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Breves notas sobre o atual tratamento jurisprudencial dos delitos de contrabando e descaminho

26 de novembro de 2013

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Antonio-tovo1. Introdução

O delito de contrabando ou descaminhopassa por marchas e contramarchas na jurisprudência brasileira atual. Trata-se de uma prática histórica, fomentada, em parte, pelo complexo arcabouço tributário pátrio e pelos extensos limites fronteiriços.

Não por acaso, o delito de contrabando ou desca­minho mereceu estudos de reconhecidos autores, que delimitaram seus contornos típicos. Dentre os autores mais vetustos, elencam-se VIVEIROS DE CASTRO e PINTO DE ARAÚJO CORRÊA, os quais lecionaram sobre o tema em 1898 e 19072. Mais recentemente, por todos, vale citar Dometila LIMA de Carvalho, monografista da matéria, com Crimes de contrabando e descaminho, publicado no início da década de 803.

Dentre os muitos eixos temáticos que esse delito possibilita, pretende-se pontuar dois, considerada a exígua extensão do presente articulado: (i) natureza fiscal do delito de descaminho/contrabando; e (ii) pluriofensividade do delito.

2. Natureza fiscal do delito de descaminho/contrabando

No que tange à natureza fiscal da figura típica, a discussão pode ser sintetizada em dois questionamentos. O primeiro decorre da indagação: o delito em questão é um crime tributário? O segundo núcleo, caso se responda afirmativamente à pergunta, é: em sendo conferido enquadramento de crime tributário ao contrabando/descaminho, a ele devem ser atribuídas todas as possibili­dades despenalizadoras que possui essa espécie de crimes?

A propósito desse mote, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça já posicionou-se pelo caráter tributário da conduta delitiva em questão. O julgado foi assim ementado:

PENAL – HABEAS CORPUS – DESCAMINHO – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – AUSÊNCIA DE PRÉVIA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO NA ESFERA ADMINISTRATIVA – NATUREZA TRIBUTÁRIA DO DELITO – ORDEM CONCEDIDA. 1. Consoante recente orientação jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal Federal, seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária depende, para sua caracterização, do lançamento definitivo do tributo devido pela autoridade administrativa. 2. O crime de descaminho, por também possuir natureza tributária, eis que tutela, dentre outros bens jurídicos, o erário público, deve seguir a mesma orientação, já que pressupõe a existência de um tributo que o agente logrou êxito em reduzir ou suprimir (iludir). Precedente. 3. Ordem concedida para trancar a ação penal ajuizada contra os pacientes no que tange ao delito de descaminho, suspendendo-se, também, o curso do prazo prescricional. (Superior Tribunal de Justiça, 6a Turma, HC 109205, Rel. Min. Jane Silva, j. 2/10/2008)

Depreende-se do julgado a tendência de, ao entender que o delito de descaminho possui essência eminentemente tributária (em que pese constar no capítulo de crimes contra a administração pública do Código Penal), a ele devem ser aplicadas providências que já são imanentes aos crimes originalmente tributários. Tais consequências em muito defluíram do julgamento do conhecido habeas corpus 81.611 pelo Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence. O consectário mais difundido do referido precedente é de condicionar a persecução criminal ao esgotamento da esfera administrativa-fiscal.

O leading case do HC 81.611 do STF levou à pacificação de outros entendimentos: suspensão da punibilidade pelo parcelamento de tributo, extinção da punibilidade pelo pagamento de tributo entre outros. Assim, embora não se referende a modalidade de solução jurídica dada pela Suprema Corte para os delitos tributários – leia-se o processo administrativo como condição de procedibilidade, não como instrumento a preencher circunstância elementar normativa do tipo – deve-se reconhecer que o julgado promoveu significativo avanço na aplicação do Direito Penal no país4.

