Edição 272
Caráter autônomo das medidas protetivas de urgência
5 de abril de 2023
Fabíola Sucasas Negrão Covas Promotora de Justiça / Coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo/ Integrante do Conselho Nacional do Ministério Público
O Projeto de Lei (PL) nº 1604/2022, que teve tramitação bicameral e seguiu para sanção presidencial, pretende colocar fim a uma discussão no âmbito do Poder Judiciário para confirmar o caráter autônomo das medidas protetivas de urgência concedidas nos casos de aplicação da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
O entendimento de que as medidas protetivas de urgência não dependem da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência, foi sedimentado pela decisão do Superior Tribunal de Justiça prolatada em sede de Recurso Especial julgado em 07 de abril de 2014, sob relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, que foi preciso e direto:
1. As medidas protetivas previstas na Lei nº 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor.
2. Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. ‘O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas’ (DIAS. Maria Berenice. ‘A Lei Maria da Penha na Justiça’. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012).
3. Recurso especial não provido. (REsp 1419421/GO, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 11/2/2014, DJe 7/4/2014).
Partindo-se do princípio de que a finalidade das medidas protetivas é a de proteger direitos fundamentais, a tese sobre a natureza autônoma das medidas protetivas já foi reconhecida por órgãos representativos de todos os juízes e promotores que atuam no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher do Brasil, quais sejam, a Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid) do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, e o Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), inclusive reforçado em manual do Conselho Nacional de Justiça.
Apesar disso, inclusive de Recomendação do Conselho Nacional de Justiça dirigida a todos os juízes brasileiros para adotarem o julgamento com a perspectiva de gênero em suas causas, recomendação esta convolada na Resolução nº 492/23, e de outro enunciado da Copevid que sugere a mesma postura no âmbito do Ministério Público, o tema que segue sem uniformidade na prática do sistema de Justiça.
A tese refere-se à natureza jurídica das medidas protetivas, se elas são acessórias ou satisfativas; com a promulgação do PL, alterar-se-á a sorte da vida das mulheres em situação de violência e as expectativas sobre o sistema de Justiça quanto à dimensão e à própria eficácia da Lei Maria da Penha, a partir dos instrumentos jurídicos que ela previu para a garantia da proteção das mulheres quanto ao risco de nova violência, do seu agravamento e do seu mais extremo resultado, que é o feminicídio.
Chamamos a atenção para os últimos dados colhidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública na Pesquisa “Visível e invisível: A vitimização das mulheres no Brasil” – 4ª edição (2023), segundo os quais, em relação à última pesquisa, em 2021, houve crescimento de todas as modalidades de violência, com o incremento acentuado de formas de violência física ou ameaças graves, que podem incorrer em morte da mulher, como é o caso do aumento dos episódios de perseguição, ameaça com faca ou arma de fogo e espancamentos.
A pesquisa também destacou o fato de que as mulheres separadas e divorciadas apresentaram níveis mais elevados de vitimização (41,3%) do que em comparação com casadas (17%), viúvas (24,6%) e solteiras (37,3%), o que indica enorme preocupação, na medida em que é justamente o momento em que a mulher se encontra em maior risco de morte.
Esses fatores são considerados pelas evidências científicas um risco de agravamento e morte no Formulário Nacional de Avaliação de Risco, instituído no âmbito do Poder Judiciário e do Ministério Público por meio da Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 5/2020 e Lei nº 14.149/2021.
A situação de violência narrada nos milhares de autos e feitos processuais que seguiram sem adotar o posicionamento referido compõe não apenas histórias individuais, mas mundiais. O cenário epidêmico do que representa a violência doméstica e familiar contra a mulher revela violações do direito fundamental a uma vida sem violência, infringindo direito humano protegido por tratados internacionais que exigem do Estado uma postura mais enérgica visando a proteção das mulheres.
Foi justamente neste sentido que a Lei Maria da Penha expressamente atentou para o fato de que a violência contra a mulher constitui uma violação a direitos humanos. Fundou-se não só na importância do alerta à referida realidade epidêmica, mas também na necessidade de afastar toda a sorte de violações que vinham banalizando o cenário e colocando o Estado alheio à sua obrigação de prevenir e combater tal violência, e também de assistir e proteger as mulheres em ambiente privado, ora por considerar fatos insignificantes, ora por compreender que “em briga de marido e mulher não se mete (ia) a colher”, ora por culpabilizar a vítima, romantizar a violência ou patologizar o agressor.
Não por outro motivo concebeu, a lei, o instrumento das medidas protetivas de urgência, que revolucionou o sistema jurídico brasileiro ao propor uma medida que satisfizesse o mínimo anseio de toda mulher em situação de violência: que o agressor a deixasse em paz, livre. Mínimo este que exigisse do Estado também uma mínima resposta, mas emergencial. Uma resposta que imediatamente a livrasse de uma série de violências, acima de tudo a violência psicológica.
