Coelho Rodrigues, o civilista emérito e o mestre inigualável

23 de janeiro de 2023

Edvaldo Pereira de Moura Desembargador do TJEPI, Diretor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí

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A história de vida e trabalho do patrono do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí

Antônio Coelho Rodrigues foi um dos nomes mais expressivos da seleta cota de piauienses que ilustraram a cultura e a inteligência do Brasil, de meados do Século XIX à primeira década do Século XX. Quando faleceu, aos 66 anos de idade, deu o esperado descanso a um corpo exausto, constantemente enfermo, e o ansiado alívio a uma alma malferida pela luta indormida, que por 45 anos travara, com irrestrita dignidade e incondicional desassombro, visando à melhoria moral e material do seu País.

Desde sua mocidade amealhou grandiosas ambições e por elas soube lutar munido dos mais nobres recursos da retórica e da erudição. Trazia no corpo franzino, no fervor das veias e na intrepidez do caráter, a marca dos dois séculos de tradição de seus familiares à frente dos mais destacados negócios políticos, econômicos e sociais da província e do País.

Católico tradicional por formação e determinação, Coelho Rodrigues não recuava nem obtemperava suas ideias, quando falava ou quando escrevia; por isso, como Davi diante de Golias, teve de terçar armas com as mais poderosas falanges de apóstatas positivistas evolucionistas da corrente de Auguste Comte, Émile Littrè, Herbert Spencer, Ernst Haeckel e Émile Durkheim, quase todos componentes da Geração 70, alcantilados nas arcadas da Escola do Recife ou oriundos das forjas castrenses da Praia Vermelha. Um poderoso arrastão de ideias revolucionárias que veio para destruir os velhos bastiões conservadores e sobre os seus escombros erguerem os alicerces dos novos tempos e dos novos rumos reclamados pelo progresso irrefreável que despontava no alvorecer do Século XX. 

Em 1884, Coelho Rodrigues publicou, no Rio de Janeiro, o seu “Manual do súdito fiel ou Cartas de um lavrador a Sua Majestade o Imperador sobre a questão do elemento servil”. (…) Publicado na mais franca e coloquial das formas epistolares, é neste livro que vamos encontrar, desvelado e por inteiro, o Coelho Rodrigues erudito, mas sem os arroubos do “juridiquês”; aqui, não se tem a menor dificuldade em reconhecer, mesmo no anonimato, aquele antigo Coelho Rodrigues, mestre na esgrima das palavras, veterano nas verrinas jornalísticas, sempre irônico, incomodado, exsudando, de todos os poros, críticas incisivas e irreverentes à política liberal e à decadência da monarquia brasileira.

Vesceslau Tavares Costa Filho, advogado, doutor, mestre e especialista em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, publicou, em 2014, um ensaio curto e objetivo denominado “Antônio Coelho Rodrigues: um súdito fiel? Ruptura e continuidade na transição da monarquia para a república no Brasil”. A certa altura do seu trabalho, Venceslau Tavares, observa: “Em 1884, Coelho Rodrigues publica sob pseudônimo o seu ‘Manual do súdito fiel’, no qual vai expressar sua insatisfação em relação às políticas desenvolvidas pelo gabinete liberal à época. Coelho Rodrigues era um destacado membro do Partido Conservador e teceu uma série de críticas às políticas levadas a efeito pelo Governo, especialmente no que tocava ao chamado ‘elemento servi’”. […] “A questão central da obra em apreço é a escravidão, que é considerada por Coelho Rodrigues (1884, p. 108) como ‘irmã gêmea’ da Monarquia no continente americano. Assim, insinua que a abolição da escravidão entre nós levaria à supressão da monarquia. O que, de fato, terminou por ocorrer. De qualquer forma, ainda com o intuito de persuadir o imperador a não ceder aos abolicionistas, invocava o argumento da tradição ou dos costumes, bem a gosto dos historicistas: ‘Eu não creio que instituições seculares possam ser reformadas e transformadas de improviso a golpes de decretos; pelo contrário, atribuo a esse preconceito os resultados negativos das grandes aspirações da revolução de 1789, e receio muito que a escravidão, suprimida por esse processo, de que sobre a nossa raça africana, ressurja no dia seguinte por sobre a branca e a mestiça, que constituem a maioria do País.’ (RODRIGUES, 1884, p. 127).”

