Concessão e permissão – Parte 2

12 de janeiro de 2012

Desembargador Federal do TRF-2ª Região e Membro do Conselho Editorial

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Antes da Constituição de 88, com a desorganização do sistema de transporte coletivo no Brasil, os municípios não iniciavam licitações, não cobriam por contratos esses serviços. Por necessidade, de forma precária, editavam atos administrativos que eram, na verdade, permissões, criadas diante da necessidade de se atribuir transporte para determinadas áreas, e, como toda permissão, eram marcadas pela precariedade. Sabidamente, a permissão e a autorização, apesar das mudanças que tivemos nos últimos anos, tanto na Constituição como em leis, devem ser consideradas distintas pelo tipo de interesse que se vê protegido ali. Na autorização, como acontece no caso de porte de arma, o interesse imediato é do particular. Na permissão, o interesse do particular e o interesse público são equivalentes, ou o interesse público é preponderante. Por isso, permitiu-se que empresas de ônibus realizassem atividades em determinados pontos, já que havia o interesse público de que esses ônibus atendessem à demanda por transporte coletivo.
 
Mas a permissão nunca foi vocacionada para ter as mesmas vantagens tanto para o particular quanto para o Estado em matéria de transporte coletivo. Para o particular, é garantido o equilíbrio financeiro e econômico do contrato, o que inclui a garantia de que as tarifas cobradas seriam adequadas ao serviço prestado, além do direito que esses concessionários teriam de ter sua situação jurídica definida. Ao passo que, ao mesmo tempo, permitia à administração, com cláusulas de serviço e com caderno de obrigações, estabelecer os pontos fundamentais para que aquele serviço se realizasse a contento. O contrato de concessão seria o ideal, portanto, para esse tipo de atividade.
 
Mas como disse um jurista francês, se o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora o Direito. Tínhamos um país em que a permissão se espraiava, estava em todos os lugares, enquanto a concessão era cada vez menos usada, criando, inclusive, barreiras reais para a possibilidade de participação de outros empresários. Nessa época, a permissão era outorgada de forma simples, muitas vezes desprovida de qualquer comunicação, e, quando se via, o ônibus já estava transportando passageiros. Surgiu, então, uma teoria muito particular que veio por conta da permissão. Um administrador público outorgava a uma empresa áreas que coincidiam com as linhas de ônibus já outorgadas a outro permissionário. A concessão tinha a vantagem de evitar isso, porque era submetida à discussão pública, às impugnações públicas. Mas isso não acontecia com a permissão, que muitas vezes era outorgada noite adentro, e por um ato administrativo ao amanhecer havia um ônibus circulando pelo mesmo trajeto que outra empresa já explorava. Criou-se, então, a teoria da “concorrência ruinosa”, exatamente por conta das permissões, para evitar a coincidência de percursos de linhas de ônibus. Quem perdia com isso era a população, porque não havia debate nenhum, como acontece hoje nas concessões, com a regulação da economia por essas agências reguladoras.
 
Eu falo isso porque as agências reguladoras são obrigadas a fazer audiências públicas, que são quase formais, mas permitem dar legitimidade a essas agências, já que elas exercem, de forma extraordinária, os três poderes da República. Se o Poder Legislativo exerce a função preponderantemente normativa, se o Executivo exerce a função preponderantemente administrativa, se o Judiciário exerce a função preponderantemente jurisdicional, a agência reguladora tem de fato o controle das três funções do Estado. Ela edita normas jurídicas como se legislador fosse; pratica atos administrativos em função das suas próprias normas, como se administração fosse; e aplica multas, passíveis de serem impugnadas pelo judiciário, mas ela tem o mesmo caráter coercitivo e é árbitra em alguns casos envolvendo matéria regulatória.
 
Então, a ideia da audiência pública que legitima a regulação, acaba não existindo nessas figuras da permissão que geralmente, como disse, ocorria em situações de escritório, de gabinete. Mas a Constituição, sabendo que as permissões no Brasil estavam todas sendo utilizadas em detrimento da concessão, acabou, no dispositivo nº 175, dando à permissão esse caráter de equivalência à concessão. Era um ato unilateral; não era um contrato, mas seria a permissão de serviço público mais um caso de exigência de licitação.
 
