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Breve histórico da Assembleia Nacional Constituinte e a atual Constituição Federal de 1988

5 de dezembro de 2004

Presidente do Conselho Editorial e Consultor da Presidência da CNC

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Escrevo estas linhas sob a responsabilidade de ter sido o Relator-Geral da Assembléia Nacional Constituinte e, portanto, protagonista dos acontecimentos que cercaram o seu desenrolar.

Por isso mesmo, torna-se necessário lembrar o contexto em que foi elaborada a nossa Lei Maior, nos idos de 1987 e 1988. Assim, o primeiro ponto que desejo destacar diz respeito ao perfil do órgão ao qual foi atribuída a feitura do Pacto fundamental. Diversamente do que antes ocorrera, e até em contrariedade ao que desejado por alguns, deliberou-se por partir do nada, para a elaboração de uma Lei Maior. Preferiu-se, a sólida estaca de um Anteprojeto – formulado por um jurista ou uma comissão deles – a abertura da senda constituinte a partir do próprio povo, seus anseios, suas idéias, suas necessidades, suas convicções.

Algumas centenas de brasileiros receberam mandato, neste embutida a representatividade constituinte. E como essa legitimação era haurida e conferida sem limitações, que não as do próprio ato convocatório, decidiu-se pelo mais difícil e mais autêntico: estruturar aos poucos, tijolo sobre tijolo, piso sobre piso, o grande edifício da Constituição. Abriu-se mão da comodidade do pré-moldado e das estruturas pré-fabricadas, em nome da realização da edificação conforme à realidade do Brasil e dos brasileiros.

Uma vez mais estava o Brasil mobilizado para a tarefa de elaborar uma nova Carta Magna. Tratava-se de reordenar democraticamente o país após a ruptura da ordem constitucional, e a importância, para a sociedade brasileira, de uma Constituição democraticamente votada era evidente para todos. Sem ela os valores fundamentais em que se deve basear a sociedade estão permanentemente ameaçados. Uma Constituição deve espelhar o estado atual das relações sociais, mas, ao mesmo tempo, deve servir de instrumento para o progresso social.

Para tanto, elegeu-se um método a ser utilizado pelo Congresso Constituinte que privilegiou a espontaneidade das contribuições ao invés de adotar um texto inicial, como disse antes, a partir do qual trabalharíamos. Era essa metodologia extremamente controvertida, devido as suas características democráticas. Realizou-se amplo levantamento das aspirações nacionais, expressas pelos constituintes e também pelo próprio povo através das emendas populares. Nesse estágio, o objetivo era termos um documento que refletisse a consciência da maioria do povo.

Foi montada uma estrutura composta de subcomissões e comissões temáticas, que dariam uma visão da realidade brasileira que se mostrou específica e necessariamente parcial. Como resultado, temos hoje um documento no qual as diversas partes refletem diferentes posicionamentos ideológicos e, portanto, de difícil articulação numa proposta unificada. Tratou-se porém, apesar das críticas suscitadas, de um trabalho extremamente profícuo, que permitiu que soubéssemos aquilo que setores majoritariamente da sociedade tinham a propor.

Nesses palcos setoriais transcorreu a primeira etapa do grande esforço: justapondo idéias, amalgamando propostas, formulando textos, as subcomissões foram construindo a parte que lhes cabia, da engenharia constituinte. Seus trabalhos não eram um diktat setorial: pelo contrário, eles eram submetidos a intensas discussões entre os constituintes, dissecados em assembléias públicas (com enorme participação popular, diga-se) estudados em cuidadosos pareceres e, afinal, votados, em sessões de grande atividade e mesmo, por vezes, eletrizantes.

Aliás, essa era uma tônica do Congresso, naqueles dias, como até a mídia repetidamente assinalou: os corredores estavam repletos de populares, cidadãos, que circulavam de um gabinete ao outro, de uma comissão a outra, abordando constituintes, convocando-os a ouvirem suas idéias e aspirações, numa sadia prática lobista, bem diversa das que por vezes se registram nesta República. Aliás, essa era a marca daqueles dias: vivia-se uma República, um momento em que a atividade política era res publica, coisa de todos, de todos nós brasileiros. É oportuno, mesmo, evidenciar que a participação da cidadania, aqui relembrada, foi um poderoso vetor de atuação popular, aplacando iras e ressentimentos, transformando-os em energia positiva, construtiva, participativa. E, como tal, a participação em causa foi um valioso instrumento de concretização da transição democrática, delicada etapa de nossa História, ainda inconclusa.

