CEJUSCOM e a solução adequada dos conflitos do superendividamento

8 de novembro de 2024

Monica Di Stasi Juíza do TJSP

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A Lei 14.181/21, ao atualizar o Código de Defesa do Consumidor, incluiu entre os princípios que regem a política nacional das relações de consumo o fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores, bem como a prevenção e o tratamento do superendividamento, como forma de evitar a sua exclusão social.

Para a execução de tal política, estabeleceu que o Poder Público deverá instituir mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento, além de núcleos de conciliação e mediação dos conflitos dele oriundos.

Desde então, a comunidade jurídica vem enfrentando dificuldades para colocar em prática tais diretrizes especialmente porque, no âmbito do processo civil tradicional, os modelos com os quais está acostumada a lidar não respondem de maneira eficiente à mudança de paradigma que se pretende incentivar. A ideia de transformar a arraigada “cultura da dívida” em uma “cultura do pagamento possível” é tão inovadora quanto desafiadora.

Atento a isto, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 125/21, que criou os Núcleos de Conciliação e Mediação de Conflitos Oriundos do Superendividamento, vinculando-os aos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) já instalados pelos Tribunais de Justiça de todo o país. A ideia é utilizar a estrutura existente, sem maiores ônus ao poder público, e aproveitar sua notória expertise no atendimento da população, especialmente de questões relacionadas ao direito do consumidor. As bem-sucedidas experiências, até então implementadas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (ao lado de outros estados da Federação que já cuidavam do enfrentamento da questão, tais como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul), foram expressamente mencionadas como paradigmáticas para a regulamentação do tema. Uma de suas recomendações foi a celebração de convênios para a prevenção e o tratamento do superendividamento.

Neste contexto, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em parceria com a Fundação PROCON, celebrou o Convênio 000.148.2024-CV para a criação do CEJUSCOM – Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania em Matéria Consumerista – que foi inaugurado e iniciou suas atividades no dia 7 de outubro de 2024. Seu objetivo é prestar serviços de apoio técnico-jurídico em demandas envolvendo relações de consumo, em especial aquelas decorrentes do “Programa de Apoio ao Superendividado” (desenvolvido e coordenado pelo PROCON) e do “Programa Estadual de Combate ao Superendividamento” (implementado pelo TJSP no ano anterior).

Trata-se de trabalho integrado e de cooperação, que busca unir esforços dos agentes de ambas as entidades com o objetivo de orientar e educar o consumidor, prevenindo e tratando o superendividamento, com a renegociação das dívidas de maneira a torná-las passíveis de efetivo pagamento, promovendo assim o tão necessário resgate de sua cidadania.

Os métodos adequados de solução de conflitos – em especial a conciliação – serão utilizados em favor dos consumidores pessoas naturais (como prevê a Lei 14.181/21) e também dos comerciantes individuais e microempresários, que não tiverem condições de arcar com o pagamento das dívidas de consumo contraídas de boa-fé, tanto aquelas já vencidas como as que estiverem por vencer, sem prejuízo do mínimo existencial e da manutenção da vida com dignidade.

Os consumidores selecionados (bastando para tanto o preenchimento dos requisitos legais) serão entrevistados e preparados para que possam compreender sua real situação financeira e para que tenham condições de negociar com seus credores com dignidade, cientes de que deverão honrar com os pagamentos que vierem a propor.

Haverá também uma orientação direcionada aos credores, especialmente quanto à necessidade de observar as normas de concessão de crédito responsável (uma das vertentes da Lei 14.181/21) e de apresentar em audiência prepostos qualificados, com conhecimento dos produtos que comercializam e capacidade de transacionar de maneira efetiva.

As entidades parceiras – PROCON e TJSP – promoverão a qualificação de seus agentes para que possam fornecer atendimento adequado, humano e eficiente ao público, auxiliando na obtenção de resultados capazes de pacificar os conflitos.

