Conflito de competência entre tribunais arbitrais e a competência do Superior Tribunal de Justiça

23 de novembro de 2022

Joana D’arc Amaral Bortone Advogada

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Conhecido incidente de conflito de competência, nos termos do art. 66 do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015, equivalente ao art. 115 do CPC/1973), se configura quando dois ou mais juízes declaram-se competentes ou consideram-se incompetentes para o processamento e julgamento de uma mesma matéria, ou ainda quando existir controvérsia acerca da reunião ou separação de processos entre duas ou mais autoridades judiciárias.

E quando o já conhecido e eficaz incidente jurídico, originário do Processo Civil, traz situação inusitada para arbitragem? Trata-se de questão inédita para jurisprudência e doutrina nacional, a possibilidade de suscitar conflito de competência entre dois tribunais arbitrais perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Superados debates primitivos sobre a constitucionalidade da Lei de Arbitragem (Lei nº 9.907/1996), que restou definitivamente dirimida ao ter sua constitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2001, e seu caráter jurisdicional também reconhecido pela jurisprudência do STJ em 2014, surge questão inédita sobre conflito de competência entre tribunais arbitrais, diferente das já conhecidas hipóteses de conflito entre juízo estatal e câmara arbitral, nas quais inúmeros precedentes solidificaram não só as cláusulas arbitrais, mas a competência do juízo arbitral para definir sua própria competência – kompetenz-kompetenz – garantindo a segurança jurídica para o ainda novo meio alternativo de resolução de conflitos.

A hipótese de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral, é conhecida e pacificada pela jurisprudência dos tribunais superiores, em razão da previsão constitucional e função que lhe é atribuída no art. 105, I, “d” da Carta Magna, de conhecer e julgar conflito de competência estabelecido entre tribunais diversos.

Mas, em havendo conflito de competência entre tribunais arbitrais, seria competente o Superior Tribunal de Justiça para dirimir tal conflito? Questão imprescindível para responder essa pergunta é a natureza jurisdicional a atividade realizada pela arbitragem, já reconhecida à exaustão pelo STJ e solidificada por sua jurisprudência.

Não obstante a aceitação nacional do caráter jurisdicional da arbitragem, muito ainda se discutia sobre a possibilidade de equiparação do árbitro ao “juiz de fato e de direito”, que se assim o fosse, colocaria na condição de órgão passível de protagonizar conflito de competência, nos termos do art. 66, CPC e 105, I, “d”, da Constituição Federal. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou tal questão no julgamento do leading case CC nº 111.230/DF, no qual a 2a Seção do STJ confirmou o caráter jurisdicional da arbitragem, reconhecendo a possibilidade de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral, cuja competência é do Superior Tribunal de Justiça.

Tal confusão se deu em razão do reconhecimento de que o tribunal arbitral, a despeito de não compor organicamente o Poder Judiciário, deve ser compreendido na expressão “quaisquer tribunais” a que se refere a norma constitucional, sobretudo porque, assim como o Judiciário, tem competência para resolver o conflito de interesses em definitivo, aplicando a lei ao caso concreto.

O referido julgado representou uma confirmação de direção na jurisprudência do STJ, quando se passou a admitir o processamento de conflitos de competência protagonizados entre tribunais arbitrais em confronto com órgãos integrantes organicamente do Poder Judiciário.

Contudo, admitindo que o Direito é ciência que está em constante movimento e transformação, acompanhando uma globalizada sociedade para aprimorar, lapidar e adequar sua tarefa à realidade social, em julho de 2022, bate às portas do Superior Tribunal de Justiça questão inédita sobre o referido tema: o conflito de competência entre dois tribunais arbitrais. E sendo passível de conhecimento, quem seria competente para julgar o suposto conflito?

Para responder os dois questionamentos, imprescindível voltar duas casas e relembrar os esclarecimentos trazidos acima de que, uma vez estabelecida a natureza jurisdicional da arbitragem, o tribunal arbitral se insere indubitavelmente na expressão “quaisquer tribunais”, contida no permissivo constitucional, sendo possível vislumbrar não só a hipótese primitiva de conflito entre jurisdição estadual e arbitral, mas também entre os próprios tribunais arbitrais, à justificar em ambos os casos sua apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça. Foi nesse sentido o acórdão lavrado pela 2a Seção do STJ, à unanimidade, no julgamento do CC nº 185.702/DF.

Concluiu-se na ocasião do julgamento que compete ao Superior Tribunal de Justiça conhecer e julgar originariamente os conflitos de competência entre quaisquer tribunais (leia-se, Tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal, Tribunais Regionais Federais e tribunais arbitrais), ressalvado o disposto no art. 102, I, “o” (conflito entre tribunais superiores a ser julgado pelo STF), bem como entre tribunal (os mesmos antes referidos) e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos.

