Edição 195
Breves reflexões sobre o sistema jurídico japonês à luz do Direito comparado
7 de dezembro de 2016
Massami Uyeda Ministro do STJ e membro do Conselho Editorial
Durante as aulas de Direito Romano, em 1962, foi-nos transmitido que o sistema jurídico japonês se classificava como ramo do Direito Romano.
De certa maneira, aquela informação deixou-nos intrigados, pois, jejunos no estudo do Direito, não atinávamos como o Japão poderia ter referido vínculo com Roma antiga.
Ao frequentarmos o curso de pós-graduação, em 1984, na disciplina do Direito Comparado, encontramos a resposta à anterior perplexidade, pelo contato com a lição de René David, exposta em “Major legal systems in the world today” (The Free Press, 1978).
A adoção do Japão ao Direito Continental Europeu, fruto da grande árvore do Direito Romano, ocorreu nos idos de 1870, com o advento do Japão na chamada “Idade das Luzes”, sob o reinado do Imperador Meiji.
Ao assim adotar o modelo continental europeu de Direito, o Japão que, historicamente, sempre se desenvolveu como uma cultura e civilização insular, com suas tradições, seus costumes, seus valores, sua ordem jurídica própria e característica, com um modelo único de governança, “ex-abrupto” adota um sistema jurídico que contrasta com sua história e sua cultura.
E, surpreendentemente, esta radical transformação do modelo clássico, de um momento para outro, sem mesmo um prolongado período de adaptação, é assimilado por todos e passa a ser adotado como uma sequência natural da vida em sociedade.
Mais uma vez, nos deparamos com a perplexidade desta constatação: a da aceitação por toda a sociedade japonesa desta nova ordem jurídica, baseada na existência de normas codificadas, até então inexistentes.
Como explicar, ou melhor, como compreender este fenômeno cultural de significativa e radical transformação?
É de todos conhecido o aforisma que onde há sociedade, há direito. Ou, em sentido contrário, onde há direito, há sociedade: ubi societas, ibi jus e ubi jus, ibi societas, constatação esta que decorre da necessidade de o ser humano depender de seu semelhante para sua sobrevivência.
O paradigma de Robinson Crusoé, a viver só, em uma perdida ilha, não dispensou a convivência com o “Sexta-Feira”, sendo, portanto, a sociabilidade o amálgama que alicerça e une a sociedade.
Mesmo nos mais toscos e incipientes agrupamentos humanos, inexistente regra escrita, há, contudo, normas tácitas de conduta a serem observadas por todos que o integram, que possibilitam a existência do corpo social.
Estas regras de conduta impõem sejam observadas pelos partícipes do grupo, sob pena de instaurar-se o caos, com o esfacelamento e a destruição do núcleo social e, em consequência, a desintegração da sociedade.
Com a evolução social, cada povo, cada nação, passa a ter uma cultura própria e que a distingue dos outros, não se dispensando, entretanto, a observância às regras de conduta.
Em 1971 fomos honrados com o convite de participar do Programa Gaimusho-Kenshusei, sob o patrocínio do Ministério de Negócios Estrangeiros do Japão, cuja finalidade era o de proporcionar conhecimento da sociedade japonesa e, para tanto, durante 60 dias, os participantes do programa assistiram palestras de renomados professores universitários, englobando temas que versavam sobre a formação histórica, sistema político e jurídico, o sistema educacional, a cultura e a arte, o desenvolvimento econômico do Japão.
Estas palestras eram ministradas no período da manhã e no período da tarde, visitas relacionadas com os temas eram realizadas, além de viagens por todo o Japão, de Norte (Hokkaido) ao Sul ( Nagasaki) foram proporcionadas aos bolsistas, como complemento dos objetivos do programa, que era o de fornecer um amplo panorama da cultura japonesa. Assim, tivemos a oportunidade de conhecer a Dieta (o Parlamento); a Suprema Corte; a Corte de Família de Tokyo; o Ministério da Justiça; a Bolsa de Valores; o Ministério dos Negócios Estrangeiros; Estaleiro da Mitsubishi; Fábrica Canon (máquinas e lentes fotográficas); Fábrica de automóveis Mazda; Universidade de Tokyo; Museu de Arte de Tokyo; o Teatro Kabuki; a Escola Urassenki, de Cerimônia do Chá; a Escola Ohara Ryu, de Ikebana; a Cervejaria Sapporo; a Fábrica Noritake de Porcelana; o Templo Shintoista de Ise: o Templo Budista Honganji; a NHK; o Jornal Mainichi; a sede da NRR com o sistema do trem-bala; o Museu Atômico de Hiroshima; a Catedral de Oura de Nossa Senhora do Japão e o Monumento aos Mártires Católicos de Nagasaki; a residência de Madame Butterfly; o Portal de Miyajima; o Centro de Cultivo de Pérolas Mikimoto e muitos outros sítios e locais de profundo interesse cultural.