SUMARIAMENTE, CABE DESTACAR:

• A Assembléia Nacional Constituinte teve a sua instalação no dia 1º de fevereiro de 1987.

• A elaboração do Regimento interno no dia 24/03/87.

• O funcionamento das 24 Subcomissões de 07/04/87 a 25/05/87.

• O funcionamento das oito Comissões Temáticas de 26/05/87 a 15/06/87.

• De 17/06/87 a 18/11/87, o funcionamento da Comissão de Sistematização e do Plenário, para discussão e apresentação de emendas. Realizadas 123 reuniões da Comissão. Produzidos cinco textos para discussão, emendas e votação na Comissão. Apresentadas 35.111 emendas, das quais 122 populares.

• De 27/01/88, votação do Projeto em 1º Turno. Apresentadas mais 2.045 emendas (reforma regimental de iniciativa do auto-denominado grupo político “Centrão”).

• Realizada 119 sessões e 732 votações.

• Tempo de trabalho: 476 horas e 32 minutos.

• De 01/07/88 a 02/09/88, votação do Projeto em 2º Turno.

• Apresentadas: 1.834 emendas.

• Realizadas: 38 sessões.

• Tempo de trabalho: 142 horas e 10 minutos.

• De 13/09/88  a  22/09/88, votação da redação final.

• Apresentadas: 833 emendas, com o objetivo de corrigir o texto, sanar omissões, falhas ou contradições. Realizadas todas as oito sessões previstas. Tempo de trabalho: 27 horas e 41 minutos.

• 05/10/88: sessão solene para a promulgação da Nova Constituição.

RESUMO FINAL: ao todo foram realizadas 330 sessões plenárias em 309 dias. As Comissões Temáticas e Subcomissões trabalharam 1.109 horas. A Comissão de Sistematização: 263 horas. O Plenário: 1.304 horas e 16 minutos.

• Total de Emendas: 62.160 – examinadas nas Comissões e Subcomissões: 21.337.

• Por mim, pessoalmente, uma a uma: 40.823 emendas.

Aquele que ler, sem paixão e preconceito, o texto da Constituição de 1988 poderá, descontando os naturais problemas de qualquer obra do homem, asseverar que se trata, sem dúvida, de diploma exemplar, profundamente renovador, à altura dos melhores que o constitucionalismo tem produzido, aí incluídas, as justamente decantadas, Constituições de Espanha e Portugal. Façamos breve ponderação a esse respeito.

O primeiro dado a destacar é de topografia, mas igualmente de conteúdo: o texto se instaura com a indicação dos princípios fundamentais, direitos individuais, garantias fundamentais e direitos sociais. Em vez de clássica exposição vestibular da estrutura do Estado e de seus Poderes, deu-se prevalência ao cidadão e ao trabalho: no dado geográfico, uma eleição ideológica. Esta, verdadeiramente, é uma Constituição cidadã. E o exame sumário de seus Títulos reforça tal convicção. Vejamos alguns reflexos e conseqüências do texto constitucional no Estado Democrático de Direito:

1. a expressa consagração do respeito aos direitos humanos como princípio fundamental;

2. o alargamento das garantias fundamentais, com ênfase para o habeas data, o mandato de injunção, a garantia do devido processo legal, o mandato de segurança coletivo, a imprescritibilidade de certos delitos gravíssimos etc;

3. a consagração constitucional dos direitos fundamentais do trabalhador, com particular referência ao fortalecimento do sindicato e à ampliação do direito de greve;

4. a maior dimensão do sufrágio universal e do direito de votar e de ser votado;

5. a redefinição das competências normativas, conferindo aos Estados e ao Distrito Federal poderes jamais antes concedidos;

6. a atribuição ao  Município de efetivos instrumentos de autonomia;

7. o fortalecimento e aumento de atribuições do Legislativo, que é a casa do povo, deslocando o Executivo da posição majestática, antes detida;

8. os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais conferidas às Comissões Parlamentares de Inquérito;

9. a reformulação da partilha tributária, de sorte a viabilizar a federação;