Coelho Rodrigues, às páginas 9 e 10 dessas cartas anônimas, já havia, nas palavras do seu alter ego, justificado o seu desafeto pelos abolicionistas: “Concluindo, julgo do meu dever confessar que, criado no meio de escravos e como senhor de escravos, não tenho à escravidão esse horror cômico e simulado, de que se mostram tão possuídos os conversos recentes do abolicionismo imperial, não; combato-a mais por convicção do que por zelo, e prefiro que ela continue mais algum tempo a que acabe proximamente, por uma luta, em todo caso perigosa, e pode bem ser que sangrenta.”

De Venceslau Tavares vem, ainda: “Coelho Rodrigues, contudo, foi um ferrenho defensor da manutenção da escravidão durante a monarquia, e só se manifesta clara e publicamente em prol da república após a sua proclamação e a expulsão da família real do Brasil”. Podemos concluir o assunto objeto dessa obra, lembrando que, a favor dos donos de escravos surgiram, no mínimo, quatro propostas indenizacionistas: a) a de João Maurício Wanderley, Barão de Cotegipe; b) a de João Alfredo Correia de Oliveira, penúltimo presidente do Conselho de Ministros do Império; c) a do Conselheiro Antônio Coelho Rodrigues e d) a do, também piauiense, Anfriso Fialho. De nenhuma delas, no Império ou na República, o governo tirou proveito. Em relação à última proposta sobre a indenização dos ex-proprietários de escravos, não podemos esquecer alguns fatos curiosos e pouco apreciados pela história oficial.

Anfriso Fialho, piauiense de Oeiras, nascido em 1840, foi um dos mais distintos oficiais do Exército brasileiro. Era major de artilharia e herói da campanha do Uruguai e da Guerra do Paraguai, já em funções civis quando, aos 51 anos de idade, publicou a sua “História da fundação da República no Brasil” (1891), obra indispensável a quem se decida a conhecer com profundidade os episódios finais da proclamação da República.

Homem de largos recursos financeiros, Anfriso Fialho teve seus estudos preparatórios feitos na Alemanha. Bacharelou-se em Direito em Portugal, atingiu o oficialato na Escola Militar do Rio de Janeiro e doutorou-se em Ciências Políticas e Administrativas pela Universidade da Bélgica, tendo-se notabilizado na política – foi deputado pelo Piauí à Constituinte de 1890/1891 – na advocacia e no jornalismo, principalmente nas lutas pela abolição da escravatura e pela proclamação da República. Publicou uma série de panfletos contra a monarquia e obras importantes, como: “Planta das operações dos aliados na Guerra do Paraguai de abril a setembro de 1869”, “Le Maréchal Bazaine” (1874), “Don Pedro II – Empereur du Brésil: notice biographique” (1876) e “O processo da monarquia brasileira” (1886). Anfriso Fialho foi o advogado que acionou o Governo para o pagamento de indenizações milionárias, decorrentes dos prejuízos causados aos proprietários, com a abrupta abolição da escravatura. Em requerimento dirigido ao então Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e Presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, Rui Barbosa, em 1890, Anfriso Fialho havia apresentado as bases para a fundação de um banco encarregado de indenizar os ex-proprietários de escravos, ou seus herdeiros, prejudicados pela lei de 13 de maio de 1888, deduzidos 50% de seu valor em favor da República. 

Como resultado disso, Rui Barbosa, em 14 de dezembro, do mesmo ano, mandou queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão, então existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, com a seguinte motivação: “Considerando que a nação brasileira, pelo mais sublime lance de sua evolução histórica, eliminou do solo da pátria a escravidão – a instituição que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade, inficionou-lhe a atmosfera moral; considerando, porém, que dessa nódoa social ainda ficaram vestígios nos arquivos públicos da Administração; considerando que a República está obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira.”

Na verdade, a iniciativa de Rui Barbosa não advém de sua vontade exclusiva; no parlamento, já havia ocorrido sérios debates sobre o assunto; muitos contra e muitos a favor do que se tornaria real depois da decisão de Rui.