Para que possa utilizar este serviço, o consumidor de qualquer cidade de São Paulo deve reunir todas as informações acerca de sua situação financeira e apresentá-las através do formulário que se encontra na página da internet do Tribunal de Justiça, no Portal de Combate ao Superendividamento (endereço e-SAJ (tjsp.jus.br). Lá ele indicará os dados: a) básicos: de qualificação e endereço, para sua identificação; b) socioeconômicos: total aproximado de suas despesas mensais, valores gastos com energia elétrica, água, aluguel, alimentação, plano de saúde, impostos, entre outros; c) das dívidas passíveis de renegociação: indicando o nome e identificação do credor, valor da dívida, existência ou não de garantia ao contrato e de processos em andamento. Na sequência, fornecerá os documentos da contração de que dispuser. Caso não tenha condições de fazê-lo sozinho, o consumidor poderá contar com o auxílio de funcionários do PROCON ou do CEJUSCOM para o preenchimento.

Uma vez inseridos os dados no sistema, o CEJUSCOM fará a conferência e encaminhará o procedimento ao PROCON para a primeira fase do tratamento. Ela consistirá basicamente de: triagem; entrevistas (sempre que necessário para a obtenção de mais informações); palestras (o consumidor receberá noções de educação financeira, economia comportamental, planejamento familiar, bem como sobre como seguir com a formação de um plano para o cumprimento de seus contratos) e renegociação das dívidas. Neste momento competirá ao PROCON direcionar as propostas de pagamento do consumidor aos credores – o que fará através de e-mails – encaminhando eventuais contrapropostas. Havendo acordo, ele será enviado ao juiz coordenador do CEJUSCOM para homologação.

Se não houver acordo, o procedimento será devolvido ao CEJUSCOM para a designação de audiência entre o devedor e a coletividade de seus credores (de forma online ou presencial, a critério do requerente). Esta audiência será conduzida por conciliador especialmente preparado para o tratamento do tema. Tal como previsto em lei, o comparecimento dos fornecedores é obrigatório, sob pena de sofrerem as seguintes sanções: de suspensão da exigibilidade do débito a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida, devendo o pagamento a este credor ser estipulado para ocorrer apenas após aquele que vier a ser feito aos credores presentes ao ato (artigo 104-A, parágrafo 2, CDC). Na audiência, poderão ser tomadas medidas de dilação de prazo para pagamento e redução dos encargos da mora, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida. Dever-se-á, ainda, deliberar sobre eventuais ações já em curso e sobre a data a partir da qual será providenciada a exclusão do nome do consumidor dos bancos de dados e de cadastros de inadimplentes. Feito isto, as partes que estiverem de acordo formarão plano de pagamento que, homologado pelo juiz coordenador, terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada (artigo 104-A, parágrafo 3, CDC).

Caso ao final do procedimento ainda não se obtenha acordo total, o consumidor será informado quanto à possibilidade de propor ação para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório. Neste momento, ele já contará com um plano de pagamento (formado a partir da planilha organizada juntamente com o PROCON), que poderá ser bastante útil desde o início de seu processo. 

Vale ressaltar que em São Paulo existem atualmente 242 unidades de CEJUSCs instaladas em comarcas, 10 em Foros Regionais, além de 67 postos a eles vinculados. O CEJUSCOM reunirá no CEJUSC Central da Capital o tratamento do superendividamento de todo o estado, recebendo suas demandas e conduzindo as audiências, o que se torna possível graças à utilização de ferramentas digitais que dispensam o comparecimento pessoal.

Os objetivos deste projeto, para além do cumprimento das diretrizes legais e daquelas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça, são primordialmente: facilitar a solução adequada de conflitos (sendo certo que os processos tal como tramitam atualmente nem sempre se prestem a tal finalidade, seja em razão do tempo e dos recursos envolvidos, seja porque ao seu final podem estabelecer obrigações jurídicas, mas de cumprimento impossível no plano fático); evitar sua judicialização e colocar em prática os objetivos estabelecidos na política nacional das relações de consumo (“atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo”). 

Como consequência, almeja-se evitar a exclusão social do consumidor, contribuindo para o resgate de sua cidadania; auxiliar na efetiva implementação da cultura do pagamento (em lugar da já consagrada cultura da dívida) e propiciar ambiente adequado de negociação, que traga de volta para o mercado não apenas os consumidores, mas também os milhares e milhares de reais que já se consideram perdidos com suas dívidas.

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