Edição 291
Conhecendo a Circunscrição Judiciária Militar
8 de novembro de 2024
Arizona D’Ávila Saporiti Araújo Jr Juiz Federal da Justiça Militar
Introdução
A Justiça Militar da União é ramo especializado do Poder Judiciário Federal. Julga com exclusividade crimes militares relativos às Forças Armadas brasileiras praticados por qualquer pessoa, civil ou militar, nacional ou estrangeira.
Nossa Constituição Federal estabelece os órgãos do Judiciário. Dentre eles, temos a Justiça Militar da União (JMU), insculpida como os Tribunais e Juízes Militares, fórmula que toca também as Justiças Militares dos Estados. Ela define ser competência da JMU processar e julgar os crimes militares definidos em lei, reservando à lei ordinária sua organização e funcionamento.
A Lei de Organização Judiciária Militar (LOJM) traz como órgãos da JMU o Superior Tribunal Militar, a Corregedoria da Justiça Militar, o Juiz-Corregedor Auxiliar, os Conselhos de Justiça, os Juízes Federais da Justiça Militar e os Juízes Federais Substitutos da Justiça Militar.
Diz ainda: Para efeito de administração da Justiça Militar em tempo de paz, o território nacional divide-se em doze Circunscrições Judiciárias Militares, discriminando os estados que as compõem, incluindo o Distrito Federal.
Logo, podemos ver que a Circunscrição Judiciária Militar não é um órgão da Justiça Militar da União, mas a forma como esta é organizada em primeiro grau.
O centenário das CJMs – Há exatos 104 anos, a Justiça Militar da União reorganizou sua primeira instância, quase tão antiga quanto o Conselho Supremo Militar e de Justiça, origem do atual Superior Tribunal Militar, criado pelo então Príncipe Regente Dom João, em 1o de abril de 1808. No início, a Primeira Instância da JMU era organizada em Juntas, Conselhos Mistos e Conselhos de Guerra.
No dia 30 de outubro de 1920, um Decreto instituiu o Código de Organização Judiciária e Processo Militar, provendo maior racionalidade à estruturação da Primeira Instância da Justiça Militar. Com ele, surgiram as Circunscrições Judiciárias Militares (CJMs), em número de 12. Elas podem ser definidas como parcelas do território nacional nas quais os juízes de primeira instância exercem sua jurisdição.
Em seguida, outro Decreto, de 16 de dezembro do mesmo ano, designou as sedes das Circunscrições de Justiça Militar em tempo de paz e nomeou os primeiros magistrados de cada uma delas, aos quais se referiu como Auditores. Tais sedes são o que hoje conhecemos por Auditorias, equivalentes a uma Vara da Justiça Federal comum.
As CJMs nos dias de hoje – Atualmente, a cada uma das 12 Circunscrições corresponde uma Auditoria, salvo a 1a CJM, com quatro, a 2a CJM, com duas, a 3a CJM, com três e a 11a CJM também com duas Auditorias. Dentre as CJM integradas por mais de uma Auditoria, a 3a CJM é a única onde todas não estão na mesma cidade. Ficam em Porto Alegre (1a), Bagé (2a) e Santa Maria (3a). As Auditorias ficam situadas nas capitais, salvo Juiz de Fora, Bagé e Santa Maria.
Em cada Auditoria, atuam dois juízes federais, titular e substituto, bem como os Conselhos de Justiça, presididos pelo juiz togado e composto por quatro oficiais.
Os Conselhos Especiais de Justiça julgam oficiais, enquanto os Conselhos Permanentes de Justiça julgam militares que não sejam oficiais (praças). Já os civis, isoladamente ou em conjunto com militares, são julgados apenas pelo juiz togado.
Uma grande diferença em relação às Comarcas das Justiças Estaduais e às Seções Judiciárias da Justiça Federal comum é a extensão territorial. As menores CJM abrangem um estado inteiro, enquanto as maiores dois ou mais estados. Em tom de brincadeira, é comum juízes da JMU se referirem à 12a CJM como a maior Comarca do planeta. Com sede em Manaus, a ela pertencem Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia.