Todavia, a extensão automática desses efeitos jurídicos para o delito de descaminho ou contrabando ocasiona problemas de adaptação. Tais problemas, avultados pelas peculiaridades do caso concreto, fazem parecer que órgãos julgadores dos mesmos Tribunais são segmentos da mesma orquestra tocando conforme diferentes partituras. É o que se dessume de recente julgado da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO OR­DINÁRIO. WRIT NÃO CONHECIDO, POR SER ERRÔNEA A IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA EM SUBSTITUIÇÃO À VIA DE IMPUGNAÇÃO CABÍVEL, QUAL SEJA, O RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL. DESCAMINHO. CRIME FORMAL. DESNECESSIDADE DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE FLAGRANTE QUE, EVENTUALMENTE, ENSEJASSE A CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. Na esteira dos precedentes atuais deste Superior Tribunal de Justiça, o writ não pode ser conhecido, por se tratar de errônea impetração originária de habeas corpus em substituição à via de impugnação cabível, qual seja, o recurso ordinário constitucional. Contudo, em respeito ao fato de a impetração ter sido anterior à mudança do referido entendimento, é feita a análise da insurgência, a fim de verificar a eventual possibilidade de concessão da ordem de ofício. 2. O crime de descaminho se perfaz com o ato de iludir o pagamento de imposto devido pela entrada de mercadoria no país. Não é necessária, assim, a apuração administrativo-fiscal do montante que deixou de ser recolhido para a configuração do delito. Trata-se, portanto, de crime formal, e não material, razão pela qual o resultado da conduta delituosa relacionada ao quantum do imposto devido não integra o tipo legal. Precedente da Quinta Turma do STJ e do STF. 3. A norma penal do art. 334 do Código Penal – elencada sob o Título XI: “Dos Crimes Contra a Administração Pública” – visa proteger, em primeiro plano, a integridade do sistema de controle de entrada e saída de mercadorias do país, como importante instrumento de política econômica. O agente que ilude esse controle aduaneiro para importar mercadorias, sem o pagamento dos impostos devidos – estes fixados, afinal, para regular e equilibrar o sistema econômico-financeiro do país – comete o crime de descaminho, independentemente da apuração administrativo-fiscal do valor do imposto so­negado. 4. O bem jurídico protegido pela norma em tela é mais do que o mero valor do imposto. Engloba a própria estabilidade das atividades comerciais dentro do país, refletindo na balança comercial entre o Brasil e outros países. O produto inserido no mercado brasileiro, fruto de descaminho, além de lesar o fisco, enseja o comércio ilegal, concorrendo, de forma desleal, com os produzidos no país, gerando uma série de prejuízos para a atividade empresarial brasileira. 5. Em suma: a configuração do crime de descaminho, por ser formal, independe da apuração administrativo-fiscal do valor do imposto iludido, embora este possa orientar a aplicação do princípio da insignificância quando se tratar de conduta isolada. 6. Habeas corpus não conhecido. (Superior Tribunal de Justiça, Quinta Turma, HC 218.961, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 15/10/2013, grifo nosso)

Não obstante, discorda-se desse entendimento, endossando o escólio de ESTELLITA5. Embora o crime de descaminho e contrabando efetivamente seja de caráter formal, não há como descurar de seu resultado jurídico (supressão de tributo), embora possa prescindir de resultado naturalístico. Assim, não restaria afastada a Súmula Vinculante no 24 do STF, forjada a partir do HC 81.611.

A hipótese deste trabalho é que o descompasso entre os julgados é movido pela dificuldade de tratar com a conduta objeto de exame; embora por momentos seja possível concluir que sua natureza é fiscal, e a ela podem ser aplicados os institutos de suspensão e extinção de punibilidade, assim como os critérios de insignificância utilizados pela autoridade fazendária para propositura de execução fiscal. Cumpre mencionar que não é possível prover a mesma resposta para as duas diferentes rubricas açambarcadas pelo art. 334 do Código Penal. Este é o objeto do próximo tópico, da pluriofensividade do contrabando.

3. Pluriofensividade do contrabando

A questão do bem jurídico é um divisor de águas entre as duas figuras típicas do art. 334 do Código Penal. Enquanto o descaminho pode ser considerado um crime meramente tributário, o mesmo raciocínio não pode ser lançado ao contrabando.

A definição contida na própria norma penal de destinar-se o contrabando à repressão de introdução de produtos proibidos no território brasileiro demonstra que há mais em termo de objetividade jurídica do diploma incriminador que a singela tutela da ordem tributária. Em verdade, quando o legislador incrimina o ingresso do produto proibido no país, não pretende apenas proteger a arrecadação que seria afetada pelo internalização, mas também o thelos da vedação em si do produto.

