Edição 292
Cocaína criminalizada: interesses geopolíticos e econômicos
29 de novembro de 2024
Olavo Hamilton Representante do IAB no Rio Grande do Norte
Muito se discute sobre a irracionalidade da criminalização da maconha e de todos os componentes políticos e simbólicos que levaram à proscrição uniforme desse psicoativo. No entanto, pouco se escreve sobre a igualmente irracional criminalização da cocaína. Impõe-se, portanto, lançar luz sobre o tema.
Até setembro de 1910, a questão das drogas era circunscrita ao problema do ópio. Tinha-se, na verdade, um conflito geopolítico entre os Estados Unidos da América, especificamente em relação ao lucro da atividade e o estilo político de lidar com o Extremo Oriente – o tradicional colonialismo de um lado e o capitalismo moderno de outro.
A Conferência de Xangai, realizada no ano anterior, representou grande derrota para a Inglaterra, tanto no campo mercantil quanto em relação à sua imagem na comunidade internacional, abalada pela insistência em manter um comércio que começava a ser repudiado. Tencionando mitigar e dividir os danos que havia sofrido em Xangai, a Inglaterra aceitou participar da Primeira Conferência Internacional do Ópio, que aconteceria em 1911, em Haia, mas impôs que o debate não se limitasse ao ópio de forma bruta, senão abrangendo também substâncias derivadas e outras drogas. Nesse contexto, em setembro de 1910, a cocaína foi pela primeira vez introduzida no discurso internacional sobre o controle de ópio – e essa inserção partiu da Inglaterra.
A Alemanha era o principal rival econômico da Inglaterra na Europa e também o maior produtor e exportador de cocaína nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial. Além disso, possuía indústria farmacêutica mais avançada que a inglesa e ampla produção de morfina, derivada do ópio.
Assim, antes da realização da Primeira Conferência Internacional do Ópio de 1911, a Inglaterra passou a exigir de todos os membros da conferência que estudassem a questão da produção e tráfico da morfina e da cocaína, de forma a se comprometerem, desde logo, com o princípio de uma legislação rigorosa contra o comércio dessas substâncias.
Dessa forma, antes da realização da Primeira Conferência Internacional do Ópio, em 1911, a Inglaterra passou a exigir dos participantes que estudassem a produção e o tráfico de morfina e cocaína, comprometendo-se desde já com o princípio de uma legislação rigorosa contra o comércio dessas substâncias.
A partir dessa estratégia, a Inglaterra conseguiu, em um único ato, dividir o ônus político do debate com outros países – que, à época, eram contrários à proibição da cocaína e da morfina – além de prejudicar os interesses econômicos da Alemanha. No entanto, o efeito prático mais importante foi inaugurar, no plano internacional, o combate às drogas de modo geral, antes circunscrito à questão do ópio.
Firmou-se, então, a possibilidade de proscrição da cocaína, por força da Primeira Conferência Internacional do Ópio (1911), da Primeira Convenção Internacional do Ópio (1912) e, do plano interno dos Estados Unidos da América, pelo Harrison Narcotics Tax Act de 1914.
Apesar disso, a cocaína, cujo uso recreativo foi proibido, já se fazia presente na história há muito tempo. A folha de coca (erythroxylum coca) era símbolo de divindade para os incas e, ainda hoje, é costumeiramente mastigada na América do Sul. Há cerca de cinco mil anos, a coca está intimamente ligada à identidade dos nativos dos planaltos andinos, que a utilizam para fins medicinais, culturais e ritualísticos.
A cocaína foi isolada das folhas de coca por Albert Niemann, em 1860. O cientista deu nome à substância e descreveu o processo de isolamento em trabalho de pós-graduação em Química na Universidade de Göttingen, Alemanha. Intitulada Über eine neue organische Base in den Cocablättern, a tese garantiu ao autor o título de philosophiae doctor.
Dois anos depois, a empresa alemã Merck, pioneira na produção de morfina, iniciou a produção de pequenas quantidades de cocaína, destinadas à venda para pesquisadores principalmente. A partir de então, o uso da substância começou a se expandir gradualmente.
Em 1863, o farmacêutico corso Angelo Mariani desenvolveu e patenteou uma infusão alcoólica de folhas de coca que potencializava o efeito do produto. O Vinho Mariani alcançou projeção internacional a partir de uma campanha publicitária que ressaltava os benefícios da bebida para a saúde e para o rejuvenescimento.
Até mesmo o Papa Leão XIII apreciava a bebida, sendo uma das personalidades vinculadas à propaganda oficial do produto. Inspirada pelo sucesso do Vinho Mariani, surgiu em 1885 a Coca-Cola, que continha álcool, extrato de coca e cafeína em sua fórmula. Atualmente, apenas a cafeína permanece na bebida.
Com a descoberta da cocaína, na segunda metade do século XIX, grandes laboratórios farmacêuticos da Alemanha e da Holanda passaram a importar quantidades significativas de folhas de coca das plantações existentes no Peru e na Bolívia.
Foi apenas em 1890 que os aspectos negativos da cocaína começaram a ser investigados e o potencial de vício logo se tornou evidente. O uso abusivo de cocaína passou a ser um problema associado às grandes cidades, envolvendo desde punguistas em Montreal até prostitutas em Montmartre, passando pelas atrizes no West End, em Londres e universitários de Berlim, que se desfaziam de tudo para alimentar a dependência.
Ainda assim, a cocaína já era amplamente popular no final do século XIX, despertando o interesse de pesquisadores como Sigmund Freud (1884), que, a partir de observações em terceiros e da própria experiência com a droga, professou otimismo quanto ao potencial da substância para combater condições como a debilidade nervosa, a indigestão, a caquexia, a dependência de morfina, o alcoolismo, a asma crônica e a impotência.
No início do século XX, a Holanda promoveu o cultivo de coca na ilha de Java, colônia que, em poucos anos, se tornaria a maior produtora mundial. Na mesma época, o Japão passou a explorar a cultura da coca em Taiwan. Essas produções asiáticas permitiram que indústrias farmacêuticas alemãs, holandesas e japonesas atendessem, entre as décadas de 1910 e 1940, à primeira grande demanda mundial proveniente do crescente consumo de cocaína.
O tratamento jurídico dirigido ao ópio e à cocaína pelo Harrison Narcotics Tax Act of 1914, no plano interno dos Estados Unidos, com efeito, teve nascedouro na base moral e puritana da sociedade, configurando o marco inicial do reconhecimento ao Estado para controlar, por meio da articulação entre medicina, direito e Tesouro Nacional, as práticas relacionadas ao uso do ópio, às folhas de coca, seus sais, derivados ou preparados. O argumento ético era o cerne da proscrição então inaugurada.
Seguindo o padrão estabelecido pelos Estados Unidos, quanto à criminalização do ópio e da cocaína, o Brasil promulgou o Decreto 4.294, de 6 de julho de 1921, estabelecendo penalidades para os transgressores na venda de cocaína, ópio, morfina e derivados, determinando a criação de estabelecimentos especiais para internação dos intoxicados pelo álcool e “substâncias venenosas”.
A pretensa proteção à saúde pública persiste como discurso oficial do direito penal das drogas. Mas a criminalização da cocaína inaugurou-se mais por interesses econômicos e geopolíticos do que pela necessidade de mitigar danos decorrentes do uso. Esse caráter simbólico persiste, embora por outros motivos, o que nos obriga a questionar a proibição e as trágicas consequências para a população.
Conteúdo relacionado: