Bruno X Flamengo – A rescisão contratual

30 de setembro de 2010

Compartilhe:

Enquanto escrevo estas linhas, florestas estão sendo derrubadas para suprir a imprensa de papel bastante para escrever a história de Bruno — o goleiro campeão que se tornou, ao que tudo indica, o algoz de Eliza Samúdio.
Nascido e crescido em comunidades carentes, Bruno galgou fama e fortuna pelo próprio esforço e pela genialidade demonstrada em partidas de futebol, nas quais dilacerava o coração da torcida adversária, bloqueando a passagem da bola, impedindo o balançar da rede, para alegria dos corações rubronegros.
Impedir que a bola adentrasse o gol — sua área de atuação e domínio — era sua determinação em campo, o que fazia com garra, técnica, coragem, força física e inteligência.
Ao que revelam os indícios divulgados pela imprensa, com a mesma determinação e ousadia, Bruno pretendia impedir que Eliza adentrasse sua área de atuação e, para tanto, não só usou de força, coragem e determinação, mas ultrapassou todos os limites e violou as mais básicas regras da convivência humana.
Diuturnamente os meios de comunicação narram os mais sórdidos detalhes dos supostos desmandos de Bruno, na tentativa de impedir que Eliza marcasse um gol, ou seja, que ela entrasse sua área de atuação, sua vida privada, seu coração.
Tendo driblado a tática do goleiro, Eliza teria marcado um gol ao conceber um filho seu. Não contava, porém, que Bruno, como árbitro da própria partida, quisesse não só anulá-lo, mas também expulsar de campo tão insolente criatura.
Mas, parodiando o cineasta Cacá Diegues, “o futebol é o esporte que mais se parece com a vida, o único em que você pode fazer um gol contra seu próprio time” (“O Globo”, 17.6.10, p.6).
Ao se confirmarem as suspeitas de que “eliminou o adversário”,  Bruno fez um tremendo gol contra, acabando não só com o jogo, mas com o que ele tinha de melhor: a carreira de goleiro campeão.
Marcou gol contra, deu cabo à vida de uma jovem, sem demonstrar piedade, compaixão ou qualquer outro sentimento humano, deixando atônitos os seus torcedores e admiradores, a quem tanta alegria proporcionou em tantas partidas.
Indiciado sob a acusação de ser o mandante do sequestro de Eliza, Bruno engrossa as estatísticas de violência contra a mulher, algo que por séculos tem sido acobertado e negligenciado pela crença coletiva de que “em briga entre marido e mulher não se mete a colher”.
É imenso o rol de crimes cometidos contra a mulher no Brasil, podendo ser citados os mais famosos como Ângela Diniz, Eloá Pimentel, Maria Islane Moraes, Cláudia Lessin Rodrigues e tantos outros.
Como afirmou Flávia Piovesan, professora de Direito da PUC/SP, “a violência contra a mulher é reflexo sobretudo de relações de poder historicamente desiguais e assimétricas entre homens e mulheres, marcadas pelo ímpeto do domínio e controle masculino” (“O Globo”, 15.7.10, p.7).
É certo que, desde a promulgação da Constituição de 1988, o ordenamento jurídico pátrio contemplou significativas reivindicações de movimentos femininos com vistas a coibir a violência no âmbito familiar, tendo-se adotado políticas públicas como a edição da Lei Maria da Penha e a ratificação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, consagrando-se o poder-dever do Estado na afirmação dos direitos humanos da mulher.
Não obstante todo o arcabouço jurídico de combate à violência contra a mulher, nas camadas mais pobres da população, notadamente nas comunidades carentes pré-UPP, onde o Estado é ausente, vigora a lei do mais forte, ou seja, impera o poder masculino.
No dizer de Francisco Bosco, os habitantes dessas comunidades “percebem a lei não como aquilo que lhes assegura direitos, mas como aquilo que os oprime e garante o direito dos ricos. A polícia, nas favelas, é a que invade e mata. Os políticos são os que estão autorizados (pela lei’) a roubar e sair impunes. Se um pobre consegue ascender socialmente, muitas vezes ele sentirá que isso ocorreu não por causa da lei, mas apesar dela. Ao enriquecer ele se sentirá acima da lei, assim como antes ele estava abaixo dela. Ele passa de uma identificação com o oprimido a uma  com o opressor. Em um país verdadeiramente republicano, qualquer cidadão, pobre ou rico, deve se identificar com a lei, que é igualitária, Mas, aqui, a lei é instrumento que oprime ou permite oprimir. A consequência é tanto a grana obscena escondida na meia quanto o sequestro e assassinato de uma jovem.” (“O Globo”, 14.7.10, p.2).