Tal é a razão da criação do mínimo, ou seja, a que o agressor ficasse impedido de ter qualquer contato com ela ou de dela se aproximar. O mínimo para a paz se reestabelecer e garantir a confiança a uma vida livre de violência, repita-se.
E também tal é a razão para que a lei, ao definir os requisitos a permitir o deferimento de medidas protetivas de urgência, deixou de exigir que o agressor praticasse, tecnicamente, uma conduta tipificada na lei como crime, mas sim uma conduta que fosse apontada como característica de violência. Palavras não escolhidas em vão, pois qualquer jurista e aplicador da lei conhecem as restrições do Direito Penal à criação dos crimes e das penas e à respectiva persecução penal.
Não só as palavras não são escolhidas em vão, haja vista que na Lei nº 11.340/2006 cuida-se de um instrumento voltado a garantir os direitos fundamentais das mulheres, o que significa exigir medidas que sejam mais amplas que as respostas que o Direito Penal e os instrumentos processuais são capazes de dar.
Vale lembrar que o Direito Penal e o Direito Processual Penal não foram suficientes para afastar este tipo de violência no caso Maria da Penha, levado à Organização dos Estados Americanos. O Relatório nº 54/2001 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, resultado da apreciação do caso, apresentou recomendação ao Estado brasileiro para que adotasse providências não apenas no caso individual, reconhecendo a “dilação injustificada e tramitação negligente” dada à hipótese, mas também a título coletivo, impelindo o Brasil a “prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil”.
Compreende-se, pois, que a Lei Maria da Penha exigiu do Estado respostas de atendimento integral, não apenas respostas de recrudescimento aos crimes praticados, mas à violência praticada. Compreende-se que o Estado trouxe medidas para a prevenção desta espécie de violência e que se apoiou nos objetivos de assistir e proteger as mulheres que se encontram em meio a este cenário, considerado não isoladamente uma questão de segurança pública, mas de saúde pública, que adoece as mulheres e ferem a sociedade brasileira. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) assim reconhece, pois afeta mais de um terço de todas as mulheres do mundo, apresentando proporções endêmicas e com repercussões muito maiores que o próprio dano imediato causado pela ação da violência.
A Convenção de Belém do Pará, adotada pelo Estado Brasileiro e incorporada na Lei Maria da Penha expressamente como um de seus fundamentos, vale dizer, foi pautada a partir do convencimento de que a sua criação se destinava à proteção dos direitos da mulher e à eliminação das situações de violência contra ela, garantido, inclusive, o seu direito de participar da tomada de decisões e na garantia de atendimento integral.
A Recomendação Geral nº 33 do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres sobre o acesso das mulheres ao sistema de Justiça propõe a dimensão multidisciplinar que a realidade do enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher reclama, inclusive a importância em pautar os interesses das vítimas nas decisões atreladas a esse enfrentamento. No âmbito penal, o comitê recomendou expressamente aos Estados-partes que assegurem em suas prescrições a conformidade com os interesses das vítimas (item 51, “b”).
Evidentemente, o PL concebe o entendimento mais apropriado e condizente com a contextualização mundial do que representa o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Antes de qualquer decisão sobre a sorte das medidas protetivas, mesmo que um inquérito tenha sido arquivado, há de ser consultada a mulher. Há de ser avaliado o risco em que ela se encontra ou se ele já tenha terminado. Há de se reavaliar a política criminal nesta engrenagem, de se articular com a rede de proteção para analisar a condição pessoal da vítima e, de fato, assumir a postura que cabe ao Estado, de que é ela a peça central do debate.
Isso significa, vale mais uma vez dizer, e tal como já pautara a doutrinadora Maria Berenice Dias, que as medidas não foram criadas para assegurar processos, mas a vida de pessoas.
Notas________________________
1 LIMA, Fausto Rodrigues de. “Lei Maria da Penha”. Apud DIAS, Maria Berenice. “A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei nº 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher”. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.11 Seria satisfativa a decisão jurisdicional que, no plano fático, atende a uma pretensão de direito material. PRADO, G. In MELLO, Adriana Ramos de (coordenadora). Comentários à lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2009.
2 In Manual de Rotinas e estruturação dos Juizados de Violência doméstica e familiar contra a mulher, CNJ-2018, 2ª edição. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/b3f18ac2f32a661bd02ca82c1afbe3bb.pdf. Acesso em 28/4/2022.
Palavras do relatório, disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm#:~:text=A%20Comiss%C3%A3o%20Interamericana%20de%20Direitos%20Humanos%20reitera%20ao%20Estado%20Brasileiro,Maria%20da%20Penha%20Fernandes%20Maia. Acesso em 5/5/2022.
Segundo análise conduzida pela OMS junto à London School of Hygiene and Tropical Medicine e ao Medical Research Council, quase um terço (30%) de todas as mulheres do mundo que estiveram em um relacionamento sofreram violência física e/ou sexual por parte de seu parceiro.
Dias, Maria Berenice. “A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei nº 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher”. 3ª edição. Ed. Revista dos Tribunais.