica quanto ao destino de suas pretensões em juízo se o “bob” tiver previsão expressa no contrato individual de trabalho ou nas normas coletivas da categoria profissional.

 

Notas______________________
1 CLT, art.457, §1°
2 CLT, art.457.
3 CLT, art. 483.
4 CLT, art.444.
5 CLT, art.468.
6 CLT, art.483, “d”.