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Cidadão Público x Cidadão Privado

26 de novembro de 2013

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Ives Gandra da Silva MartinsBiografias, eis a questão

Aos poucos, o tema foi se tornando público. Principalmente, a partir de 2005, e, em casos isolados, quando passou a ser discutido de forma circunstancial, nem sempre envolvendo com profundidade o que se pode chamar de debate jurídico-legal. Agora é diferente. Nos últimos dois meses, o assunto se tornou polêmico, motivando contínuos debates entre diversos setores da sociedade, com larga exposição nas mídias de rádio, televisão, jornais, revistas e provocando interpretações acaloradas, emocionais e críticas a torto e a direito. No centro do debate, a Justiça, as leis, a Constituição, o Código Civil. De um lado, o direito à livre expressão das atividades intelectual, artística, científica e de comunicação; do outro, o direito à privacidade.

A questão das biografias autorizadas, não autorizadas, submetidas a censura prévia, controladas ou não, está na ordem do dia. E, no meio de tudo, a interpretação que se pode ter ou dar aos artigos do Código Civil e da Constituição Federal. Principalmente, depois que a Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL) entrou no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) contestando os artigos do Código Civil, e sua prevalência, que têm servido de base jurídica para muitos biografados vetarem biografias não autorizadas, embora em nenhum momento o Código cite, expressamente, a palavra “biografia”. Iniciativa que interessa a diversos setores da sociedade, particularmente à Associação Brasileira de Imprensa, amicus curiae da ação, por considerar que o tema está intimamente ligado à liberdade de imprensa.

Na outra ponta deste debate e contra a iniciativa da ANEL, estão artistas de grande expressão na história e na cultura brasileira. Eles se juntaram em um grupo – denominado Procure Saber – e passaram a defender, publicamente, que as biografias só poderiam ser publicadas com autorização do biografado, o que soou como censura prévia, e, ainda, que o biografado teria o direito de receber royalties sobre suas biografias comercializadas.

Nos últimos dias, o grupo Procure Saber tentou dizer – em meio a uma controvérsia geral, críticas, mal-entendidos, desmentidos, artigos em jornais e discussões internas que provocaram até mesmo a saída de artistas renomados como o cantor Roberto Carlos – que, em sua opinião, não implica em supressão da liberdade de expressão, embora o direito à privacidade deva ser totalmente respeitado. O fato é que o Procure Saber tenta responder às críticas e se defender afirmando que seu principal papel é prestar enorme contribuição para que o assunto esteja, hoje, nos debates público e jurídico.

O tema continua controverso e vem despertando manifestações de toda parte, até apaixonadas. Muitos jornalistas e juristas colocam o direito à liberdade de expressão como princípio constitucional inegociável; outros atestam que a privacidade é um direito de todo cidadão, também inviolável – um confronto de opiniões que parece não ter fim.

O assunto está em discussão no Supremo Tribunal Federal, onde uma audiência pública, liderada pela Ministra Carmen Lúcia, está sendo convocada e pre­nuncia muita repercussão. Está também no Congresso Nacional, onde as opiniões são muitas e conflitantes. Chegou até ao Palácio do Planalto, onde a Presidente Dilma Rousseff recebeu parte da classe artística, liderada pelo cantor Roberto Carlos, e ouviu diversas reclamações com relação ao assunto. Está nos meios artístico, jurídico, jornalístico, intelectual, empresarial e cultural.

Afinal, na democracia brasileira, jovem e que se pretende moderna, como conciliar os direitos de biografados e de biógrafos, de editores, de herdeiros de personalidades públicas? Como conciliar direitos de professores e especialistas em produzir teses e monografias acadêmicas que versem sobre personalidades e figuras públicas? Como impedir que o direito à privacidade interfira na liberdade de imprensa? Afinal, as biografias, como gênero literário importante para a compreensão de toda e qualquer história, estão submetidas juridicamente a quais leis? E o direito à verdade? Pode uma personalidade pública alçada à condição de “mito” pela opinião pública e pela mídia, estar acima do direito das pessoas em ter conhecimento da verdade?

Pode-se mesmo acreditar, como alguns advogados e juristas creem, que o Código Civil, tal como está redigido, atribui mais peso à privacidade e menos à liberdade de expressão? Na essência de toda a controvérsia, a questão maior seria, então, apenas de interpretação, pois os instrumentos legais para regular a questão já existem? Ou, na verdade, como defendem alguns, toda esta discussão é inócua em um mundo globalizado, cada vez mais dominado por redes sociais e facilidades de comunicação e onde tudo se publica sobre todo mundo, o que praticamente coloca em colapso o direito inviolável à privacidade?

