Brasil e Espanha debatem instrumento de combate à violência sexual

5 de abril de 2023

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Seminário sobre aplicação do Protocolo de Barcelona no Brasil expõe avanços legislativos na proteção à mulher, mas a  realidade impõe barreiras

A naturalização de práticas delituosas como o assédio e o abuso sexual, o corpo feminino considerado espaço público, a sexualização e objetificação de mulheres e o menosprezo à dignidade feminina no recente caso de importunação sexual ocorrido no reality show Big Brother Brasil são alguns aspectos que evidenciam a cultura do estupro no País. Todas essas formas de violência culminam no episódio envolvendo o jogador de futebol brasileiro Daniel Alves, acusado de estuprar uma jovem numa boate na Espanha em 30 de dezembro do ano passado. Os funcionários da casa noturna atenderam a vítima seguindo o Protocolo da cidade de Barcelona, chamado “No Callen”. Trata-se de um guia de como proceder em situações de violência sexual em espaços privados como bares, restaurantes, casas de show e baladas.

O caso foi determinante para que cerca de 20 iniciativas legislativas inspiradas no Protocolo “No Callen” fossem encampadas no Estado de São Paulo, como a Lei nº 17.621/2023, que obriga bares, restaurantes, casas noturnas e de eventos a adotar medidas de auxílio à mulher que se sinta em situação de risco, e a Lei nº 17.635/2023, que dispõe sobre a capacitação dos funcionários desses estabelecimentos.

Esses assuntos foram debatidos no evento on-line “A experiência do Protocolo de Barcelona no enfrentamento da violência de gênero e a sua aplicação no Brasil”, que procurou encontrar respostas para os desafios na implementação de um programa de atendimento a vítimas de violência sexual no País. Para isso, contou com autoridades do Direito do Brasil e da Espanha, como juízes, promotores e procuradores de Justiça, além de parlamentares e especialistas em igualdade de gênero. Realizado em março, o seminário foi promovido pela Revista Justiça & Cidadania em parceria com o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), pela Escola Superior (ESMP) e pelo Núcleo de Gênero do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais do MPSP.

Avanços legislativos – Mesmo com o Brasil ocupando o quinto lugar no ranking mundial de feminicídios, a Promotora do MPSP Fabíola Sucasas, uma das moderadoras do evento, listou as razões pelas quais acredita que o contexto é favorável em termos de modernização legislativa. “O cenário é promissor para políticas públicas que pretendem desafiar uma ordem de naturalizações e banalizações. Tivemos muitos avanços legislativos como o recrudescimento da pena no caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro, em 2018; a Lei Rose Leonel que trouxe a tipificação de crimes sexuais praticados na Internet; o marco da importunação sexual, a partir de um passageiro que ejaculou em uma mulher num ônibus na Av. Paulista; e o próprio estelionato sentimental que ficou famoso com o documentário “O Golpista do Tinder”. Agora, há o Protocolo “No Callen”, que viralizou no Brasil”, enumerou a promotora – que é autora do e-book “A vida, a saúde e a segurança das mulheres” (2021).

Enquanto o Protocolo de Barcelona não é uma norma jurídica na Espanha e tem aplicação voluntária, em São Paulo já possui regulamentação em vigor por meio das leis estaduais nº 17.621 e nº 17.635, ambas de 2023. A professora de Direito Constitucional da Universidade de Castilla-la Mancha María Ruiz Dorado informou que na cidade catalã a normativa já foi adotada em 39 espaços privados, além de ter sido reproduzida em outras cidades como Madri e Salamanca. Em sua participação ela explicou que o Protocolo está estruturado em cinco princípios básicos: (I) priorização da vítima, (II) respeito a sua autonomia na tomada de decisão, (III) secundarização do processo criminal, (IV) estabelecimento de uma postura de rejeição ao agressor e (V) respeito à privacidade da vítima e à presunção de inocência da pessoa acusada.

O Protocolo recomenda que a vítima não fique sozinha, a não ser que queira. Ela deve receber atenção, informação e o acompanhamento necessários. O funcionário do local deve assegurar que ela possa escolher se quer apoio da polícia ou assistência médica. “Sua capacidade de decisão precisa ser respeitada mesmo que sua escolha nos pareça incompreensível, porque ela pode não querer denunciar. Não devemos coagir, mas apoiar. Afinal, trata-se de uma decisão livre”, ensina a docente.

A Juíza de Direito Titular do I Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) Adriana Mello, autora do livro “Feminicídio – Uma análise sociojurídica” (2020), considera que o Protocolo de Barcelona estabelece uma mudança de paradigma. Por isso alega que será um desafio treinar não só os funcionários dos espaços de lazer, mas também os agentes da Justiça. Outro obstáculo que ela aponta é a violência institucional, para o qual, porém, o Poder Judiciário já conta com a Resolução nº 492 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 17 de março desse ano, que tornou obrigatória a aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em todos os ramos da Justiça.

“O preconceito está em todas as instituições. O Poder Judiciário não é isento de estereotipar as mulheres. As minhas concepções de vida também interferem no ato de julgar. Por isso, o treinamento para juízes deve ser obrigatório, pois se não for, entendemos que não vamos avançar na igualdade material, mas apenas na igualdade substantiva de que homens e mulheres têm direitos iguais”, enfatizou a juíza Adriana Mello.