Aos poucos as Cortes pátrias vêm reconhecendo que o delito de contrabando afeta mais de um bem jurídico. Eis precedente que ilustra tal movimento:

PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO. CIGARROS. CONTRABANDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. CONCURSO DE AGENTES. FRACIONAMENTO DE TRIBUTOS PARA FINS DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE.

1. O Supremo Tribunal Federal pelas suas duas Turmas, recentemente, manifestou-se no sentido de que se a mercadoria importada com tributos iludidos for cigarro estrangeiro ou brasileiro reintroduzido no território nacional, tem-se a figura do contrabando e não descaminho, pois a lesão perpetrada não se restringe ao erário público, mas atinge também outros interesses públicos como a saúde e as atividades econômicas. E, desta forma, é inaplicável o princípio da insignificância, uma vez que não se trata de mera tutela fiscal e a atividade enquadrada neste contexto, em tese, passa a ser típica para efeitos penais.

2. Em caso de delito cometido, em tese, em concurso de agentes, não há falar em fracionamento dos tributos iludidos para a finalidade de aplicação do princípio da bagatela, devendo ser utilizada, para fins de insignificância penal, a somatória dos tributos não recolhidos, nos termos da orientação desta Corte. (Tribunal Regional Federal da 4a Região, Sétima Turma, Apelação criminal no 50026011820104047105, Rel. Luiz Carlos Canalli, j. 29/10/2013, grifo nosso)

Dessume-se do aresto transcrito que, embora haja reconhecimento de outros interesses juridicamente rele­vantes afetados pela prática delitiva, não há uma inclinação, ao menos expressa, para o enquadramento da hipótese fática em modalidades típicas diversas. Talvez, a partir do reconhecimento da afetação de mais de um bem jurídico pela prática do contrabando, fosse possível o reconhecimento do concurso de crimes, em razão da ofensa à, v.g., saúde pública, relações de consumo, livre concorrência, além de administração pública e ordem tributária.

4. Considerações finais

Ao longo do tempo, consolidou-se uma jurisprudência obtusa, que não examina globalmente a problemática do contrabando ou descaminho para além dos delitos desenhados no Código Penal de 1940, o que não tem se mostrado suficiente para reprovação e prevenção da constante prática ilegal. Merece especial atenção o fato de que do processo de limitação jurisprudencial advém uma inequívoca consequência, a ausência de uma análise mais aprofundada das ameaças e/ou lesões a outros relevantes bens jurídicos de dignidade constitucional que, por sua vez, também receberam proteção na órbita penal.

Disso decorrem os reducionismos contingenciais, que acabam mudando conforme os ventos do caso concreto. Propugna-se uma análise segmentada do delito de contrabando, com diversas peculiaridades em relação ao descaminho, tendo em vista a pluriofensividade da espécie, a qual aos poucos vem sendo reconhecida pelos Magistrados.

Talvez assim possam ser realizadas investigações mais detalhadas que levem ao oferecimento de denúncias não apenas pela capitulação tradicional, mas também pelos delitos correlatos. Esse movimento pode provocar uma mudança na construção dos julgados das Cortes Federais, eventualmente suplantando o casuísmo que inquina as decisões da matéria atualmente.

Notas _____________________________________________________________________

1 Prescreve o art. 334 do Código Penal:

Contrabando ou descaminho Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria: Pena – reclusão, de um a quatro anos.”

2 CORRÊA, Alfredo Pinto de Araujo. O contrabando e seu processo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907; Viveiros de Castro, A.O. O contrabando, Rio de Janeiro: Domingos de Magalhães, 1898.

3 Crimes de contrabando e descaminho, 2. ed., SP: RT, 1988.

4 Neste sentido, vide SCHMIDT, Andrei Zenkner. Exclusão da punibilidade em crimes de sonegação fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 119.

5 ESTELLITA, Heloísa. Contrabando e descaminho. in: REALE JR. Direito penal: jurisprudência em debate. v. 4. Rio de Janeiro: GZ, 2013, p. 170.