A verdade é que nada se ouviu ou se debateu sobre um aspecto essencial em toda esta controvérsia: a sensível diferença que existe entre o chamado “cidadão público” e o “cidadão privado” e a interpretação jurídico-legal que permeia seus direitos. Uma questão levantada pelo jurista, professor e acadêmico, Ives Gandra Martins, um dos juristas mais renomados do país, nesta entrevista exclusiva à Revista Justiça & Cidadania.

Premiado como “Homem de Visão”, “Cidadão Consciência”, entre outros títulos, e agraciado com os prêmios Dom Quixote e Sancho Pança concedidos por esta revista, Ives Gandra Martins tem mais de 80 livros publicados, outros 289 em coautoria e mais de 3 mil estudos sobre Direito, Economia, Filosofia, Sociologia, Política, História e Literatura. Por suas opiniões, é um jurista respeitado internacionalmente.

Indagado sobre o assunto “biografias”, ele foi taxativo em estabelecer diferença entre “cidadão privado” e “cidadão público” e considerou “totalmente desnecessário qualquer projeto de lei que modifique ou altere os artigos 20 e 21 do Código Civil”. Segundo revela, “os artigos não são aplicáveis para aqueles que renunciam à própria privacidade ao se tornarem pessoas públicas”. Afirma ainda que “a convivência entre a livre expressão do pensamento e liberdade de expressão e o direito à inviolabilidade da privacidade é perfeitamente possível”.

Ademais, define claramente: “O cidadão não público, aquele que tem uma vida corrente, normal, tem direito à privacidade assegurada pelos incisos X, XI e XII do artigo 5o da Lei Suprema”. Ao contrário do “cidadão público que busca ou tem naturalmente publicidade. Este não tem direito à privacidade, exatamente por se tornar público”.

O jurista defende o direito do biografado “de participar dos benefícios pecuniários da edição da biografia, pois suas ações é que ofertam a biografia e os resultados financeiros do autor”. E afirma que “não se importaria” que uma biografia fosse feita a seu respeito.

“Se fosse verdadeira, não haveria o que esconder. Se falsa, eu ingressaria em juízo com ação de indenização, por danos morais” – conclui.

Na íntegra, a seguir, a entrevista exclusiva.

Justiça & Cidadania: Não há democracia sem livre expressão do pensamento e liberdade de expressão. E também não há democracia sem preservação dos direitos individuais, entre os quais está “o direito à inviolabilidade da privacidade”. Como conviver com isso no atual momento no Brasil, quando também a sociedade quer ter o direito à verdade?

Ives Gandra Martins – A convivência é possível. O cidadão “não público”, aquele que tem uma vida corrente normal e que não aparece em manchetes de jornais, tem direito à privacidade assegurada pelos incisos X, XI e XII do artigo 5o da Lei Suprema. Não o “cidadão público”, que busca ou tem naturalmente publicidade, principalmente os políticos. Estes, à evidência, por se tornarem públicos, não têm direito à privacidade, que, aliás, a história não ofertou a nenhuma das pessoas que conformaram a evolução da humanidade. Nesses casos, a busca da verdade é necessária, podendo, se houver abusos, os descendentes ou a própria pessoa em vida acionar os biógrafos por danos morais, se os fatos narrados forem falsos.

JC – No modelo atual, em que diversas biografias têm sido impedidas de serem publicadas ou mesmo de serem escritas – em razão dos artigos do Código Civil em vigor –, não haveria o perigo de censura geral a reportagens, artigos, textos e opiniões? Qualquer cidadão citado em algum texto jornalístico não poderia se sentir no direito de proibir o texto, uma vez que seu nome foi mencionado? E poderia alegar “invasão de sua privacidade”?

IGM – O que seria do historiador se só pudesse investigar as biografias autorizadas? No momento que alguém se torna personalidade pública, já não é mais dona de sua imagem.

JC – Alguns defensores da validade dos artigos do Código Civil nestes casos – e entre eles estão artistas renomados, que se juntaram em um grupo chamado Procure Saber – tentaram ponderar, em meio a toda a polêmica que o assunto despertou, que, além do direito de vetar a publicação, teriam também o direito, automático, de receber royalties e obter participação financeira dos autores e editoras nas vendas de suas biografias. O sr. concorda com isso? É mesmo, juridicamente, um direito do biografado?

