Célio Borja, um exemplo

3 de outubro de 2022

Flavio Galdino Advogado

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O título deste pequeno ensaio é desafiador, para dizer o mínimo. O Professor Célio Borja dizia expressamente que não gostaria de ser tomado como exemplo. Essa inusitada negativa apenas expressa dois traços da sua personalidade – a discrição e a modéstia. Paradoxalmente, reforçam o seu caráter exemplar, que pretendo explorar aqui à guisa de homenagem ao mestre. Demais disso, tentar aprisionar em poucas linhas ou páginas a biografia de um homem como Célio Borja seria ousadia inatingível. O objetivo aqui é mais simples e mais modesto: apresentar um perfil exemplar de um grande homem – nas esferas pública e privada.

Celio Borja faleceu no Rio de Janeiro no último dia 27 de junho de 2022. É uma perda irreparável em muitos sentidos – certamente de modo muito especial para a sua família. O professor nos deixa um exemplo lapidar de moralidade na esfera pública, assim como na vida privada. Com efeito, constitui-se em um exemplo notável de homem público e de pai de família.

Com mais de seis décadas de bons serviços prestados à causa pública, Célio Borja encarnou no melhor sentido da palavra o jurista do Século XX no Brasil. Encarnou também o que de melhor a vida política brasileira foi capaz de produzir nesse período que, como sói acontecer, teve luzes e sombras. Tendo concluído o bacharelado e o doutorado em nossa Faculdade de Direito do Rio de Janeiro (depois UEG e hoje UERJ – ainda e sempre a Faculdade do Catete), tornou-se professor na mesma Casa – e ocasionalmente em diversas outras instituições de elevado prestígio, como o Instituto Rio Branco, a casa da diplomacia brasileira. Era um homem brilhante e de conhecimento enciclopédico, devotado ao rigor científico e vocacionado para a docência. Apesar do pouco tempo de docência efetiva, diversos de seus alunos alcançaram grande distinção na vida jurídica, como Ellen Gracie Northfleet, Paulo Braga Galvão, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Marcos Alcino de Azevedo Torres, Danilo Doneda e Maurício Mota, para referir apenas alguns deles – e muitos deles também se tornaram respeitados professores na nossa Faculdade.

Possuía uma das melhores bibliotecas jurídicas do seu tempo, cuidadosamente construída, da qual fez excelente e proveitoso uso. Dominava os clássicos da filosofia política e do Direito Público como poucos. Era cultor do liberalismo e, em que pese a dificuldade de se definir com precisão o conteúdo do liberalismo político e do liberalismo econômico – como da própria expressão liberal – parece possível afirmar que eles têm as liberdades como centro dos seus sistemas de pensamento e ação. Já se disse que o culto da liberdade é o segundo credo de todas as pessoas. É uma verdade em relação ao Professor Célio Borja.

Ao lado do magistério em uma Faculdade pública, a sua dedicação a outras esferas do serviço público é também exemplar. Ocupou as mais elevadas magistraturas da República. No Poder Legislativo foi eleito parlamentar pelo voto popular – primeiro para a Assembleia Legislativa na Guanabara e depois para a Câmara dos Deputados – e, mercê do respeito angariado entre os seus pares, foi eleito presidente da Câmara dos Deputados. No Poder Executivo, foi assessor especial da Presidência da República e ministro da Justiça. E no Poder Judiciário foi ministro e exerceu a Presidência do Supremo Tribunal Federal, assim como a magistratura junto ao Tribunal Superior Eleitoral.

Estimulado por outro eminente professor da nossa Casa – também parlamentar e magistrado, o insigne Aliomar Baleeiro – candidatou-se, foi eleito e exerceu funções relevantíssimas no Parlamento. No plano estritamente legislativo, relatou e participou de debates os mais relevantes. Pode-se exemplificar com a relatoria dos projetos de lei que viriam a se tornar o Código de Propriedade Intelectual de 1971 e o Código de Processo Civil de 1973 – neste último, propôs a redução sensível dos recursos, tema que atormenta de modo perene os estudiosos e operadores do Direito Processual, mas, infelizmente, foi derrotado e a derrota é sentida e criticada até os dias de hoje, diante de um sistema recursal que se pode considerar inapropriado. Contudo, o mais importante a salientar é que, como parlamentar, ele não se limitou a legislar.