10. o estabelecimento, pioneiro no patamar da Constituição, de uma clara e ordenada política urbana;

11. o regramento, voltado para os interesses da sociedade, do sistema financeiro nacional;

12. a elaboração, por vez primeira, de uma estrutura integral da seguridade social;

13. a total reformulação da disciplina fundamental da educação e da cultura, assentando a amplitude de seus fins e a generalização de seus beneficiários, priorizando o sistema público como destinatário dos recursos arrecadados da população;

14. os capítulos absolutamente inovadores e exemplares da comunicação social, ciência e tecnologia, desportos; o do meio ambiente, primeira consagração mundial do tema em sede constitucional, com a dignidade de direito público subjetivo, de natureza difusa;

15. o combate sem trégua à corrupção, através do fortalecimento do Ministério Público;

16. a preocupação específica com o idoso, a criança, o adolescente e o índio, todos, enfim, justamente considerados como titulares de atenção especial;

17.  a revalorização da família, com o reconhecimento de seu novo perfil e a abolição das discriminações entre os filhos;

18.  o fim da censura.

REFLEXOS E CRÍTICAS

Não é de hoje que se atribui à Constituição de 1988 ter tornado o país ingovernável. E, de forma mais ácida, que “o único artigo irrecusável da Constituição era o que previa, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a revisão em cinco anos”.

Por oportuno, merece o problema da revisão alguns comentários. Ele surgiu de uma emenda de autoria do deputado Joaquim Beviláqua, com a justificativa de que – imitando, em parte, a Constituição Portuguesa – logo após a promulgação da Constituição, no ano seguinte, teríamos a eleição para Presidente da República, o que aconteceu. Restariam, ainda, três anos para concluir a legislação ordinária e complementar, isto é, quando se efetivasse a revisão as arestas, os senões, as imperfeições, o detalhismo, enfim, qualquer excesso, estariam todos corrigidos e ultrapassados. Infelizmente, as legislações ordinária e complementar não foram realizadas e a revisão não logrou êxito. Como se vê, os Constituintes de 88 tinham a mais absoluta razão de incluir esses cinco anos de decurso de prazo para a revisão.

Quanto a ingovernabilidade é um argumento que não se põe de pé, por algumas razões inarredáveis. A primeira delas é que o Presidente da República à época da promulgação da Constituição era o, atual Senador, José Sarney que concluiu o seu mandato até 15 de março de 1990, data em que assumiu o novo Presidente eleito, Fernando Collor. Este, afastado pelo impeachement teve o restante do seu mandato cumprido pelo Vice, Itamar Franco. A seguir, os oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso e, agora, há quase três anos, o do Presidente Lula.

Ora, se o país fosse ingovernável – só para citar o período Collor – o Vice não teria assumido, como aconteceu com o Vice Pedro Aleixo. Vale dizer: – deve-se à Constituição de 88 a vivência de um período democrático, sem paralelos, no Brasil.

Destarte, debitar-se à Constituição todos os equívocos – como se faz na atualidade – é esquecer o instante histórico em que ela foi elaborada, quando participaram da sua feitura políticos cassados, guerrilheiros, banidos, revanchistas etc. que, sem dúvida, contribuíram para o detalhismo condenável, como se vê nas relações de trabalho e o papel do Estado na economia. Sem contar, à época, com a chamada dicotomia entre os regimes capitalista e comunista.

Por outro lado – e essa é a validade que se tenta esconder – apesar de ser o Brasil uma Federação, as principais decisões sempre foram tomadas pelo Governo Central. Com a Constituição de 88, a Federação ficou restabelecida, inclusive com a possibilidade de o Estado membro legislar concorrentemente sobre um série de matérias e, o que é digno de destaque, dispor de recursos para por em prática sua administração.

Foi com a Constituição de 88 que se deu ênfase a descentralização administrativa, comprovando que o melhor governo é o que governa mais perto do cidadão, o qual poderá reclamar os seus direitos diretamente à Prefeitura ou ao Governo do Estado com a facilidade de que jamais dispôs em Brasília.

Assim é que houve a elevação do percentual de arrecadação dos dois mais produtivos impostos federais: o imposto de renda e o imposto sobre produtos industrializados, destinados a integrar o Fundo de Participação dos Municípios e o Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal.