A trágica morte de Eliza, como revelam os periódicos, tem servido de tubo de ensaio para os mais variados ramos da ciência, tantos são os componentes dessa triste história que, por ironia do destino, envolve o que o Brasil tem de mais  representativo — o seu futebol — ainda que tenha sido derrotado no Mundial de 2010.
Os vieses psicos-social-político-econômico-criminal ganham com o episódio Bruno – Eliza material para encher as páginas dos jornais e as telas das televisões, até que o assunto seja substituído por outra barbárie.
Como opina Luiz Paulo Horta: “o caso desses ídolos de futebol parece paradigmático. De uma hora para outra, atingem o máximo da fama, da riqueza. Fazem orgias onde é divertido bater em mulheres que, aparentemente, abriram mão da dignidade. Daí para a eliminação física, a distância não é muito grande. O que era uma promessa, ou um projeto, de humanidade transforma-se não num caso de animalidade — porque os animais nunca são demoníacos – mas na demonstração do que é capaz um ser humano quando se desligou de todas as amarras, e perdeu a noção dos limites.” Enfatiza o jornalista: “é fácil dizer que o principal culpado pelo crime do momento é um caso patológico. É a nossa tradição — conceitual — de filosofia grega. Você arranja um nome, e se tranquiliza. Mas, indaga ele, o que está por trás de um nome?” (“O Globo”, 14.7.10, p.7).
Deixando para os doutos as indagações filosóficas sobre o que se vem narrando como horrenda barbárie, passo ao tema que intitula este artigo, qual seja, as consequências do episódio sobre contrato de trabalho do desportista Bruno.
O Caderno de Esporte de “O Globo, de sábado (17/7/10), noticiava em manchete que “BRUNO SERÁ DEMITIDO POR JUSTA CAUSA E PROCESSADO”.
Patrícia Amorim, presidente do Clube de Regatas do Flamengo, após três semanas de silêncio, quebrou o gelo e noticiou que pretende demitir o capitão do time por justa causa. Disse ela: “Na última reunião com a comissão de notáveis, formada para aconselhar a diretoria, ontem (quinta-feira) à noite, o encaminhamento foi pela rescisão, por justa causa. E o Flamengo pode processá-lo por perdas e danos à imagem do clube. A intenção é essa, mas ainda não tomamos nenhuma atitude, pois ainda não recebi nada assinado, e quero me respaldar.”
A cautela demonstrada pela presidente de um time do porte do Flamengo é deveras recomendada: a) os aspectos criminais estão longe de serem desvendados; b) a legislação trabalhista não está vinculada à tipificação penal do fato e c) o comportamento do trabalhador fora do ambiente de trabalho nem sempre dá ensejo à ruptura do contrato por justa causa.
Quando Patrícia Amorim nomeou a comissão de “notáveis”, na qual se incluíam dois magistrados trabalhistas,  inúmeras vozes se levantaram, primeiro para questionar a legalidade de tal composição e, segundo, para opinar sobre a demissão por justa causa do goleiro.
O canal de debate foi a lista privada da associação dos magistrados. Justamente por ser privada, não citarei os nomes dos participantes, tampouco transcreverei suas falas.
Apenas exporei o enfoque dado pelos colegas aos fatos noticiados para tipificá-los, ou não, como justa causa para o rompimento do contrato sem ônus para o clube.
Para um dos manifestantes, no caso em exame, a rescisão por justa causa encontra esteio no artigo 482, letra b da CLT, que trata da incontinência de conduta e mau procedimento.
Incontinência de conduta está relacionada ao desregramento ligado à vida sexual, o que se caracteriza quando o ato “afetar o nível de moralidade média da sociedade, revertendo ofensa ao pudor, violência à liberdade sexual, pornografia ou obscenidade, importando em desrespeito e desconsideração à sociedade, à empresa e aos demais companheiros de trabalho”.