Esta reminiscência de um precioso e rico estudo que nos foi proporcionado, tem o propósito de rememorar uma palestra na qual, o ilustre palestrante, ao tecer comentário sobre uma característica da cultura japonesa, referiu ser a da aceitação e da conformação dos habitantes do arquipélago japonês com o meio ambiente e social, pois, o país ,embora dotado de magnífica beleza, suporta clima de adversidade extrema, quando do inverno, e de tormentas torrenciais, quando das monções de verão, além de abalos sísmicos frequentes e de tsunamis imprevisíveis, os quais moldaram o comportamento de seus habitantes, desde remotos tempos, ocupando área habitável e agriculturável restrita, em meio a um maciço montanhoso inadequado para a agricultura. E os grupamentos sociais estão estabelecidos há muito tempo, sem perspectiva de mudança de local, dado a que o espaço habitável é restrito. Ou seja, a convivência com o vizinho deve ser a mais harmônica possível.
Assim a capacidade de se adaptar à contingencias e de assegurar condições de sobrevida condigna moldaram e moldam a sociedade japonesa.
II. Valores da cultura japonesa
Este pano de fundo cultural é que pode explicar, então, a capacidade de o povo japonês se adaptar a uma nova ordem das coisas, qual seja a radical transformação de seu sistema jurídico, fundado em um sólido esquema de observância da hierarquia dos papéis sociais, aglutinado por um rígido código de honra e responsabilidade existente em todos os níveis e estamentos sociais, desde a família, a vizinhança, a escola, a profissão, a Administração Pública e, por fim, a figura carismática do Imperador.
Ruth Benedict, antropóloga norte-americana, nos idos de 1944, escreveu, por solicitação do Governo Americano, estudo sobre a cultura japonesa e o comportamento do japonês, para possibilitar a compreensão dos soldados japoneses na 2a Guerra Mundial, uma vez que, em muitos aspectos, condutas e comportamentos dos japoneses eram inexplicáveis para os americanos.
O estudo tem o título “O crisântemo e a espada” e possibilitou uma abertura de visão sobre aspectos da cultura japonesa e do comportamento do japonês, os quais, permaneciam indecifráveis à visão ocidental.
E, entre muitas peculiaridades e características da cultura japonesa, chamou-lhe atenção a da observância rígida da hierarquia, em todos os níveis e em todos os estamentos sociais. E, também, anotou como característica da cultura nipônica, o fato de o japonês preocupar-se com o que os outros poderiam ter a seu respeito.
Ao concluir o estudo, Ruth Benedict recomendou ao Governo Americano que, em caso de eventual rendição do Japão, o Imperador do Japão fosse poupado de ser responsabilizado pela condução do país à guerra, pois sua imagem, sua figura e sua pessoa estariam acima de qualquer julgamento, uma vez que personificava a figura divina e, como tal, o símbolo maior da nação japonesa. E a condenação do maior símbolo nacional poderia ter consequências imprevisíveis.
Esta recomendação, como se sabe, parece ter sido observada, pois, o pós-guerra assim o demonstrou.
A obra de Ruth Benedict ensejou intensos debates acadêmicos, inclusive no Japão, e atualmente é considerado uma referência no estudo da Antropologia, tornando-se um clássico de leitura essencial para se conhecer a alma nipônica.
Além da característica assinalada de observância da hierarquia, a consagrada antropóloga observou, como uma das notas distintivas da cultura japonesa, dois outros aspectos característicos do comportamento e conduta do indivíduo em sociedade, no interagir com seus semelhantes: o comportamento “TATEMAE” (conduta social exteriorizada) e o comportamento “HONNE” (conduta social interiorizada).
O comportamento “TATEMAE” corresponderia a uma conduta polida e reservada, de comedimento e consideração para com o outro. O comportamento “HONNE” corresponderia a uma conduta mais recôndita, mais próxima da autenticidade, reservada para si próprio.
Estes dois aspectos culturais, ao ver de Benedict, seriam expressões da cultura nipônica, que a tornam única, própria, distinta e típica do Japão, posto que, ainda que existentes, também, em outras culturas, não é de emprego tão acentuado como no Japão.
Estas duas características, segundo antropólogos ocidentais, constituem pontos de maior relevo da alma nipônica e, não poucas vezes, são mal interpretadas, como se revelassem um falso comportamento, de hipocrisia e dissimulação.
