Especialistas brasileiros debatem com sociólogo espanhol Manuel Castells as distorções no processo político causadas pelo mau uso das redes sociais.
O sociólogo Manuel Castells é um dos pensadores mais influentes da atualidade. Considerado o principal analista da era da informação, ele investiga os efeitos dos últimos avanços tecnológicos sobre a economia, a cultura e a política das sociedades conectadas em rede. As recentes transformações políticas ocorridas no Brasil estão no centro de suas pesquisas. Para falar sobre suas conclusões, Castells participou do Seminário Comunicação, Política e Democracia, realizado em 16 de julho, no centro cultural da Fundação Getúlio Vargas (FGV), na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Além do convidado internacional, o evento contou com a participação do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, da editora da Revista Piauí, Fernanda da Escóssia, do diretor de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da FGV, Marco Aurélio Ruediger, e do pesquisador do DAPP/ FGV Vinícius Wu.
Na abertura, Wu e Escóssia – que apresentou pesquisa sobre a circulação de fake news durante a campanha eleitoral de 2018 – contextualizaram o debate com suas observações. Para eles, se há 25 anos havia otimismo com o início da Internet, hoje prevalece o sentimento de perplexidade frente à consolidação de megaestruturas de processamento e distribuição de informação, baseadas em inteligência artificial e campanhas de desinformação, que tem contribuído para distorcer o debate público em diferentes processos políticos mundo afora.
Marco legal – Felipe Santa Cruz disse que a Ordem está preocupada com a transformação das redes sociais, que de uma proposta democratizante passaram a ser “espaço de ódio, no qual se busca eliminar o adversário, destruir reputações, colocar para fora os piores instintos dos seres humanos”. O advogado criticou a captura desses instrumentos por grupos políticos e econômicos que buscam manipular o processo democrático e criar uma “verdade única”, em contraposição aos quais sugeriu a criação de novo marco legal.
“Falo na presença de importante ministro do nosso Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Ministro Luis Felipe Salomão (na plateia). Temos que enfrentar isso junto ao Congresso. Um marco legal para impedir a manipulação do processo democrático, das eleições, e que vise no dia a dia garantir a liberdade. Não adianta criar agências. Esse marco tem que passar pela formação cultural e pela certificação diária da liberdade de expressão, para que o Poder Judiciário tenha instrumentos para impedir o massacre de reputações. (…) Ou teremos uma visão proativa, que passe do debate à construção legal, como vários países do mundo estão tentando fazer, ou nossa geração verá perecer a democracia”, disparou o presidente do Conselho Federal da OAB.
Democracia em xeque – Marco Aurélio Ruediger apresentou um panorama do debate público travado no Brasil nos últimos anos. Segundo ele, como reflexos do processo iniciado em 2013, que passa pelas manifestações pró-impeachment, pela greve dos caminhoneiros, pela reforma trabalhistas e por outros momentos centrais da agenda nacional, a polarização provocou a “desintegração do centro político e a prevalência dos extremos, tanto à direita quanto à esquerda”.
“A democracia hoje está em xeque, não só no Brasil, mas em outros países do mundo. Existe um ataque sistemático às instituições, feito não apenas pelos grupos nos polos extremos do espectro político, mas também entre países”, disse Ruediger ao analisar o impacto da desinformação planejada, por meio da utilização de fake news e robôs (ou bots). Ele observou ainda que o debate político deixou de ocorrer apenas nos períodos eleitorais ou durante as grandes votações no Congresso: “Passamos a viver a política o tempo todo, quase em tempo real, e isso afeta completamente, inclusive, as decisões do mercado, que passa a ter que ficar atento às flutuações das bancadas, lideranças e votos quase que diariamente. Imprime no todo da sociedade uma dinâmica completamente distinta”.
Novo normal – Ao comentar a proposta da criação de novo marco legal feita por Felipe Santa Cruz, Ruediger observou que para avançar em questões que não estavam suficientemente claras quando da aprovação do Marco Civil da Internet (Lei n° 12.965/2014), talvez seja mais importante falar em responsabilização do que em regulação.
“Essa dinâmica social é nosso novo normal, não adianta imaginar que é episódico, vamos conviver com isso para o bem ou para o mal. Se no passado a sociedade brasileira foi capaz de se equipar para lidar melhor com o processo político, os aperfeiçoamentos e os impactos da televisão, do rádio e dos jornais, hoje precisa refletir sobre como vai lidar melhor com as redes sociais no seu futuro, maximizando o potencial positivo delas, contendo ou responsabilizando o potencial negativo que elas possam ter atualmente” concluiu.