O que aconteceu posteriormente foi a edição de várias leis com o propósito de equipar cada vez mais a permissão, atribuindo-lhe um caráter qualificado, às vezes fixando prazos, e denominou-se, contraditoriamente, de permissão qualificada ou permissão condicionada. Mesmo assim, o fato é que as empresas continuaram limitadas àquele grupo, sem a possibilidade de outros grupos participarem do serviço público. Essa ideia de concorrência a licitação de certa forma traria. O problema é que, no município do Rio de Janeiro, e na maioria dos municípios brasileiros, essas empresas, por questão de necessidade prática, acabavam prestando o serviço porque a sociedade assim exigia. Temos que sopesar essas necessidades e os novos interesses concorrenciais que implicariam, inclusive, na melhoria do serviço. Tudo em prol da pessoa, do serviço público dirigido ao seu verdadeiro destinatário – o usuário.
 
O fato é que essa questão nos leva a outro aspecto. Na concessão, que é o contrato padrão e que também é tomado, creio eu, como parâmetro pela Constituição e pela lei, há prazo certo, porque ela tem que ser transitória, não pode ser perpétua. E, na realidade que encontramos hoje, por exemplo, no Rio de Janeiro, essas permissões se perpetuaram. Então, seja por sua natureza precária, seja por causa da transitoriedade dos contratos administrativos, uma coisa é certa: deveria existir uma renovação nesse período em que o serviço fosse realizado. E o único jeito é por licitação, em que todos possam participar sem restrições. A concessão interessa a todos: aos mais capacitados, àqueles dotados de melhores condições para oferecer o serviço aos usuários sob a ótica da entidade que o administra ou mesmo aos próprios empresários, que farão investimentos e terão retorno no limite dos seus investimentos e interesses. Ou a licitação, que se impõe à permissão, também interessa a todos.
 
Isso significa que esses prazos não podem ser perpétuos, porque não são propriedade. Se falarmos em perpetuidade, estaremos falando em propriedade no sentido mais clássico, e não em atos que são por natureza limitados no tempo. Voltando ao estudo do modelo da concessão, ela era determinada em prazos específicos, que hoje em dia estão diminuindo. Chegaram a ser de 99 anos, parâmetro utilizado pelo direito internacional. No Brasil, esses prazos chegaram a ser de 80 anos, e hoje estão em torno de 30 anos, dependendo do tipo de atividade econômica.
 
Nos EUA, por exemplo, há uma agência reguladora por cada Estado para administrar esses contratos e várias em nível federal. No Rio de Janeiro, são duas: uma de energia e outra para transporte. No Brasil, no meu entender de forma equivocada, entendeu-se que a regulação da economia dependia de emenda constitucional. Então, tivemos emenda constitucional para criar agência reguladora de eletricidade, de petróleo e, depois isso, foi se perdendo, e algumas agências não tiveram previsão constitucional. O fato curioso é que a ideia do que a regulação faz, a rigor, já estava embutida na Constituição pela ideia de isonomia. Mas não foi isso que aconteceu, e instituições reguladoras dependeram de emendas.
 