Contudo, quando se sabe que o ensinamento de Confúcio exerceu forte influência na cultura nipônica e que a observância do “WA”, como equilíbrio e harmonia no comportamento das pessoas, é essencial para o desenvolvimento de uma sociedade, com uma elevada densidade demográfica, em área de proporções limitadas necessárias para a habitabilidade e para a produção agriculturável, assolada por frequentes cataclismos e adversidades da natureza, são balizas que possibilitam compreender ser necessário e essencial o comedimento, a precaução, a prudência no desenvolvimento das relações humanas em sociedade.
O Confucionismo enfatiza a harmonia entre céu e natureza, e a sociedade humana se completa desde que cada pessoa aceite seu papel social, contribuindo para a ordem social com o seu comportamento apropriado e adequado, ou seja, observando-se a sua posição no estamento social.
O aforisma contido no ensinamento “DA XUE” (“O Grande Saber”) de Confúcio expressa: “Pessoas preparadas, Famílias equilibradas. Famílias equilibradas, Estados corretamente governados. Estados bem governados, o Império torna-se tranquilo e feliz”.
Assim, o atuar e agir de uma forma exterior, que não melindre ou cause constrangimento ao próximo (“TATEMAE”) é premissa de observância mandatória para o convívio social. E o agir e atuar conforme seu desejo e impulso interior (“HONNE”) deve ficar reservado para si próprio ou, quando muito, partilhado com alguém muito próximo de seu círculo íntimo.
Estas regras de convivência social ou regras de etiqueta é que possibilitam alcançar-se o “WA”, a harmonia e o equilíbrio.
A formação histórica e cultural do Japão aponta para um passado de mais de 3.00 anos, desenvolvida de forma marcadamente insular, com aproximação cultural com a China, passando pela Península da Coréia.
E por cultura, no conceito dado pelo antropólogo Kluckhohn, deve-se entender “a cultura é o modo de pensar, de sentir e de reagir de um grupo humano, sobretudo recebida e transmitida pelos símbolos, e que representa sua identidade específica: ela inclui os objetos concretos produzidos pelo grupo. O coração da cultura é constituído de ideias tradicionais e de valores que estão ligados”.
Com seus usos e costumes, os “MORES” a que aludiam os antigos romanos, próprios e únicos, o Japão sempre se manteve isolado e, para os estrangeiros, estava coberto por um véu de mistério e lendas, e, dentre elas, a de que havia um palácio inteiramente revestido de ouro, a despertar sonhos de conquistas nos outros povos (certamente, este relato não estava muito distante da realidade, pois o Palácio Kikankuji, em Kyoto, de fato, é conhecido ainda hoje como “Pavilhão Dourado”).
Mas, mesmo o temido Gengis-Khan, ao tempo da expansão de seu Império Mongol, não logrou conquistar o Japão, em razão dos ciclones decorrentes das monções, os quais fizeram soçobrar sua esquadra naval e fez crescer o conceito da invencibilidade do povo japonês, protegido dos Deuses, pois socorrido pelo vento divino (“kamikaze”) que impediu o ataque inimigo.
O contato com o Ocidente só veio a ocorrer por ocasião do Circuito das Grandes Navegações, encetado por Portugal e Espanha.
A chegada das naus portuguesas ao Japão, nos idos de 1500, trouxe consigo a expansão do Catolicismo, com marcante atuação da Companhia de Jesus, com o objetivo da catequização dos assim chamados povos gentios, por não professarem o Catolicismo, tal como ocorreu no Brasil, que, descoberto pela expedição de Pedro Alvares Cabral, expandiu a religião cristã entre os índios, como dão conta a atuação de Anchieta e Nóbrega, na Capitania de São Vicente e nas terras de Piratininga.
A moral cristã, como substrato da solidariedade, do amor ao próximo, exalta a igualdade e a fraternidade entre as pessoas. Esta concepção, contudo, confrontava os rígidos padrões de hierarquia, sobre os quais se edificava a sociedade japonesa. E este choque cultural, de certa forma, interferia com os interesses do Shogunato, o centro do poder político e administrativo, que, até mesmo, vislumbrava lampejos de incitamento à subversão.
Como se colhe de uma pesquisa na Wikipedia, o conceito de hierarquia, no Japão, como característica cultural, é natural: ”Diferença de “status” familiar define de perto toda conduta social. Idade ou idade provecta, gênero, nível educacional, filiação em organizações, e personalidade são referências comuns e que acentuam as distinções a serem observadas como guias para a interação social….O termo hierarquia implica em um elenco de papéis e um rígido conjunto de regras, e, no Japão isto é partilhado por todos, independentemente da burocracia. O sentido de obediência à hierarquia espraia-se por toda a sociedade, de variadas maneiras, de modo difuso” (in Wikipedia, the Free Encyclopedia – Japanese Values).