A nobre e eloquente justificativa dada por Rui Barbosa para o caso, até hoje não conseguiu convencer ninguém sobre aquilo que ficaria sendo o maior dos crimes perpetrados contra a memória histórica do País. O mestre Rui, usando o fogo para apagar da história as provas documentais da nossa ci-devant escravidão, talvez estivesse inspirado na remissão dos pecadores pelo fogo “sagrado” do Santo Ofício e nos acontecimentos dos últimos dias do Antigo Regime francês, em 1793, quando, segundo Michel Péronnet, em sua obra Revolução Francesa em 50 palavras-chaves: “É época em que os sans-culottes e os patriotas empregam a expressão ci-devant para designar tudo o que diz respeito ao Antigo Regime. Tudo o que lembra a “ci-devant tirania” deve desaparecer através do fogo purificador. Um dos exemplos dessa aniquilação é a queima dos títulos feudais e a destruição de tudo o que lembra a monarquia, mesmo nas chapas de lareira, em Brumário do ano II (novembro de 1793). O que não pode ser destruído pelo fogo não deve, no entanto, deixar vestígio, e os nomes de batismo mudam.

A vontade de viver num mundo novo é acompanhada da rejeição do antigo e da aniquilação de tudo aquilo que pode lembrá-lo. Qualquer pessoa suscetível de desejar o retorno do Antigo Regime torna-se suspeita.

O estudo do professor, jurista e politico Wilson de Andrade Brandão, o maior especialista na obra jurídica de Coelho Rodrigues, não comporta nenhum acréscimo ao exame da vida e da obra deste grande vulto piauiense. No entanto, na valiosa contribuição do mestre consta apenas, sobre a morte de Coelho Rodrigues, a seguinte anotação: “Em janeiro de 1912, novamente, ganha essa consagração. Mais uma vez, senador da República. Da Suíça, país que amava, e onde procurava restaurar-se das canseiras, regressa para o Rio de Janeiro. Em caminho, na Ilha de São Vicente, falece, de súbito, a 1º de abril. Contava 66 anos. A vida tinha sido sempre cheia de alternativas. Desde moço desconfiara dela: Carpe diem, quam minimum credula postero.

Quanto ao local do falecimento de Coelho Rodrigues, as informações existentes em outras fontes só desservem e nada esclarecem. Damos por certo que Coelho Rodrigues encontrava-se na Suíça, em busca de melhoria para a saúde, quando recebeu o comunicado de que na eleição de 30 de janeiro ele havia sido escolhido, outra vez, para ocupar uma cadeira da representação piauiense no Senado Federal. A morte poupou o velho conselheiro de outra grande decepção: poucos dias depois de sua morte, a famigerada Comissão de Poderes do Senado, sob o controle dos conservadores, seus adversários, daria posse ao seu concorrente, Marechal Firmino Pires, depois de surripiar-lhe todos os seus votos válidos. Mesmo com seu estado de saúde fragilizado, Coelho Rodrigues teve de voltar para o Brasil.

A bordo, debilitou-se de tal forma que durante a viagem veio a falecer. Naquele primeiro dia do mês de abril de 1912, seu navio encontrava-se ancorado na Baía do Mindelo, enseada de São Vicente, uma das dez ilhas e oito ilhéus que formam o Arquipélago de Cabo Verde, então uma das possessões ultramarinas de Portugal, hoje país africano independente, localizado a 640 quilômetros da costa do Senegal.

Por ironia do destino, o velho conselheiro agonizou os seus últimos momentos exatamente na calma baía que, tantas e tantas vezes, servira como corredor do tráfico de nativos africanos, ponto obrigatório que era para o abastecimento de água potável dos abomináveis tumbeiros que se dirigiam às terras americanas. Assim, sobre as águas do Atlântico, em pleno verão cabo-verdiano, o genial filho do sertão piauiense e grande civilista brasileiro sorvia, como último hausto, a aragem amena e morna dos ventos alísios.