“O poder reside nas mentes das pessoas”
Confira, em tradução livre, melhores momentos da palestra de Castells
“A comunicação é tema central hoje em dia em relação ao poder. As relações de poder são o fundamento das organizações, das instituições e das sociedades. São o DNA das sociedades, porque delas deriva tudo o mais. Então é importante saber como funcionam e como se transformam as relações de poder. A investigação que faço há vários anos para aprofundar esse tema me levou à conclusão de que, fundamentalmente, o poder reside nas mentes das pessoas.
Na teoria social através da história temos duas grandes interpretações: o poder baseado na coerção ou na persuasão. As duas relações se influenciam mutuamente, mas o que podemos observar empiricamente é que o poder que se embasa apenas na coerção é um poder débil, porque sempre há formas de escapar da coerção e, em algum momento, se rompe a dependência. Nesse sentido, as velhas teorias, desde Hobbes até as tendências contemporâneas de Weber, dizem que o Estado é o repositório do poder e detém o monopólio da violência. Para que essa violência possa ser exercida estavelmente e de forma duradoura é preciso construir formas de consenso ou, minimamente, formas de ressignificação. (…)
Tanto nas relações de dominação quanto nas de contra-dominação, as batalhas (pelo poder) são travadas nas mentes das pessoas. Ao falar sobre isso falamos sobre comunicação, porque o que define a espécie humana é que somos animais sociais, mas é a comunicação cognitiva e consciente o que nos caracteriza. Por conseguinte, as formas de comunicação são decisivas não apenas para entender, mas para atuar sobre e transformar as relações de poder. É através dos debates e, em última instância, das lutas travadas nas mentes das pessoas que se configuram as relações de poder em todas as sociedades. Não é distintivo da nossa sociedade, ainda que chamada de sociedade da informação e comunicação. A chamamos assim pela transformação das tecnologias, mas todas as sociedades da história têm sido sociedades de informação e comunicação. (…)
A transformação organizativa, institucional e tecnológica da comunicação desloca e reorganiza as formas de construção de poder. O que temos observado nos últimos 25 anos, na transição que descritivamente temos chamado de era da informação, é que houve deslocamento da comunicação social – não total, mas muito importante – dos grandes meios de comunicação de massa para as redes sociais.
O ‘novo normal’ é a comunicação em tempo real pelas redes sociais. Isso tem enormes consequências. Curiosamente, houve uma dissociação das formas de existência da informação e da comunicação. Tanto pela capacidade das corporações que controlam o tráfego nas redes sociais, quanto das agências estatais que nos controlam e vigiam, a informação está cada vez mais concentrada, embora a comunicação esteja cada vez mais descentralizada. São dois processos que interagem, porque como a comunicação se abre a todos e está absolutamente descentralizada, precisamente por isso, quem controla, vigia e utiliza as redes de comunicação tem toda a informação.
Quanto mais participamos e nos comunicamos, mais somos vigiados e mais a informação se concentra. Por conseguinte, os poderes fáticos de todos os tipos nunca tiveram tanta informação sobre a sociedade e os cidadãos. Ao mesmo tempo, nós cidadãos nunca tivemos tanta capacidade de comunicação. O conjunto das pessoas, potencialmente, também nunca teve tanta capacidade de vigiar a quem nos vigia. (…)
Houve um deslocamento da comunicação de massas para o que chamo de autocomunicação de massas, o que ocorreu pelo surgimento das redes sociais e pela construção constante, em tempo real, da capacidade de interrelação e, consequentemente, de sistemas de representação mental a partir dos quais guiamos nosso comportamento. Politicamente, nos processos de comunicação, houve perda de poder dos grandes meios de comunicação. As campanhas e processos de confrontação política não mais se decidem nos meios de comunicação, mas, fundamentalmente, nas redes sociais. (…)
Entender qual é o sistema mental de construção de narrativas e de recepção de mensagens é algo absolutamente fundamental para explicar grande parte das transformações políticas que acontecem em todo o mundo. A neurociência social é um campo em expansão, não das teorias, mas dos resultados empiricamente observados e constatados, tanto clinicamente quanto através de ressonâncias magnéticas. Mostra que nós humanos somos animais emocionais. A ideia de que somos racionais está superada cientificamente, pois nos movemos fundamentalmente por emoções. Utilizamos a capacidade de raciocínio para racionalizar nossas emoções. Primeiro decidimos o que queremos fazer, no que queremos crer. Em função disso, filtramos as mensagens e escolhemos quais delas queremos receber e quais vamos bloquear, na vida social, na vida econômica e na vida política. (…)