Uma das razões determinantes, entre outras, para a expulsão dos portugueses no Japão, assim decidida por Tokugawa, por volta de 1630, decorreu do entrechoque entre o princípio da igualdade e fraternidade, “leit-motiv” do cristianismo, e a rígida e milenar hierarquia nipônica, na qual a distinção de classes sociais é nítida e acentuada.
Com a expulsão dos portugueses e dos missionários jesuítas, o Catolicismo foi banido do Japão e, como testemunha desta proibição, os 26 Mártires do Japão, assim considerados pela Igreja Católica Romana, foram crucificados em Nagasaki, cuja memória é cultuada na Catedral de Nossa Senhora de Oura, a Nossa Senhora do Japão.
Entre estes mártires, citam-se São Francisco Xavier e São Gonçalo.
Política e economicamente, a expulsão dos portugueses do Japão, no século XVII, acarretou o fechamento do Japão aos demais estrangeiros.
Este isolamento do Japão aos demais países persistiu por cerca de 250 anos e só veio de ser rompido em 1853, com a chegada do Almirante Matthew Perry, da Marinha dos Estados Unidos da América do Norte, que, representando aquele país, procurava estabelecer contato comercial com o Japão.
Às tratativas iniciais de Perry não foram de pronto, objetivamente, respondidas, permanecendo as autoridades japonesas reticentes, sem dar-lhe uma resposta clara, positiva ou não, da aceitação dos termos de sua proposta.
Esta forma de se conduzir dos japoneses, longe de ser um comportamento de indiferença ou de não se dar ao interlocutor a necessária e adequada atenção, configurava a manifestação de sua perfeita consonância e adequação aos institutos do “TATEMAE” e do “HONNE”, aspectos proeminentes da cultura nipônica, os quais, repise-se, são inerentes no comportamento social cotidiano, não significando falsidade ou dissimulação no trato com o semelhante, mas, sim, uma forma de preservar a harmonia, como forma de evitar rusgas e discrepâncias.
Não tendo obtido uma resposta direta a sua pretensão, vista sob a lente da objetividade americana, entendendo tratar-se a reticente postura dos japoneses como um ultraje, o Comodoro Perry deu uma demonstração de força bélica, ao efetuar salva de tiros de canhoneira que atingiu e destruiu uma aldeia de pescadores, previamente desocupada, na Baia de Uraga.
Este ato precipitou a abertura dos portos japoneses aos ocidentais e, em consequência, relações comerciais foram estabelecidas.
O Japão, até então, por não possuir um ordenamento jurídico codificado, ao assim contratar com os estrangeiros tinha de submeter-se ao direito do estrangeiro contratante.
Segundo o ensinamento de René David, contido em “Major Legal Systems in the World Today” (Free Press, 2nd Ed.pag.492) a primeira baliza legal no Japão aparece na Era Taika, tendo início em 646 A.D., com um sistema regulatório baseado no modelo regulatório chinês, denominado “RITSU-RYO”, o qual distribuía atribuições devidas a cada qual dos membros da sociedade, em seus devidos estratos sociais.
O sistema “RITSU-RYO” dispunha principalmente sobre uma série de proibições (“RITSU”) e de regras concernentes à Administração (“RYO”).
Esta estrutura regulatória, em sua essência, estava assentada nos princípios de observância da hierarquia e, como assinala René David (op.cit. pag.495), efetivamente, não se podia dizer que havia um sistema escrito de leis, senão que havia apenas instruções escritas dadas por superiores a inferiores. Assinala, ainda, que qualquer ideia de direito ou reivindicação de algum direito, de modo geral, estava ausente com respeito a pessoas pertencentes a diferentes classes sociais, o mesmo ocorrendo entre aqueles situados na mesma classe social.
Na realidade, o plexo de regras de comportamento era representado pelo conceito “GIRI”, como conjunto de deveres e obrigações, derivado do ensinamento de Confúcio, que permeava todos os estamentos da sociedade japonesa. Assim, há o “GIRI” de pai e filho; o “GIRI” de marido e mulher, bem como o “GIRI” entre tio e sobrinho, ou mesmo de irmãos entre eles mesmos e, fora da família, há o “GIRI” do senhor de terras e o lavrador, o senhorio e o inquilino, o mercador e o consumidor, o empregador e o empregado e, assim, sucessivamente, onde houver relação humana.