Para se ter uma idéia do progresso obtido com o aumento desses fundos, basta lembrar que até 1975 somente eram carreados para tais Fundos apenas 10% dos referidos impostos. Eis aí o fortalecimento do Municipalismo e o da Democracia. Ora, o fundo Especial até a Constituição de 88 era de 2% (os IR e IPI). Com a nova Constituição foi aumentado para 3%, com destino específico para os Estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste (art. 159, I, c).

É imperioso registrar que a perda do Poder Central foi POLÍTICO e não ORÇAMENTÁRIO, uma vez que o texto constitucional determinou que a destinação das verbas orçamentárias a que tinham direito os estados a eles fossem repassados diretamente, sem intermediário. Antigamente – e esse ambiente está voltando – os Prefeitos e Governadores vinham ao Poder Central, como se costuma dizer, com “o pires na mão”, ou quando convocados pelo Presidente da República aos quais impunha que orientassem as suas bancadas no sentido de dar apoio ao que desejava o Poder Central.

Repito: – o ambiente está voltando porque o governo anterior carregou nos impostos indiretos e cumulativos como o COFINS, o PIS, a Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL) e o CPMF e não fez o mesmo com os impostos diretos sobre a renda. Isto é: não há repasse para os Estados e Municípios.

MINICOSNTITUINTE OU NOVO PACTO CONSTITUINTE

Já há numerosas declarações sobre a convocação de uma Constituinte restrita ou Miniconstituinte, as quais – com o respeito que os seus defensores merecem – é necessário, senão indispensável, fazer algumas oposições.

Qual a semelhança entre o Brasil de hoje e o de 1964? Vamos retroagir um pouco no tempo. No primeiro semestre de 1964, sob os impulsos de um movimento popular, fruto ou não de equívoco, as Forças Armadas, com o apoio, manipulado ou não, de significativa parcela da classe política (parlamentares, governadores e prefeitos), destituíram o Presidente da República e operaram lesões na ordem político-institucional vigente, através dos chamados atos institucionais.

Após um período de convivência da Constituição de 1946 com os atos institucionais, o Congresso Nacional foi chamado a institucionalizar o quadro jurídico resultante, através da elaboração da nova Constituição, que foi promulgada a 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigor a 15 de março do mesmo ano.

Durou pouco e, no curto espaço de tempo de sua vigência, ouviram-se as primeiras vozes em favor da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, idéia que, informalmente, foi defendida, desde abril de 1964, pelo saudoso Senador da Bahia, Aluísio de Carvalho Filho. A idéia não prosperou, uma vez que a 13 de dezembro de 1968 o estamento militar impôs ao Presidente da República a edição de ato institucional  de nº 5, que promoveu a completa ruptura político-institucional.

Eis aí o motivo forte para a convocação da Assembléia Nacional Constituinte: a completa ruptura político-institucional. E dela decorreram todas as ações políticas que tiveram curso no País.

Como pois, no momento atual – apesar dos problemas econômicos – quem pode negar a existência de um tempo excepcional de liberdade e da plenitude do Estado de Direito?

É o que me leva a adotar opinião contrária ao chamado novo pacto constituinte.

Ademais, a doutrina consiste em ver a Constituição como lei fundamental, onde se resguardam, acima e à margem das lutas de grupos e tendências, alguns poucos princípios básicos, que uma vez incorporados ao seu texto tornam-se indiscutíveis e insuscetíveis de novo acordo e nova decisão. Como não é todos os dias que uma comunidade política adota um novo sistema constitucional ou assume um novo destino, cumpre extrair da Constituição tudo o que permite a sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-lhe o texto, a reboque de interesses meramente circunstanciais.

CONCLUSÃO

Tendo procurado traçar – ainda que com cores esmaecidas – o retrato destes 15 anos da Constituição de 1988 e de seus resultados, bons ou ruins, devo, agora, à guisa de consideração final, registrar que a memória da História presente não permite a quem quer que seja – nem ao mais competente nem ao mais arguto – agredir a verdade, como tentar induzir que esta Constituição de 1988 foi um presente do Governo ou dos Constituintes.

Não e não!

Ela foi conquistada pelo povo que, com bravura, resistindo ou lutando contra o autoritarismo, tornou inevitável o advento da nova e renovadora ordem constitucional.