Debater todos os dias com todas as mensagens que recebemos é muito cansativo. Como regra geral – porque obviamente há exceções entre cientistas sociais e outras pessoas altamente conscientes – nossas relações com os sistemas de comunicação, tanto os grandes meios de comunicação de massa quanto as redes sociais, não são para nos informar, mas para nos confirmar. Por isso, nos organizamos em grupos de afinidade e combatemos os grupos não afins. A interação é baseada em uma tomada de decisão mental prévia, que define nossa construção emocional, do que gostamos e não gostamos. (…)
Os progressistas de todos os países passaram muito tempo indignando-se por não serem compreendidos. ‘Como podem ser tão brutos!? Como podem pensar que as vacinas são prejudiciais!? Como podem achar que as mulheres são inferiores!?’ Porque, entre outras coisas, isso lhes convém. (…)
Quando vemos as mobilizações políticas em torno de demagogos, em torno a programas de regressão social, a primeira coisa a fazer é entender porque as pessoas sentem e pensam assim. Caso contrário, o desprezo ao reacionário acaba em um elitismo autodestrutivo. (…) A democracia acaba sendo instrumento para que essas emoções negativas majoritárias se convertam em poder nas instituições. Recordem sempre: a democracia não garante a liberdade, a liberdade é que garante a democracia. Hitler foi eleito democraticamente.
Sem fazer paralelos excessivos, os estudos que venho realizando nos últimos anos sobre essas transformações nos sistemas políticos do mundo mostram que estamos em uma nova época, a qual Lukács chamou de ‘assalto à razão’. Não estamos outra vez nos anos de 1930, mas há mecanismos que reproduzem a mesma situação de incerteza ante grandes sistemas e instituições, há uma crise de legitimidade das instituições políticas. (…)
De forma resumida, meu livro mais recente ‘Ruptura, a crise da democracia liberal’ mostra como essa crise de legitimidade institucional explica a eleição de Trump, o Brexit, a ascensão da extrema direita nacionalista e quase fascista no conjunto das democracias europeias, e explica o Brasil também. Desgraçadamente, vocês não são únicos e originais. O que está acontecendo no Brasil faz parte de um processo muito mais amplo, no qual emoções negativas em termos de direitos humanos são maioritárias em grandes setores da população. (…)
O mundo vive um câmbio estrutural com a globalização, a transformação cultural, a multietnicidade, o multiculturalismo e algo muito importante, uma extraordinária revolução tecnológica que em grande parte é ignorada e incompreendida. As pessoas têm medo da tecnologia. Os jovens se agarraram mais rapidamente às tecnologias móveis, redes sociais e Internet porque são instrumentos de autonomia. A cultura jovem sempre foi a da autonomia. Mas para a sociedade em geral, sobretudo os setores mais vulneráveis à globalização e às instituições financeiras, a tecnologia é uma ameaça. Há o fantasma da robotização geral que elimina todos os postos de trabalho.
Os historiadores da tecnologia sabem que as máquinas eliminam alguns postos de trabalho, mas que para produzi-las e organizar o serviço são criados outros. Os impactos são pontuais, mas geram um rechaço à tecnologia e à velocidade das mudanças, que se expressa, por exemplo, na negação da ciência.
Há um contexto de ruptura na confiança das instituições e da classe política, no qual são geradas emoções negativas contra muitos elementos, como os bem pensantes ou as elites cosmopolitas que conhecem o mundo real. Sobre esses recaem os demagogos que sempre existiram, cuja única qualidade é a capacidade de encantar a população estimulando as emoções mais primitivas, como a violência, o racismo, o sexismo, a homofobia e o nacionalismo extremo. São emoções e não ideologias. Agitam a sociedade distribuindo essas emoções de forma inteligente nas redes sociais, em tempo real, ganhando as batalhas culturais e construindo uma nova consciência coletiva, que favorece a emergência de poderes democraticamente constituídos, porém contrários aos valores fundamentais da democracia.