Segundo Jouon des Longrais, “A Ásia de Confúcio preferiu o ideal de uma relação filial baseada em cuidadosa proteção e respeitosa subordinação do que em uma relação de igualdade”( in René David, op. Cit. Pag.495).
O “GIRI”, assim, substituiu a lei e, até mesmo, a moral.
O “GIRI” era espontaneamente observado não muito por corresponder a série de valores morais ou estritos deveres, mas, sim, devido a uma consequente reprovação social decorrente de sua não observância.
A inobservância do “GIRI” poderia ser uma fonte de vergonha, uma perda de identidade, por quem não a cumprisse. Daí, a razão pela qual, embora sob a ótica da cultura ocidental parecesse inadequada, inútil ou mesmo ofensivo, o “GIRI representava verdadeiro código de honra.
Este sutil painel, mostrando um peculiar e único fio que tece a conduta social japonesa, a fim de alcançar-se o desenvolvimento harmonioso da vida em sociedade, era o que se exibia aos olhos atônitos do Comandante Perry.
III. A era Meiji: ocidentalização do direito japonês
O regime feudal vigente no Japão findou-se com o advento da Era Meiji em 1868, quando o Imperador Mutsuhito, então com 16 anos de idade, ascendeu ao Trono Imperial do Japão e deu início ao Período Meiji (1868 a 1912).
Neste Período, também conhecido como a “Era das Luzes” o Japão passou por profundas mudanças, com a visível substituição de todas as antigas estruturas as quais deram origem a uma sociedade inteiramente remodelada.
Um Estado Democrático nos moldes ocidentais substituiu o antigo Estado Feudal e um extraordinário desenvolvimento colocou o Japão na vanguarda do cenário internacional.
O progresso e o desenvolvimento do Japão se fez sentir em, praticamente, todas as áreas, na indústria, na economia, no sistema educacional, com a criação de universidades, no campo militar, na ciência, na tecnologia, em razão da palavra de ordem dada pelo Imperador Meiji de que urgia enviar japoneses para cursar universidades europeias e, assim assimilar tanto quanto possível a cultura do Ocidente.
Na área do Direito, contudo, é que se pode observar a extraordinária mudança do referencial normativo que, de um direito baseado em um sofisticado e sutil sistema de regramento baseado em valores de honra e lealdade, “GIRI”, passou a ser positivado em norma escrita.
Como assinala René Davi “o processo de ocidentalização do direito foi decidido já no início da Era Meiji para fazer cessar a vigência de desiguais tratados impostos em 1858 por diversas nações ocidentais (Estados Unidos, Reino Unido, Rússia, França e Holanda) que o Japão considerava como uma humilhação nacional” (op.cit.pag.496).
A rápida modernização do Direito Japonês derivou da adaptação de uma série de leis baseadas no Direito Comum Europeu.
No início de 1869 a versão do Código Civil Frances foi iniciada e completada no prazo de 5 anos, a despeito de todas as dificuldades envolvidas, em razão da ausência de juristas que estivessem familiarizados à dogmática jurídica francesa.
Novos termos tinham de ser encontrados para expressar elementares noções de “direito” (“direito subjetivo”), o qual passou a ser conhecido como “KENRI” e a de “dever legal” (“obrigação jurídica”) passou a ser considerado como “GIMU”, os quais, até então, eram totalmente estranhos ao pensamento japonês.
Assim, a ajuda e contribuição de juristas europeus, capitaneados por Gustave Boissonade, uma série de códigos foi, a partir de 1872, promulgada.
Em 1882 O Código Penal e o Código de Processo Penal, ambos baseados no modelo francês, foram promulgados. E em 1890 foram editadas a Lei de Organização Judiciária e o Código de Processo Civil, agora sob a influência do Direito Alemão.
René Davi anota que o Código Civil Boissanade, de 1873, enfrentou séries dificuldades, notadamente no campo dos direitos da pessoa e das sucessões e, em 1898, o Código Civil Japonês foi adaptado, sob sensível influência do Código Civil Alemão.
Em 1890, foi promulgado o Código Comercial Japonês, também, sob a influência do Direito Alemão.
Paralelamente, no campo do Direito Público, o Japão experimentou uma completa reforma de suas instituições públicas nacionais.
Com a promulgação da lei que possibilitou a venda de terras, em 1872, a agricultura foi liberada.
A estrutura e organização estatal foi modernizada com a adoção de uma nova divisão do país em departamentos (“KEN”), em 1890 e por uma série de leis que criaram as municipalidades(1888).
Este panorama legal, contudo, sofreu uma transformação após 1945.