O silêncio das vítimas – Com mais de 20 anos atuando com vítimas de violência sexual, a Promotora do MPSP Silvia Chakian abordou o silenciamento das agredidas, ponderando que o avanço legislativo precisa caminhar ao lado de discussões sobre julgamento moral e revitimização. Nesse sentido, segundo ela, o Protocolo de Barcelona contribui contemplando a agilidade na coleta de provas e vestígios, questão que também precisa ser observada nos decretos brasileiros, para evitar que se tenha somente a palavra do acusado contra a da vítima.

“O caso Daniel Alves exemplifica o cotidiano das acusações de violência sexual em que autores se beneficiam das dificuldades probatórias que permeiam esse tipo de caso. Então, ocorre um paradoxo na Espanha, mas também no Brasil. Há o avanço legislativo com um protocolo de atendimento e ampliação dos canais de denúncia, mas persiste o descrédito da palavra da vítima que quando não a silencia faz com que ela abra mão de um direito legal como a indenização”, explicou Chakian, referindo-se ao fato da jovem que acusa o jogador ter declarado que não queria compensação financeira.

Da lei para a realidade – Na abertura do seminário, o autor da Lei nº 17.635/2023, Deputado Estadual Thiago Auricchio, dividiu sua expectativa para que a Lei “pegue”. Neste sentido, o Juiz Federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) Hugo Frazão abordou o princípio da internacionalização e do diálogo para que o Protocolo de Barcelona seja eficazmente adaptado à realidade brasileira. Já a Promotora do MPSP Rita Sakai ressaltou os pontos que estão mal especificados em leis municipais inspiradas no Protocolo de Barcelona, o que, pela sua experiência em Guarulhos (SP), podem dificultar a aplicação do instrumento na prática. “Não sabemos como será feita a fiscalização, efetuadas as sanções nem realizada a capacitação dos funcionários dos espaços privados. O treinamento para questões de gênero é muito específico. Também não vi nenhuma audiência pública na qual as entidades de prevenção à violência de gênero possam ser ouvidas”, sinalizou Sakai.

Professora de Direito Constitucional na Universidade de Castilla-la Mancha, na Espanha, María José Majano discorreu sobre um retrocesso denominado por ela de “despropósito legislativo” ocorrido na recente reforma do Código Penal espanhol, que prejudicou as mulheres. A discussão aconteceu no painel “Regulação penal da violência de gênero na Espanha” e apontou para a definição de consentimento, aspecto controverso estipulado pela lei espanhola “Solo si es si” (“Só sim é sim”, em tradução livre). A polêmica também se deu em torno da redução da pena para agressores sexuais.

“O elemento constitutivo do delito de violação ou agressão sexual já não é o uso da força como era antes da reforma, mas centra-se no consentimento, que é um fator subjetivo. A nova definição é problemática e estabelece que a vítima precisa declarar de modo contundente e inequívoco sua vontade de participar da relação sexual para que ela seja lícita e não exista delito”, esclareceu Majano.

Diálogo com setor privado – Diversos aspectos da interlocução com os espaços de lazer, que vão desde a capacitação de funcionários à realização de campanhas preventivas foram abordados em outra mesa pela Procuradora de Justiça aposentada do MPSP Sandra Jardim e pela Vereadora Estadual Cris Monteiro (Novo-SP). Cocriadora de um e-book em parceria com o setor de bares, restaurantes, casas noturnas e estabelecimentos congêneres sobre o enfrentamento à violência contra a mulher nesses locais, Sandra Jardim informou que, nesse momento pós-pandemia, o Estado deve oferecer capacitação aos funcionários. “Não adianta tentar onerar mais o setor. Assim, o Estado consegue que a iniciativa privada caminhe com ele de forma mais eficiente na aplicação do Protocolo”, avaliou a Procuradora.

Autora de um projeto de lei inspirado no “No Callen”, Cris Monteiro pretende envolver o setor com o argumento de que a aplicação de um protocolo de segurança é favorável aos negócios. Ela trouxe dados de uma pesquisa da marca de bebidas Johnnie Walker que revela que 53% das mulheres evitam bares por conta do assédio, enquanto 41% só se sentem seguras na presença de amigos. “Quero que os estabelecimentos adotem por vontade própria e percebam que o negócio irá melhorar, porque a mulher irá escolher o estabelecimento que usa o protocolo”, argumentou a vereadora.

Também participaram do evento o Subprocurador-Geral de Justiça do MPSP, José Carlos Cosenzo, representando o Procurador-Geral; o Diretor do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional da Escola Superior do MPSP, Procurador Paulo Sérgio de Oliveira e Costa; a Promotora de Justiça do MPSP Vanessa Therezinha Sousa de Almeida; a Promotora de Justiça Criminal do MPSP Fabíola Moran; a Promotora de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica em Santo Amaro (SP), Estefania Ferrazzini Paulin, representado a Associação Paulista do Ministério Público Mulher (APMP Mulher); a chefe de gabinete da Secretaria de Estado de Políticas para as Mulheres do Estado de São Paulo, Maria Vasti Costa; a Secretária de Estado de Políticas para Mulheres de São Paulo, Sonaira Fernandes; a fundadora e Diretora da “Livre de Assédio”, Ana Addobbati; e o professor de Direito Constitucional da Universidade de Castilla-la Mancha Francisco Javier Diaz Revorio.