Não se pode esquecer que não existem apenas os demagogos, mas quem permite e desenvolve esses demagogos, que são poderes fáticos de todos os tipos, fundamentalmente os poderes econômicos e financeiros a nível global e nacional. (…)A Folha de São Paulo publicou uma série de reportagens mostrando que vários grupos econômicos do Brasil estão desenvolvendo tecnologias para as redes sociais. Steve Banon tentou subverter a política democrática europeia por meio da construção de redes sociais de manipulação, que também funcionaram na campanha de Trump e que foram decisivas para sua eleição. Não foi a Rússia! Os russos fazem o que podem para desestabilizar as democracias ocidentais, isso é óbvio, mas eles não podem tanto quanto as próprias pessoas de um país, com conhecimento dos seus grupos e estratégias.
Sabemos que os irmãos Koch dos EUA financiaram no Brasil o Movimento Brasil Livre (MBL), que três anos antes da eleição de Bolsonaro e sem saber quem seria o demagogo que lhes representaria, construiu uma estratégia muito sofisticada de intervenção nas redes sociais. Segundo amigos hackers brasileiros, que trabalhavam para o PT, quando eles se deram conta já estava tudo organizado. ‘Nos custou muito tempo para reagir’, disseram. Em parte, porque as forças progressistas nunca haviam levado a sério as redes sociais. (…)
Em resumo, estamos em um novo mundo da comunicação, interativa, em tempo real, multidirecional, com temas que se amplificam sobretudo por parte dos que buscam manipular, dos que têm poder, dos que com literalmente milhões de bots tomaram as redes sociais. Graças a programas muito potentes, desenvolveram mensagens que passam por canais muito sofisticados de emoções, que sabem o que ativar a cada momento. (…)
Nesse mundo de comunicação em rede, nos resta estabelecer formas de contrapoder que evitem o que está ocorrendo, uma crise total das instituições políticas que defendem valores humanos universais e não apenas interesses econômicos. Isso requer compreensão muito mais profunda sobre o que é a nova relação entre comunicação, poder e sociedade. O trabalho que os senhores estão fazendo é fundamental. Estou com vocês”.
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Ditadura sutil
Na fase dos debates, respondendo às perguntas do público, Castells acrescentou: “Conheço bastante o Brasil, venho há 50 anos visitando regularmente este País, mas não o suficiente para me atrever a dizer nada sobre o que fazer. A única coisa que posso dizer, em termos genéricos, é que vocês neste momento estão entrando em uma ditadura da era da informação, uma ditadura sutil, na qual o imaginário de grande parte da população brasileira está voltado a direções totalmente opostas aos direitos humanos e ao respeito à liberdade. Há um processo de desconstrução de todas as instituições que permitiram ao Brasil, por exemplo, lutar contra a ditadura tradicional. O que passa por desmantelar a educação e as universidades, sobretudo as de humanidades e ciências sociais, porque uma cidadania pouco educada e mal formada é muito mais manipulável. A resistência última à manipulação das informações é a capacidade instalada nas pessoas de formar seus próprios critérios, opiniões e valores para resistir ao que pode ser uma barbárie cultural.
Há um projeto, que nós subestimamos, que passa pela manipulação das mentes e das emoções. A única coisa que não podemos fazer é negar a realidade. Não sei o que fazer, mas sei o que não fazer. Não se pode negar a realidade. Se há milhões de pessoas que sentem emoções que a muitos de nós parecem primitivas e não construtivas, temos que partir dessas emoções e tratar de dar respostas a elas, não as negar”.
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“Notícias falsas contaminam processo eleitoral”
Duas perguntas rápidas para o Ministro do STJ Luis Felipe Salomão, que assistiu ao Seminário na FGV
É importante ouvir Castells para entender o Brasil de hoje?
A era da informação traz reflexos para todos os campos, para o cenário econômico, cultural e político. Principalmente para nós que vamos estar à frente do processo eleitoral pelo lado do Poder Judiciário, no ano que vem, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), há o desafio de compreender como funciona esse fenômeno da comunicação de massas e, principalmente, tentar evitar as notícias falsas que contaminam o processo eleitoral. Estou de férias, mas vim aqui para acompanhar essa discussão porque é um momento muito importante para nós.
Já há estratégias no TSE para fazer face à desinformação?
Estamos conversando e avaliando isso no Tribunal. A presidente Ministra Rosa Weber tem preocupação com isso, assim como o futuro presidente, Ministro Luís Roberto Barroso. É um momento importante, de inflexão.