IV. O pós-guerra (1945) e a ocidentalização do Japão
Muito embora o tradicional Direito Japonês, baseado no conceito do “GIRI, fator cultural de observância arraigada na alma japonesa, com a prevalência dos graus de hierarquia e da preservação da honra e do nome familiar, permeando todos os níveis e estamentos sociais, tenha, aparentemente, sido afastado pelo advento do Direito positivado em norma escrita, contido nos diversos Códigos que foram promulgados durante o Período MEIJI, com acentuada influência do Direito Continental Europeu, na realidade, os usos e costumes tradicionais e a influência do “GIRI” continuavam a ser observados pelos japoneses, até o final da 2a Guerra Mundial.
A derrota militar e a rendição incondicional do Japão, com a ocupação do Japão pelos Estados Unidos, em 1945, deram lugar a profundas reformas na sociedade japonesa e o espírito de democratização que as caracterizou decorreram de inspiração mais americana que japonesa, propriamente.
Estas reformas foram influenciadas pelo Direito Anglo-Americano (“Common Law”), algumas vezes em competição com a influência Romanística, mas, conquanto a mudança tenha ocorrido formalmente, nem por isso, extirparam os usos e costumes tradicionalmente aceitos, os “MORES” do povo japonês.
Em arguta observação Rene Davi assinala que “sob a fachada da ocidentalização do Japão, uma questão que permanece em aberto é saber se esta mudança realmente representou uma significativa transformação e se a ideia de justiça e direito como concebidas no Ocidente tenha sido assimilada” (op. cit. pag.498).
Isto porque, prossegue o arauto do Direito Comparado, “é verdade que os” MORES” (usos e costumes) japoneses estão se transformando, e estão sendo, mais e mais, aceitos, especialmente na sociedade urbana e entre membros das gerações mais jovens, os quais presuntivamente acolhem a nova ordem legal”, mas, como acentua, “sob todos os pontos de vista a sociedade Japonesa ainda difere da sociedade Ocidental. Os antigos hábitos e o modo de pensar estão ainda muito vivos entre a maioria dos japoneses…o ideal de Confúcio da ordem hierárquica baseada na ordem natural está muito viva. Assim as estruturas sociais e a atmosfera de liberdade subjacentes nas leis ocidentais estão presentes somente em mínimo grau no Japão. As leis do Ocidente foram feitas para um ambiente racionalista e seus conceitos abstratos são resultados de uma visão Cartesiana”.
No Japão, assinala Rene David, “a aplicação da lei moderna vai em sentido contrário ao sentimentalismo místico e poético da alma japonesa do que o espírito lógico contido na norma do Ocidente, com o que se explica a histórica indiferença japonesa em relação aos ideais da liberdade e dignidade tão caras ao Ocidente” (op. cit. pag.489).
Segundo ainda o Professor Rene David, tanto na área do Direito Público quanto na área do Direito Privado, a modernização do padrão legislativo, ocorrida após 1946, embora do ponto de vista formal tenha acarretado uma profunda transformação, o povo japonês ainda não se deu conta de que são senhores de seus próprios destinos, a ponto de o Professor Oka, citado por ele, não hesitar em falar que o “aparente constitucionalismo” caracteriza a ordem política japonesa.
Para o povo japonês, segundo Rene David, a lei, como um conceito, ainda está associada à punição e prisão, e, no imaginário popular, pessoas de bem não se envolvem com a lei.
Daí que ter de comparecer a uma corte judicial, mesmo em se tratando de uma questão civil ou particular, representa uma fonte de vergonha; e o receio da vergonha – a perda de seu respeito pessoal – mais do que qualquer fundamento ético ou moral que possa ter o direito a ser defendido, é o motivo determinante para que se invoque a proteção legal o menos possível.
Nestas observações verifica-se a poderosa influência do “MORES” tradicional, qual seja a de se buscar a harmonia (“WA”), sem estrépitos ou ruídos, mantendo-se as aparências sociais, com a observância dos preceitos do “TATEMAE” e do “HONNE”, de molde a que o código maior de conduta e honra (“GIRI”) seja preservado.
Estas observações de Rene David encontraram ressonância no pensamento de José Crettela Junior, Professor Titular de Direito Administrativo da USP, quando, sendo nosso Orientador no Curso de Pós-Graduação, na regência da disciplina Direito Administrativo Comparado, em 1984, afirmava que no Japão não se fazia necessária uma lei escrita, pois o milenar sistema de obrigações e direitos, contidos no “GIRI”, abarca e encerra todo o plexo de responsabilidade de viver-se em comunidade.
V. Da importância da conciliação no Japão
Dentro deste cenário cultural, a importância da conciliação, como forma de resolução de conflitos de interesses, tem acentuado papel na sociedade japonesa.
