Concessão e permissão – Parte 1

12 de janeiro de 2012

Desembargador Federal do TRF-2ª Região e Membro do Conselho Editorial

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(Palestra proferida no VI Seminário – Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo, realizado pela Emerj)
 
Quero registrar, mais do que uma satisfação, a felicidade de estar entre amigos em um ambiente de diálogo. Vou dividir com vocês minha experiência em três grandes instituições: na Procuradoria do Município do Rio de Janeiro, na Procuradoria da República e no Tribunal Regional Federal.
 
Normalmente, a literatura tradicional sobre o assunto centra-se muito na figura do contrato de concessão e no serviço público de transporte em si mesmo. Tenho a impressão de que essa é uma perspectiva muito atomística, ou seja, desvinculada do sistema no qual onde essas premissas estão todas integradas. Se eu tivesse que fazer um apanhado de reforma, revisão ou de releitura, acho que teríamos que retomar um conceito que tem sido alterado, e me parece que isso é uma tendência em vários setores.
 
Quando estudamos direito administrativo, sempre pensamos na figura do Estado exercendo a sua função típica de administração. Os autores, de um modo geral, costumam entender que não é bem a figura do Estado a primeira premissa, e sim a ideia de interesse público que o Estado, a rigor, se destina a observar, porque a própria Constituição do Estado, sabidamente, decorre desse interesse público mais amplo, que hoje em dia os autores condensam na ideia de finalidade, na finalidade do interesse público, na finalidade em si mesma, que torna o próprio Estado como algo criado pela sociedade para servi-la a partir das linhas mestras estabelecidas na lei, por meio da ideia de finalidade e do atendimento do interesse público naquilo que é revelado por meio da lei.
 
Mas a tendência maior talvez seja hoje não a de pôr o Estado como o principal destinatário desse interesse público. Se fizermos uma análise e pensarmos na ideia de Estado pressupondo a sociedade, e a sociedade pressupondo o indivíduo, teríamos que seguir uma antiga tradição. Insisto em dizer que, hoje, ela vem sendo renovada para substituir o Estado na posição central dos estudos de direito público pela figura da pessoa.
 
Tenho a impressão de que a primeira ideia é de que não é o Estado ou uma terceira figura, distinta de todos nós, que seria titular dos interesses e das relações jurídicas travadas com o propósito de atender esse interesse público. A ideia central é que a pessoa, como figura de direito público interno, é hoje reconhecida também no direito público internacional como sujeito – e não apenas os Estados que integram o conjunto das nações. De forma que teríamos, tanto no plano interno quanto no externo, a pessoa humana como a figura pública máxima.
 
Isso tem vários reflexos. Na literatura mais revisada, veremos que essa noção de serviço público, que é a mais basilar, não se reporta mais a atividades essenciais do Estado, mas fala em satisfação, necessidades públicas ou, como preferem alguns, nos direitos fundamentais. Eu insisto que todo esse deslocamento feito hoje nos estudos e na literatura em geral objetiva transferir do Estado para a pessoa o centro das atividades realizadas por toda a sociedade. A sociedade é composta por indivíduos, entendidos como pessoas naturais, e, ao mesmo tempo em que cria o Estado para servi-la, toma a pessoa individualizada como a grande referência.
 
Isso é importante, porque se pensarmos no contrato de transportes, tal como revelado pelo direito comercial – prefiro essa expressão ao direito empresarial –, se usarmos a figura das obrigações decorrentes do contrato de transportes, veremos que a única maneira de idealizarmos algo que pudesse exprimir essas novas divisões seria conjugar esses esforços que o direito comercial apresenta, relativos à ideia do contrato de transporte, com as ideias administrativas e as ideias renovadas sobre o direito administrativo.
 
E isso, indissociavelmente, nos leva à idéia de serviço público, nessa versão mais adequada de atender aos direitos fundamentais, associada à idéia de transporte coletivo. A literatura ainda é fracionada, já que, se analisarmos somente o instituto do contrato de transporte, teremos que buscar o direito comercial. Se analisarmos o transporte enquanto serviço, temos que buscar o direito administrativo. Mas essa visão dicotômica, dividida, também sofre hoje certa limitação, porque temos aí para alguns um ramo do direito administrativo, e para outros um novo ramo, que de certa forma abrangeria os dois aspectos, que se chama direito regulatório ou direito da regulação. Que, por sua vez, tem outra ideia de intervenção do Estado na economia, que é objeto de outro conhecimento, mais amplo, que seria o direito público da economia, e que só poderiam ser conjugados se analisássemos as figuras do contrato do serviço de transportes sob essa ótica da intervenção.
 
Mas há uma contradição histórica entre a ideia de intervenção e de regulação. A Constituição da República insere a ideia de intervenção no capítulo da ordem econômica. Isso foi uma conclusão extraída de duas constituições – a alemã e a mexicana – que de alguma forma dotaram os textos constitucionais da figura da ordem econômica e da ordem social, que seriam as duas grandes vertentes constitucionais e que a rigor não são duas, porque não se pode dissociar o que econômico do que é social.
 