Qualquer atividade econômica, mesmo que específica, está sujeita à regulação. É a melhor orientação, porque não se pode imaginar que o Ministério da Fazenda ou o da Indústria e Comércio venha a editar atos, resoluções, para determinar atividade, quando isso depende de critérios estritamente técnicos. Reconheço que muitas vezes as agências reguladoras acabam cometendo pecados ou praticando atos incompreensíveis. Tudo decorre do mesmo problema: falta de motivação dos atos normativos dessas instituições. Em alguns países, não se pode praticar nenhum ato de regulação sem fundamentação. No Brasil, temos esses atos praticados como se fossem dispositivos legais. Darei um exemplo prático, que aconteceu ao longo dos primeiros cinco anos da década de 2000, e que muito marcou os tribunais quanto ao controle dessas agências. Na questão do petróleo, uma mera portaria da ANP exigia que as empresas de distribuição de petróleo tivessem uma tancagem mínima de gasolina para que fosse possível a distribuição. Os empresários reclamaram que não teria vazão e isso geraria prejuízos. Parecia, pela argumentação dessas empresas, que se tratava de uma forma de privilegiar grandes empresas e desprestigiar pequenas. Houve vários processos nesse sentido. Telefonei na mesma tarde para a ANP perguntando aos procuradores o motivo da portaria – ninguém me informava. Não tendo respostas de vários outros lugares, liguei para um professor de economia da UFRJ, que lidava com regulação, e ele também não sabia. Deferi a liminar e aí veio uma série de críticas nos jornais contra a decisão. Até que eu aceitei um convite para visitar uma unidade de depósito de gasolina. Tentei perguntar aos engenheiros o motivo, mas só me diziam que eu tinha que cumprir a portaria. Em algum momento eu escapei e entrei no local dos tanques. Achei um funcionário, disse que era um visitante e perguntei a ele por que o tanque era daquele jeito. Ele respondeu que precisava daquilo para manter a segurança dos empregados, a qualidade de fiscalização e que, sem a tancagem mínima, não haveria lucro para pagar tudo isso. Aí eu entendi.
 
Ao voltar ao tribunal, escrevi um artigo dizendo o porquê dessa exigência mínima de tancagem – por causa da questão ambiental, de segurança do trabalho e de segurança da região em torno do depósito. Sem esse tanque mínimo, não haveria dinheiro para pagar tudo isso. Então, a regulação é malfeita; ela tem muitos poderes, mas é malfeita. Aí, temos um problema prático que é o destinatário final, o usuário.
 
O fato é que esses contratos de concessão são contratos administrativos porque a lei assim o diz, pois há um interesse público determinando isso. O contrato de concessão tem por característica ser remunerado pelo usuário, pelo particular. Resumindo, não vejo como possamos hoje imaginar a ideia do serviço público de transporte coletivo dissociado da ideia de concessão.
 
O problema é que essas concessões têm prazo de 30 anos para que o concessionário possa receber, a contento, o montante de dinheiro para pagar os gastos com ônibus e pessoal mais o lucro. Mas, após esse período, na concessão, salvo previsão legal ou cláusula específica nos contratos, eles se exaurem no tempo. Ou seja, acaba o regime e uma nova licitação acontece. A concorrência traria melhores ônibus e motoristas formados em outras condições. Então, não há, por natureza, com o fim da concessão, uma indenização. No entanto, é preciso previsão na lei. O que pode ocorrer é que, nessa passagem do fim do contrato para a nova licitação, essa remuneração que se faz por meio das tarifas, ou eventualmente de subsídios aos concessionários, possa não ter sido realizada de forma a manter o equilíbrio do contrato. Isso é possível, mas dependeria de uma previsão ou de um exame caso a caso. Se não se quebrar o equilíbrio, não há indenização.
 
Houve um caso de uma empresa ferroviária que recebeu da agência reguladora uma linha antiga para ser utilizada. Mas a licitação foi feita de forma açodada, e parte da descrição da área não foi informada ao vencedor. O preço era normal, tudo o mais. Porém, o advogado revelou que um trecho da linha tinha uma ponte quebrada, e isso não estava no edital. Sem a ponte, a empresa não receberia os valores necessários ao equilíbrio. O volume gasto para construir outra ponte não seria pago pelo contrato em questão. O relator dizia que, nesse caso, haveria de se aplicar uma multa para que a empresa cumprisse o contrato. Mas o valor da multa era superior ao que empresa arrecadaria com a tarifa. Se a empresa construísse a ponte, se romperia o equilíbrio. Para quê o particular vai negociar com o Estado se ele não vai receber nada ou vai ter prejuízo? Isso é contrário à noção de negócios. Eu estava dizendo o óbvio: o equilíbrio financeiro do contrato não vai existir.
 
Esses problemas práticos acabam naquilo que eu falei no início, de que a finalidade do serviço público é a pessoa humana. E o principal prejudicado nesse caso era essa figura. Temos que pensar nessa figura do usuário como central, verdadeiro destinatário desses contratos. Espero que isso seja a razão pela qual nós estamos reconhecendo que não é o Estado o centro, e sim a figura da pessoa humana.
 
Muito obrigado.
 
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