Como assinalado anteriormente, o tão só fato de se buscar a solução de um conflito de interesses pela via de uma intervenção judicial, em si, é um sinal de um distúrbio social e isto deve ser evitado.
O desate de uma divergência, antes, deve ser buscado na via conciliatória.
Assim, contempla-se no Japão o instituto do ”JIDAN” que, na tradição ocidental, corresponderia a um procedimento preliminar, anterior ao acesso judiciário.
Nesta fase, as partes procuram um agente administrativo e este envida esforços para obter uma decisão conciliatória.
Não obtida a conciliação, as partes estão autorizadas a propor a medida judicial.
Mas, mesmo nesta instância judicial, sempre há uma preocupação do Juiz de buscar obter uma decisão conciliatória. Nesta fase do procedimento judicial, a conciliação é assumida pelo Juiz e este proceder denomina-se “WAKAI”.
No âmbito de uma ação judicial, as partes podem, ainda mesmo que esteja buscando o provimento jurisdicional, optar por solicitar à Corte que indique um painel de conciliadores, que dará uma decisão baseada na equidade.
Este procedimento tem o nome de “CHOTEI” e, geralmente, é o painel composto por dois conciliadores e o Juiz do processo, muito embora, a atuação do Juiz deva ser mais discreta, de modo não proeminente, para que não transpareça ter sido a demanda solucionada em decorrência da intervenção judicial.
Como anota Rene David “ as partes litigantes em um processo perante a Corte, muitas vezes, com um olho em sua reputação, preferem, antes mesmo que buscar obter uma sentença judicial, moldar-se ao procedimento do “CHOTEI”.
Disputas decorrentes do Direito de Família e do Direito do Trabalho, caso sejam levados à Corte, devem obedecer ao procedimento “CHOTEI”.
No tocante à arbitragem (“CHUSAI”) a postura da cultura japonesa desencoraja sua utilização, no sentido próprio do termo.
Isto porque considera-se inapropriado possa um contrato conter cláusula que disponha dever as partes contratantes buscar a arbitragem como forma de resolução de conflitos, estando subjacente a ideia de um incentivo para fomentar-se antecipadamente uma disputa.
As divergências que venham a ocorrer no cumprimento contratual, caso ocorram, devem ser solucionadas por meio de um acordo pontual, baseado na boa vontade das partes contratantes.
Assim, a arbitragem tem sido mais utilizada em contratos envolvendo comércio exterior. No tocante aos contratos de negócios internos, geralmente há cláusula dispondo que as partes buscarão a solução por meio de reconciliação.
VI. O direito japonês e o direito brasileiro
O Direito Comparado não é ramo da ciência jurídica como poderia levar a crer a expressão, aliás, infeliz que o designa, assim prelecionava Cretella Junior (in Direito Administrativo Comparado, Ed. Forense, 4a ed., pag.IX, Apresentação).
Trata-se, na realidade, de um método comparativo por meio do qual, ao se estudar os direitos de diferentes povos, objetiva-se buscar contribuições para melhorar o próprio direito nacional, pela observação do que ocorre em outros sistemas jurídicos, e, também, para esclarecer pontos duvidosos dos institutos dos vários sistemas jurídicos.
É de fundamental importância em nossa época o estudo do Direito Comparado, como assinalava Cretella Junior e, ao assim lecionar, trazia à colação a lição de René David:
“No mundo moderno atual, é dever imperioso, para todo aquele que pretende constituir uma elite, fazer um esforço para conhecer os países estrangeiros, compreender sua a maneira de ver e não julgar-lhes as instituições, a política ou a moral à luz das próprias concepções e preconceitos. As circunstâncias atuais exigem imperiosamente um grande esforço de compreensão por parte de todos e, especialmente, por parte daqueles que podem ser chamados a dirigir a opinião do próprio país em que vivem. O estudo dos direitos estrangeiros é para o jurista um meio de desincumbir-se desta missão e de adquirir o espírito internacional necessário do mundo novo” (in Traité élémentaire de droit civil compare´, 1950, pag.II, Prólogo).
O instituto do “JIDAN” como preliminar procedimento de conciliação, para dirimir conflitos de interesses, e sem que se o observe, impede-se a busca pela via jurisdicional, inspirou a promulgação da Lei dos Juizados de Pequenas Causas (Lei no. 7.244/84) e, que, posteriormente, desaguou no Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei no.9.099/95).
Esta assimilação do instituto do “JIDAN” pela legislação brasileira, pode-se dizer, sem sombra de dúvida, como resultante do estudo Direito Comparado.