Mas a contradição que me parece curiosa e que merece ser discutida, e que os livros pouco revelam, é a ideia de ordem econômica, revelada pela Constituição alemã – que foi editada após a 1ª Guerra Mundial e recebeu muitas críticas, pois permitiu a eleição de Hitler. Mas foi uma constituição que marcou muito a história mundial e constitucional, não só porque nessa época grandes escritores e filósofos surgiram na Alemanha, nem porque grandes ideias constitucionais surgiram daí, mas porque era uma constituição que afirmava o papel do Estado. Ao tratar de ordem econômica, tratava do Estado ampliando seus poderes, deixando a figura do Estado liberal e passando a assumir uma amplitude na economia. Curiosamente, em nossa Constituição, nesse capítulo da ordem econômica, é que encontramos a ideia de intervenção do Estado na economia. E a intervenção do Estado na economia, revelada no Brasil pela prática das agências reguladoras, parte exatamente do contrário, da diminuição do Estado no aspecto econômico, já que o Estado deixa de ter as paraestatais e as aliena. E o Estado, para agir como interventor, precisa não ser titular de instituições paraestatais, ele precisa que os particulares façam essa tarefa, e ele passa a ser o grande regulador.
 
Vejam que, ao mesmo tempo em que a intervenção do Estado na economia pressupõe a ausência do Estado como agente econômico, do Estado praticando por si mesmo os atos, transportando, produzindo, fabricando, nós temos a intervenção que é o oposto, ou seja, o Estado não sendo agente econômico, apenas determinando regras e assumindo a posição de líder da economia, sem ele próprio ser protagonista concreto nos vários negócios que são realizados a esse respeito. Onde está a contradição? É que a intervenção é integrada à ordem econômica e pressupõe a ausência de Estado na atividade econômica. Só que a noção de ordem econômica, historicamente, é uma noção de presença do Estado. Então nós temos uma Constituição que trata da ordem econômica, em sua inspiração na Constituição alemã com intervenção e participação do Estado, e temos no capítulo da ordem econômica a retirada do Estado.
 
Isso aparentemente não é notado, porque a evolução das ideias sobre ordem econômica vem assumindo a posição do Estado presente não para realizar, mas para regular. E essa noção de regulação, da qual já se falou – e que não se confunde com regulamentação, já que não estamos apenas interpretando textos de lei para verificar os rumos que o chefe do executivo possa dar, como acontece na edição de regulamentos administrativos –, tem um papel hoje de mais flexibilidade e atualidade nas questões econômicas, porque é impossível que o legislador consiga ditar normas de conteúdo técnico econômico, ou técnico jurídico-econômico, em tempo hábil para que possa fazer frente a situações concretas ligadas à economia. A solução foi fazer algo que já se fazia no Brasil. Assim como na Justiça do Trabalho temos a possibilidade dos dissídios coletivos, que decorrem e resultam da incapacidade do Estado de regular em cada município do Brasil todas as atividades econômicas, utiliza-se esse sistema do Tribunal julgar e criar regras com o mesmo caráter abstrato, genérico, para situações específicas, dada a incapacidade de o Estado fazer isso. O raciocínio é quase o mesmo para essas instituições de regulação, que permitem a determinados órgãos, por critérios estritamente técnicos, editar regras com muito mais agilidade e rapidez para determinar situações da economia, no seu estado de vanguarda que se encontra hoje em dia, que cheguem a tempo para alcançar os seus destinatários.
 
Então, creio eu, é difícil pensarmos em qualquer atividade econômica no país sem pensarmos em intervenção, regulação, em uma visão mais ampla de ordem econômica. Sempre que aparecem problemas no tribunal, os advogados trazem os temas sob o ângulo específico da ordem econômica, esquecendo que, muitas vezes, na Constituição, alguns temas da ordem econômica estão expressos em conjunto com a ordem social, porque elas são a rigor indissociáveis. É impossível achar que qualquer atividade econômica no Brasil possa ser dissociada da atividade social. São lados da mesma moeda: embora a Constituição use a nomenclatura dupla, ordem econômica e social, elas são indissociáveis.
 
E essa indissociabilidade se espraia por todo o sistema constitucional e, consequentemente, por todo o sistema jurídico da economia do país. Isso chegará à ideia dos contratos de concessão de serviços de transporte coletivo nos municípios, nos estados e na União. Falo em contrato de concessão de forma muito tranquila, porque a literatura clássica sobre o tema sempre viu na concessão a única forma de dar à atividade de transporte coletivo a organização própria que permita à administração pública e aos particulares terem uma situação de equilíbrio. Porque os contratos de concessão de serviço público seriam os mais apropriados para as mais variadas atividades, inclusive aquelas a que damos menos importância. O serviço de táxi no Rio de Janeiro, por exemplo, continua sendo ainda objeto de permissão. Nem todos os lugares são assim, e me parece que do serviço de táxi ao de transporte coletivo, o ideal seria que a figura da concessão fosse utilizada. Entretanto, no Brasil, são poucos autores que questionam esse caráter contratual da concessão, mas no exterior a situação é contrária.
 
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