IGM – O direito à privacidade do Código Civil, que comentei em edição comemorativa dos primeiros anos de sua edição, é sempre destinado ao cidadão “privado”, e não àquele que conforma a história. Entendo que tenha o biografado o direito de participar dos benefícios pecuniários da edição, pois suas ações é que ofertam a biografia e os resultados financeiros do autor. Essa matéria deveria ser, portanto, regulamentada.

JC – Um projeto em tramitação na Câmara Federal já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e em análise pelo Senado, autoriza a divulgação de imagens, escritos e informações biográficas de pessoas públicas mesmo sem autorização do biografado ou de seus parentes. Ou seja, revoga os artigos 20 e 21 do Código Civil, mas ressalta, em sua redação, que isso só pode acontecer em caso “de pessoas cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”. O que isso, na realidade, significa? Não lhe parece subjetivo demais? Como caracterizar a chamada “dimensão pública”?

IGM – A meu ver, não precisaria haver o projeto de lei. Pergunto: todos os fatores, os mais variados, publicados pela imprensa sobre cidadãos públicos precisam de autorização de seu autor? A biografia não é senão uma edição aumentada das notícias jornalísticas. A interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil que tenho é de que não são aplicáveis para aqueles que renunciaram à própria privacidade ao se tornarem personalidades públicas.

JC – Nas discussões no Congresso, o deputado Marcos Rogério, de Roraima, já foi contra essa redação, apresentando recurso sob a argumentação de que o texto está mal elaborado e de que o conceito de “dimensão pública” é relativo. Apresentou também uma emenda, garantindo, segundo ele, que “se ficar caracterizada a invasão de privacidade será possível tirar a obra de circulação”. Isso também não caracterizaria estabelecer no projeto em tramitação no Congresso – que pretende revogar os artigos 20 e 21 do Código Civil – o direito de censurar baseado em um conceito subjetivo, ou seja, uma agressão à liberdade de expressão?

IGM – A meu ver, a pessoa que renunciou à privacidade ao querer se tornar conhecida, principalmente artistas e políticos, não podem exercer a censura prévia, cabendo-lhes sempre o direito à ação de indenização por danos morais, se houver abuso, ou seja, se forem falsos os fatos narrados. Por isto, considero o projeto desnecessário e que nem haveria necessidade de revogação dos artigos 20 e 21 do Código Civil, para mim não aplicáveis às personalidades públicas. A história e a liberdade de expressão seriam duramente atingidas se houvesse censura prévia.

JC – Há quem diga, que nessa discussão toda estão “criando pressão como se tudo fosse relativo à liberdade de imprensa, como se o direito de veto à biografia fosse uma agressão à liberdade de imprensa”. Alegam que “essa discussão nada tem a ver com liberdade de imprensa”. Tomam como princípio básico “que não se pode publicar inverdade e, por causa disso, biografia só autorizada”. A imensa maioria da sociedade não tem o direito de conhecer a vida de pessoas que a ela estão ligadas em seu dia a dia ou no curso da história? Afinal, em sua opinião, esse assunto tem ou não a ver com liberdade de imprensa?

IGM – A questão tem a ver com a liberdade de imprensa e a verdade histórica. Conhecer a vida de um político ou de um artista é fundamental, pois o primeiro representará o povo, e o segundo, por seu estilo de vida, pode não agradar a muitos, que só o admiraram por não o conhecerem. A verdade histórica, de um lado, e a liberdade de imprensa, de outro, não podem ofertar tal “endeusamento chapa-branca” dos cidadãos que se tornaram protagonistas do momento.

JC – Privacidade inviolável x liberdade de expressão – essa seria a síntese de toda esta discussão? Como em outros países o direito constitucional conseguiu, promover um necessário “equilíbrio jurídico-legal” em torno desse assunto?

IGM – Através de pesadas indenizações todas as vezes em que o narrado não representa a verdade
histórica.

JC – Afinal, a liberdade de biografar quem quer que seja e a qualquer tempo, pessoa pública ou privada, deve ser tolhida pelo biografado e/ou seus parentes?

IGM – A vida de um cidadão “não público” não pode ser narrada por qualquer um, pois a privacidade lhe garante tal direito. Nesse caso, há invasão. Não do “cidadão público”, pois este renunciou à privacidade.

JC – O sr. é um jurista renomado, com uma importante história de vida e participação real na história do próprio país, e isso é de grande interesse para a sociedade. Se um escritor quisesse escrever sua biografia, o sr. aceitaria sem qualquer autorização prévia?