Após a acertada interpretação da norma constitucional, qualquer dúvida ainda existente sobre a competência do juiz de primeira instância, inde­pendente da necessidade de interpretação da cláusula compromissória arbitral, resta dirimida pela ausência de competência e atribuição legal ou constitucional a esse propósito, não existindo qualquer relação de hierarquia ou vinculação entre o juízo estatal e arbitral, razão pela qual foi acertadamente afastada pelo acórdão supracitado. Na mesma linha no que tange aos tribunais de segunda instância que, nos termos da norma constitucional, teriam competência residual para dirimir conflitos entre juízos a eles vinculados.

Situação idêntica ocorre com os tribunais arbitrais que ainda que se encontrem situados na mesma unidade da Federação, não são vinculados a nenhum Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, ainda que se utilize do paralelismo de estruturas entre as jurisdições estatal e arbitral. Por essa razão, afirmou o relator, Ministro Marco Aurélio Bellizze, em seu voto:

Importa reconhecer, na verdade, que, se a redação constitucional não pressupõe que o conflito de competência perante o STJ dê-se apenas entre órgãos judicantes pertencentes necessariamente ao Poder Judiciário, de todo descabido estabelecer qualquer vinculação do tribunal arbitral, que não compõe a organização do Poder Judiciário, a qualquer órgão de primeira ou de segunda instância deste Poder estatal.

É de se estabelecer, nesses termos, segundo penso, a competência do Superior Tribunal de Justiça, em atenção à função constitucional que lhe é atribuída no art. 105, I, d, da Carta Magna, para conhecer e julgar o conflito de competência estabelecido entre tribunais arbitrais”

Questão curiosa de se destacar é que, na hipótese do caso supracitado, ambos os tribunais arbitrais eram vinculados a mesma câmara de arbitragem. Todavia, como sabido, quem ostenta o poder jurisdicional na arbitragem, com exclusividade, é o árbitro eleito pelas partes para formação do painel arbitral. A câmara de arbitragem e seus diretores apenas administram o procedimento arbitral, sem interferir em nenhum ato decisório cuja competência não lhes foi atribuída, o que afasta definitivamente a possibilidade de determinar a competência dos tribunais a ele vinculados e que profiram decisões inconciliáveis entre si.

E ainda que assim não fosse, em razão da tenra idade da Lei de Arbitragem e sua vigência reconhecida no ordenamento jurídico brasileiro, não há previsão expressa pela Lei, tampouco pelo regulamento da câmara de arbitragem daquele caso concreto. E tal previsão seria impossível, uma vez considerado que a eleição de árbitros pelas partes, para constituição de cada painel, atende ao princípio da autonomia da vontade e do interesse das partes, princípio esse basilar de qualquer procedimento arbitral, limitando sua competência, inclusive, ao litígio para o qual foi eleito. 

Ademais, assim como acontece com a lei, o regulamento de arbitragem nem sempre é capaz de prever todas as situações práticas que mereçam um regramento específico a fim de prevenir e solucionar impasses originados daquele conflito. Se não fosse suficiente, nunca é muito lembrar a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil no que for omissa a lei de arbitragem, que deve ser interpretada de maneira sistemática e teleológica para garantia de sua finalidade.

Assim, conclui-se que não há como rejeitar o cabimento do conflito de competência em hipóteses similares, sob pena de admitir a subsistência de deliberações jurisdicionais exaradas por tribunais arbitrais que se excluam mutuamente, como se houvesse um vácuo no ordenamento jurídico, negando-se às partes a definição do órgão arbitral efetivamente competente para resolver a causa posta em julgamento, conferindo-lhes instrumento processual eficaz para esse propósito, em manifesto agravamento da insegurança jurídica, fazendo imprescindível a utilização do incidente de competência, para indicar, diante de cada caso concreto, o juízo – arbitral ou estatal – competente para solução do conflito.

Em se tratando de dois tribunais arbitrais, compete ao Superior Tribunal de Justiça, em especial atenção à função constitucional que lhe foi atribuída, conhecer e julgar conflito de competência estabelecido por esses tribunais que ostentem natureza jurisdicional, ainda que vinculados à mesma câmara arbitral, considerada a inexistência de disciplina regulamentar arbitral ou legal específica sobre o tema.

Nota____________________

1 (STF. SE5206 AgR, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 12/12/2001, DJ 30/4/2004, PP-00059, EMENT. VOL.-02149-06 PP-00958).