Já o “mau procedimento”, conforme leciona Wagner Giglio, “é todo e qualquer ato faltoso grave, praticado pelo empregado, que torne impossível, e sobremaneira onerosa, a manutenção do vínculo empregatício.”
Também há quem sustente a possibilidade da rescisão do contrato do goleiro, tipificando o fato na alínea k do citado artigo 482, qual seja, ato lesivo à honra ou à boa fama do empregador, algo que já se revelou em campo, quando da partida ocorrida em 11.7.10, na qual a torcida adversária empunhava um cartaz com os dizeres “UPP NA GÁVEA”, numa evidente comparação entre o time rubronegro e as comunidades carentes mais violentas.
Já no que concerne à alínea  do mesmo artigo — condenação criminal —, por óbvio, somente depois de transitada em julgado a eventual sentença condenatória, é que tal fato concretizar-se-á, de modo que é de todo descabido o rompimento contratual nessa fase das investigações, com base em tal dispositivo legal.
Adito à fala desses magistrados a lição de Rodrigo Teixeira Paiva, no artigo intitulado “Aspectos do Contrato de Trabalho de Atleta Profissional de Futebol”  para quem  “a rescisão por justa causa, cometida pelo empregado, se dá quando este incorre nas faltas previstas no art. 482 da CLT, aplicadas aos trabalhadores em geral, e no art. 20 da Lei nº 6.354/76, específicas do atleta de futebol: ato de improbidade, grave incontinência de conduta, condenação à pena de reclusão superior a dois anos, transitada em julgado, e eliminação imposta pela entidade de direção máxima do futebol nacional ou internacional. Analisaremos estas previsões de faltas peculiares à categoria dos atletas profissionais de futebol.
Os atos de improbidade são aqueles praticados de modo desonesto. “Pressupõem dolo e caracterizam-se, em geral, pela prática do furto, do roubo, do estelionato, da apropriação indébita, enfim, pressupõem a obtenção de uma vantagem de qualquer ordem”.
A grave incontinência diz respeito à falta de moderação no comportamento do atleta de futebol, dentro e fora do ambiente de trabalho, face à amplitude da subordinação. Assim, “a incontinência de conduta é avaliada com mais rigor do que o critério adotado para os empregados em geral e poderá se configurar mesmo fora das dependências da agremiação”.
Por consequência, incorre em incontinência de conduta o atleta que, por exemplo, frequenta “casa noturnas, para encontros constantes, amorosos, que somente se concretizam depois de longa permanência na área de diversão, onde quase sempre o uso imoderado de bebida faz parte de noitada”. Tal comportamento vai de encontro a um dos deveres do atleta profissional, que é o de “preservar as condições físicas que lhes permitam participar das competições desportivas, submetendo-se aos exames médicos e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva” (art. 35, II, Lei nº 9.615/98).
São dispensáveis maiores comentários acerca da demissão por justa causa em caso de condenação a pena de reclusão, superior a dois anos, transitada em julgado, devido à incompatibilidade entre a prestação do serviço e a situação de clausura.
A eliminação do futebol, pena imposta por entidade de direção máxima do futebol nacional ou internacional, também enseja demissão por justa causa, por motivos óbvios. Como exemplo, podemos citar o caso do goleiro chileno Roberto Rojas, que ao disputar uma partida pela seleção de seu país contra o Brasil, em 1989, trazia em sua luva um estilete, com o qual se cortou, simulando ter sido atingido por fogos de artifício disparados pela torcida, recusando-se a continuar disputando a partida. Julgado pela FIFA, Rojas foi condenado à exclusão perpétua do futebol. Na época, Rojas jogava pelo São Paulo Futebol Clube, tendo seu contrato rescindido.” (disponível em: www.apriori.com.br)
Com base no que se expôs, conclui-se que é salutar a cautela adotada pela Presidente do Clube, porque, no calor dos acontecimentos, podem se tomar por falta grave fatos veiculados pelos meios de comunicação sem o respaldo em provas concretas, o que poderá gerar para o clube o dever de indenizar o atleta por imputação de faltas/crimes não comprovados, resultando em vultosa condenação para reparação de danos morais.
Todo cuidado é pouco. O Flamengo deve pautar a imprensa com  o seu glorioso futebol, mas não deve se pautar pela imprensa para punir os seus atletas.