Foi um grande mediador e, porque não dizer, um pacificador institucional, que usava a palavra e a autoridade moral em lugar da agressão e da violência. Durante o período mais difícil dos governos militares, teve atuação decisiva na retomada das atividades do Congresso Nacional, que entendia como mediador entre a sociedade e o Estado (afirmara que “o Congresso seria o único instrumento válido de transição pacífica”). Teve atuação importante também no processo político que redundou na transição dos governos militares para o governo civil do Presidente José Sarney. Basta dizer que foi Célio Borja quem redigiu a emenda constitucional que convocou a Assembleia Nacional Constituinte de 1986. Instalado em uma sala no antigo prédio do Ministério da Fazenda no Rio de Janeiro, redigiu a emenda e negociou os termos da convocação e da instalação da Assembleia que mudaria o curso da história constitucional brasileira. Da mesma forma, é de se destacar a sua atuação como ministro da Justiça, quando foi o ponto de equilíbrio do processo político que redundou no impedimento do Presidente Fernando Collor de Mello – com o surgimento das denúncias que acarretaram o impedimento do presidente, Célio Borja dirigiu-se a ele informando que o ministro da Justiça agiria como “advogado das instituições republicanas e não do presidente”. Mesmo assim foi mantido no cargo e jamais foi atacado pelos adversários do então presidente. O respeito dos atores políticos pela sua autoridade moral permitiu que essas transições ocorressem de modo pacífico e com observância dos mais relevantes parâmetros de legalidade.

Em certa ocasião definiu a si mesmo como um resolvedor de problemas (nas suas palavras, um “trouble-shooter”), indicando que a sua atuação teria “aplainado as desconfianças” entre as forças contrapostas naqueles momentos históricos conturbados. As suas convicções morais inabaláveis impunham honestidade no trato da coisa pública, assim como nas relações privadas e pessoais e inspiraram confiança em aliados e adversários ao longo de toda a sua profícua trajetória política. Já se disse com autoridade que os homens confiam nos homens e não nas suas instituições. Célio Borja inspirava confiança, a qual produziu compromissos políticos – ainda e sempre no melhor sentido da expressão – os quais permitiram que o País, na maior medida possível, atravessasse períodos conturbados sob a égide da racionalidade e do diálogo em lugar da violência institucional e física.

O serviço público limitou sobremodo a sua atividade acadêmica – afirmou que “a política foi uma tentação: a de completar com o conhecimento prático o conhecimento teórico que eu tinha do Estado (…), mas maltratou minha necessidade de convívio familiar, dispersou minha vida intelectual, como a de advogado e interrompeu também a de professor”. Todavia, a verdade é que os conhecimentos acadêmicos forneceram o instrumental para que tivesse tamanha influência na vida política brasileira. Chamado pela presidência da República a desenhar um modelo de parlamentarismo para o Brasil, lembrou: “Escrevi esquematicamente sobre o conceito e as características do parlamentarismo, como um roteiro de aula”. A “aula” foi tão boa que foi encarregado de elaborar e implementar um plano de ação política para a adoção do parlamentarismo no Brasil. Será sempre lembrado por nós como “Professor”.

Terá sido exemplo também para a disposição constitucional acerca da nomeação para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal: possuía reputação verdadeiramente ilibada e notabilíssimo saber jurídico. Sua nomeação para a Corte foi aclamada nos meios jurídicos e políticos. Considerava o período de seis anos em que ficou no Supremo dos mais felizes da sua vida pessoal e profissional. Atuou em julgamentos relevantes, com a serenidade que marcara sua vida pública e com a profundidade que poucos alcançaram no exercício da judicatura suprema. No que reputava seu apogeu no serviço público, deixou a vida pública para dedicar-se ao tratamento de saúde de um familiar, revelando a insofismável ética que também norteou a sua vida privada.

As tristes razões que o fizeram declinar da vida pública permitem descortinar as suas moralidade e honestidade inabaláveis. Não tinha dinheiro para custear o tratamento que reputava mais adequado para o seu ente querido (disse-o expressamente: “Sim. Infelizmente tive de enfrentar uma doença na família, o que me levou à determinação de me aposentar (…). Um diagnóstico difícil, um tratamento também difícil (…). Mas eu não tinha dinheiro para isso”). Em um período em que agentes públicos enriquecem de modo ilícito no exercício das mais subalternas funções, um homem que ocupou os mais elevados cargos da República manteve uma vida modesta e deixou o serviço público para voltar à iniciativa privada e levantar recursos para um tratamento médico. Com o devido respeito e acatamento, deve mesmo servir de exemplo para todos nós.

Na verdade, criado em lar sem opulência na Tijuca, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Célio Borja herdou dos seus pais o que de melhor se pode haver: formação moral e intelectual. A elas somou-se a fé católica inabalável que moldou também a sua vida pessoal. Desde jovem participara da Juventude Universitária Católica (como representante estudantil, chegou a exercer a vice-presidência da União Nacional dos Estudantes) e mais tarde frequentara o Mosteiro de São Bento, que segundo ele mesmo “era um centro de atração intelectual”, participando de debates e defendendo a observância da liturgia como forma de aprofundamento da fé. Dizia-se católico praticante e militante, tendo presidido a União dos Juristas Católicos. Mesmo para um agnóstico a sua dedicação à fé e à liturgia religiosa mostra-se admirável.

Duas curtas passagens revelam a firmeza dos princípios morais e políticos do professor. Em meados dos anos de 1990, recebi de um livreiro uma oferta para aquisição de um conjunto de livros antigos e raros – uma pequena coleção de livros portugueses do Século XVIII. Eu era estudante e, apesar do apreço, não dispunha dos recursos para adquirir aqueles livros. O livreiro indagou-me se conhecia alguém que eventualmente tivesse interesse. Lembrei-me logo do professor, que dispunha de uma biblioteca extraordinária. Telefonei a ele e indaguei se poderia passar o contato para o livreiro – ele autorizou e passei. No final do dia o professor me ligou para agradecer. Indaguei se ele tinha gostado e comprado. Ele disse que os livros eram ótimos e estavam em bom estado, mas que não compraria porque o livreiro não podia atestar sua procedência. Indaguei então se ele suspeitava que os livros tivessem origem ilícita e ele disse que não – mas que a sua premissa seria a inversa: ele não se permitiria adquirir livros se não tivesse convicção de que a procedência era lícita.

Depois disso, ainda no final dos anos 1990, o professor foi convidado pelo centro acadêmico da nossa Faculdade a fazer uma palestra no Rio de Janeiro na área da ciência política. Encontrou como debatedor um crítico do liberalismo. Com a fidalguia que lhe era peculiar, o professor discorreu sobre o tema que fora proposto e recebeu às críticas do debatedor, que sugeria que revisitasse algumas posições. Em seguida, o professor replicou que mantivera as suas posições coerentemente ao longo de toda a vida e não estava inclinado a mudar de ideia naquele momento. O debatedor redarguiu – tentando aproveitar-se da plateia jovem e, ao mesmo, tempo criticar a alegada coerência do professor – que as pessoas que “não foram comunistas aos 20 anos não teriam coração”. Mesmo diante da crítica indelicada, o professor respondeu educada, porém ironicamente que desconhecia aquela “teoria”: “Não conhecia essa teoria biológica arrojada, mas, de acordo com ela, é possível que se diga que não tive coração – concederei esse arroubo – mas estejam certos de que sempre tive cérebro”.

É possível tomar por empréstimo as palavras que o Professor Célio Borja destinou em opúsculo a outro ilustre brasileiro – o grande Rui Barbosa – para defini-lo a si próprio: “Era um homem de ação, sem embargo das reconhecidamente vastas curiosidade intelectual e erudição (…) tinha enorme apego aos valores e o zelo de fazê-los prevalecer”. Deixa enorme saudade.