Por termos sido agraciados com a Bolsa do Programa Gaimucho-Kenshusei, em 1971, e, por termos tido a oportunidade de conhecer o funcionamento do “JIDAN”, no Japão, aderimos, em primeira hora, ao Projeto Piloto do Juizado Informal de Pequenas Causas, implantado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e, tivemos a oportunidade de galgar todos os graus da carreira, se assim se pode chamar, do Juizado Informal e, posteriormente, do Juizado de Pequenas Causas em São Paulo, desempenhando as funções de Juiz Adjunto, Juiz Auxiliar, Juiz Efetivo, Juiz Membro da Junta Recursal e Juiz Presidente da Junta Recursal de Pequenas Causas de São Paulo.
Estas atividades eram desenvolvidas, à noite, após o encerramento das atividades jurisdicionais e, por sem dúvida, apresentaram resultados satisfatórios, além de possibilitar um sentimento de preenchimento de solidariedade social em todos aqueles voluntários que se dispunham a prestar aquele serviço.
A conciliação, como forma de resolução amigável de conflitos de interesses, tem se apresentado como instrumento de relevante importância para a pacificação social, tanto que, no âmbito do processo civil, sua observância é mandatória, como consta dos parágrafos 2o e 3o, do artigo 3o. Do Código de Processo Civil (Lei no.13.105, de 16 de março de 2015), “in verbis”:
Art. 3o – Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§2o O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
§3o A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
O Código de Processo Civil, em seu artigo 139, inciso V, determina que o juiz, ao dirigir o processo, deve promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais.
Ainda, dado o relevo da conciliação como forma de solução de conflitos de interesse, o Código de Processo Civil, em seu artigo 359, determina que o juiz, instalada a audiência de instrução e julgamento tentará conciliar as partes, independentemente do emprego anterior de outros métodos de solução consensual de conflitos, como a mediação e arbitragem.
Já está sendo incorporado como prática habitual a instituição da Semana Nacional da Conciliação, por iniciativa do Conselho Nacional de Justiça.
Nesta ocasião, mutirões de conciliação são realizados, englobando processos judiciais em andamento e mesmos os potenciais conflitos de interesse que poderiam ser levados ao Poder Judiciário.
A prática desta atividade tem apresentado resultados proveitosos e elevados e tem servido de fomento à adoção da conciliação, como meio de alcançar a pacificação social.
Os Cursos de Direito já estão adotando em seus currículos e grades escolares a Disciplina dos Meios Alternativos de Resolução de Conflitos, com destaque para a conciliação.
Felizmente, está ocorrendo uma mudança cultural em relação à solução de conflitos, substituindo-se a cultura do litígio, peculiar ao processo judicial, e a cultura da conciliação, lastreado no diálogo e no entendimento, com o estabelecimento de concessões mútuas.
Aliás, a harmonia e a conciliação já eram assim recomendadas nas Escrituras Sagradas, quando ali se pontua “antes de consagrares meu Altar, reconcilia-te com teu irmão”.
VII. Conclusão
estas breves reflexões permitem dizer que, a despeito de diferenças de latitude e longitude, “o ser humano almeja a felicidade”.
E a obtenção da almejada felicidade há de passar pelo necessário convívio social, dado o instinto gregário do ser humano.
A vida comunitária, contudo, para que se desenvolva com equilíbrio e harmonia há de pautar-se por regras de conduta, sejam elas tácitas, costumeiras ou escritas.
Civilizações antigas e com uma milenar cultura assentada em sólidas tradições sobreviveram e sobrevivem às mudanças temporais e, apesar da aparente modernização de seus costumes, mantem acesas as chamas da tradição ancestral, como ocorre no Japão.
A busca pelo “WA”, como fórmula de harmonia e equilíbrio, lastreadas pelos institutos do “TATEMAE” e do “HONNE”, tão caras ao sentimento e à cultura japonesa, embora possam parecer incompreensíveis à cultura ocidental, na realidade, são os fundamentos que proporcionam um viver em sociedade tanto mais harmônico quanto possível. E longe de parecerem práticas dissimulatórias, na realidade, são produtos de uma prudente e equilibrada sabedoria, que preconiza residir a virtude no meio, sem excessos, sem estrépitos ou ruídos, mas, natural, como o fluir de um regato ou como o arfar de uma brisa.
Ao ansiar pela Shambala de nossa utopia, com os botões, perguntamo-nos se, de fato, também poderíamos atingir um estágio de perfeição, no qual, irmanados no ideal de uma autentica fraternidade, encontraríamos a harmonia e o equilíbrio, numa sociedade em que o viver honestamente, não prejudicar a outrem e dar a cada um o que é seu, seria tão natural quanto respirar.