IGM – Não me importaria. Se fosse verdadeira, não haveria o que esconder. Se falsa, eu ingressaria em juízo com ação de indenização por danos morais.

Será o mito o grande inimigo da verdade?

Em 1995, as filhas do jogador Garrincha processaram o jornalista e escritor Ruy Castro, autor da biografia do pai famoso Estrela solitária. O livro foi proibido e depois liberado à venda. Foi preciso um acordo financeiro entre as partes. Em 2007, o cantor Roberto Carlos conseguiu, na Justiça, a sustação da distribuição de sua biografia não autorizada, Roberto Carlos em detalhes, escrita por Paulo César de Araújo, que pesquisou a vida do cantor e chegou a ouvir mais de 200 pessoas. Recentemente, Vilma Guimarães Rosa, filha do escritor João Guimarães Rosa entrou na Justiça buscando proibir a biografia Sinfonia Minas Gerais – A vida e a literatura de Guimarães Rosa, sobre seu pai, escrita por Alaor Barbosa. O juiz Maurício Magnus, ao analisar a questão, não concordou com a pretensão de Vilma e liberou a biografia, argumentando claramente que “é inadmissível que o patrimônio cultural tenha dono”.

A viúva e as filhas de Paulo Leminski tentam impedir a republicação de Paulo Leminski, o bandido que sabia latim, biografia do poeta, de autoria do jornalista Toninho Vaz, por não concordarem com detalhes da vida do biografado acrescentados pelo autor a uma nova edição. Lira Neto, pesquisador e historiador, biógrafo de Getúlio Vargas declarou à revista Veja, em sua edição de 23 de outubro de 2003, em matéria assinada por Jerônimo Teixeira, Bruno Méier, Sergio Martins e Rinaldo Gama, que pensa em não mais escrever biografias “com receio de sofrer ações por parte de herdeiros de biografados”.

Kitty Kelley, autora americana de sucesso com biografias decisivas e não autorizadas, sobre personalidade como a apresentadora Oprah Winfrey, a atriz Elizabeth Taylor, o cantor Frank Sinatra e a ex-primeira dama Jacqueline Bouvier Kennedy, é incisiva em dizer que “os familiares do biografado têm uma tendência natural de apagar o que é real, doloroso ou pouco lisonjeiro da vida dos biografados. Essas eliminações infelizmente privam a história de vida de uma personalidade de sua profundidade”. O autor inglês Jonathan Fenby que escreveu uma biografia sobre o general francês Charles De Gaulle, O General, alega que as sociedades “precisam e têm esse direito, de saber sobre seu passado e o seu presente e as biografias são parte disso”.

Reunidos na Alemanha, em 2004, mais de quatro dezenas de autores, historiadores e jornalistas, ao discutir a importância da História na vida das pessoas e das sociedades, chegaram a uma clara conclusão: “é preciso trazer as pessoas de volta para a História, e a biografia é o gênero literário certo para investigar as questões”. Enfatizaram, na verdade, o valor essencial das biografias, o que o grego Plutarco já dizia há quase dois mil anos na biografia Vidas paralelas, em que contava as aventuras e proezas do rei Alexandre da Macedônia: “Não me pus a escrever histórias, mas vidas somente. E as mais altas e gloriosas proezas nem sempre são aquelas que mostram melhor o vício e a virtude do homem. Ao contrário, muitas vezes uma ligeira coisa, uma palavra ou uma brincadeira põem com mais clareza em evidência o natural das pessoas”.

No centro de toda a discussão que envolve a História e o direito das sociedades e indivíduos de terem total conhecimento desta, está sempre em evidência a Verdade. É esse valor essencial ao ser humano que está sujeito a interpretações variadas, de ordem jurídica ou não. Alguns, querem que ela seja mostrada de uma maneira mais próxima da mentira; outros, que ela nunca venha à tona. Há ainda aqueles que querem controlá-la de alguma forma. E ainda há aqueles que consideram que a vida pode muito bem ser levada sem que se precise dela. E que nem tudo precisa ser dito e muito menos revelado. E que os mitos são intocáveis, mesmo que tenham vida pública e suas histórias sejam de interesse geral da sociedade.

“O grande inimigo da verdade muitas vezes não é a mentira, deliberada, artificial e desonesta, mas o mito. Este, sim, é persistente, persuasivo e irrealista”, disse, certa vez, um dos personagens mais biografados – sem censura ou autorização prévia – da história do mundo: John Kennedy.