Os restos mortais do conselheiro Antônio Coelho Rodrigues, procedentes da Ilha de Cabo Verde, chegaram ao Rio de Janeiro do dia 6 para o dia 7 de maio; na sessão do mesmo dia 7,comovente discurso, lamentando a morte, o Barão do Rio Branco, a certa altura, assim se exprime: “Sucessivamente, e em pequeno intervalo, faleceram outros ilustres cidadãos recomendáveis pelos seus serviços à Nação e estimados pelos dotes elevados que ornamentavam os seus nobres espíritos. Relacionar os seus nomes é como abrir, perante os olhos do povo brasileiro, as mais elevadas páginas da nossa história política e parlamentar, porque foram no antigo regime e após a proclamação da República, na tribuna desta egrégia corporação e em outros pontos de notável saliência, exemplares notabilíssimos de altos talentos e abnegada dedicação à causa da grandeza da nossa Pátria, honrando o nome brasileiro. Os mortos ilustres aos quais me refiro e cujos nomes ficaram arquivados nos anais da nossa história e devem perdurar na memória e na saudade dos seus concidadãos foram os senhores Marquês de Paranaguá, Visconde de Ouro Preto e Conselheiro Coelho Rodrigues, brasileiros notáveis pelos seus talentos e serviços, os quais foram ornamento e lustre desta corporação quando nela tiveram assento”.

O Senador Joaquim Ribeiro Gonçalves, na mesma sessão, fez o necrológio de Coelho Rodrigues, concluindo assim: “E, senhor presidente, nada mais podendo acrescentar às palavras de V. Ex., venho apenas pedir se digne nomear uma comissão para acompanhar, amanhã, à última morada, os restos mortais de Coelho Rodrigues, ainda há pouco chegados a esta capital.”

Em seguida, disse o Senador Quintino Bocaiúva: “Acedendo ao requerimento verbal do honrado senador, nomeio para compor a comissão que deve acompanhar os funerais do nosso ex-colega, senhor Conselheiro Coelho Rodrigues, os senhores Ribeiro Gonçalves, João Luís Alves e Mendes de Almeida”.

Curiosamente, o comovido elogio do Senador Quintino Bocaiúva prestado àqueles mortos ilustres, poucos dias depois, serviria para ele mesmo, vez que faleceria em 11 de junho, aos 75 anos de idade. A sua vaga no Senado Federal, pela representação do Rio de Janeiro, foi ocupada pelo médico sanitarista, político e jornalista, ex-governador do Rio de Janeiro, Francisco Portela, piauiense, nascido em Oeiras e que, também, faleceria sem concluir seu mandato, menos de um ano depois, aos 80 anos de idade.

Assim, e que sobre isto não paire mais a menor dúvida, no dia 8 de maio de 1912, o corpo de Antônio Coelho Rodrigues foi sepultado no Cemitério São João Batista, do Rio de Janeiro, cidade da qual fora prefeito e onde havia durante muitas décadas ombreado com os maiores expoentes da magistratura e da política do País. A história acrescentaria àquele triste mês de abril de 1912, quando o navio que conduzia o corpo embalsamado de Coelho Rodrigues ainda se encontrava navegando em alto-mar rumo à costa do Brasil, a tragédia do Titanic, que na noite do dia 14, singrando em águas do Atlântico norte, colidiu com um iceberg, quatro dias depois de sair da Inglaterra, deixando um saldo de 1.517 mortos.

Em sua oportuna obra, “Direito Civil – Coelho Rodrigues e a ordem de silêncio”, publicada em Teresina, em 2006, Antonio Chrysippo de Aguiar questiona: “Inexplicável e sepulcral silêncio se abateu sobre a obra do jurisconsulto. As referências históricas de seus trabalhos foram relegadas ao anonimato. O trabalho jurídico prestado à nação brasileira por Coelho Rodrigues inexiste em sua inteireza. Por quê?” Justa e elogiável repulsa. No entanto, antes de procurar saber por que os juristas de fora tanto o desprezaram, cabe-nos perquirir, com indignação mais severa, os motivos que levaram os jornais piauienses da época a silenciarem, sem notícias nem comentários, o falecimento daquele que foi um dos maiores jurisconsultos, políticos e jornalistas brasileiros do seu tempo. Isso já nos dá a triste certeza de que aquela execranda ordem de silêncio estava aninhada em sua própria terra!