O gracejo não é desprovido de sentido. Por exemplo, a 8a CJM, segunda maior, abrange Pará, Maranhão e Amapá, com área total aproximada de 1.722.486 km2, ou seja, maior que França, Itália, Espanha e Polônia juntas.
O tamanho continental do Brasil se reflete na primeira instância da JMU. Os desafios que isso representou na época dos processos físicos, em papel, eram imensos, como trazer testemunhas e réus para depor presencialmente, intimações, perícias etc. Eles foram bastante mitigados com o advento do processo judicial eletrônico – sistema e-Proc –, implantado com pleno êxito pelo Superior Tribunal Militar no ano de 2018, durante a gestão do Ministro José Coêlho Ferreira.
Importante lembrar que compete aos Conselhos de Justiça das Auditorias da circunscrição com sede na Capital Federal processar e julgar os crimes militares cometidos fora do território nacional (LOJM, art. 27, parágrafo único).
Perspectivas para o futuro – Fruto da constante inovação normativa em nosso país, em 2019 foi introduzida no Código Penal comum a figura do Juiz das Garantias, que é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário.
A figura do Juiz das Garantias se baseia no conceito de que tal separação de funções evitará que o juiz do processo se “contamine”, mesmo que de forma inconsciente, por apreciações que já tenha feito na fase inquisitorial. Embora o conceito não goze de unanimidade entre os operadores do direito, sua criação tem por objetivo separar a cognição judicial dos atos investigatórios, pré-processuais, daquela realizada no processo criminal.
Apreciando a matéria, em dezembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) publicou o acórdão da decisão que reconheceu a constitucionalidade do juiz das garantias. Por seu turno, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou em maio de 2024 as diretrizes da política judiciária para implantação do instituto.
Nesse passo, a Corregedoria da JMU e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados da JMU (ENAJUM) organizaram fórum em outubro do corrente ano com os juízes da JMU sobre o tema. Três ideias iniciais foram apreciadas, sem embargo de outras que possam surgir: a) juízes da mesma Auditoria exercem, reciprocamente, as funções de juiz das garantias entre si; b) juiz atua como juiz das garantias em Auditoria diversa da sua originária; c) criação de novas Auditorias para a função de juiz das garantias.
Frisando se tratar de pesquisa qualificada de opinião, pois a decisão caberá ao Plenário da Corte, a ideia melhor avaliada foi a primeira, ficando a terceira – novas Auditorias – com a segunda maior adesão.
A nosso ver, foram boas escolhas. Prestigia-se num primeiro momento a forma mais simples e eficiente para pronta implantação do instituto, enquanto foca na opção que mais qualifica a JMU no médio e longo prazo.
Nesse sentido, vale destacar alguns aspectos importantes que podem passar despercebidos a um olhar menos atento ou menos afeito a esse ramo do Poder Judiciário.
Diferentemente da JMU, cuja competência constitucional é exclusivamente criminal, suas “coirmãs”, as Justiças Militares Estaduais (JMEs), possuem competência tanto criminal quanto para ações cíveis relativas a punições disciplinares. As JMEs tiveram esse acréscimo competencial 20 anos atrás, com a EC no 45, de 2004.
Desde então, há reflexões no sentido de também aumentar a competência da JMU. Em síntese, a ideia seria atribuir a ela as ações contra atos disciplinares militares, bem como ações sobre matéria administrativa militar em que a União figure na condição de autora, ré, assistente ou oponente, exceto questões exclusivamente remuneratórias.
Sem embargo da natural dificuldade do processo legislativo envolvido e da necessária composição interna no Poder Judiciário, a ideia tem ao menos dois méritos. De um lado, harmoniza ramos especializados do Poder Judiciário, aproximando o funcionamento da JMU e das JMEs. De outro, além de permitir olhar especializado sobre matérias afetas às inúmeras peculiaridades das instituições militares, faculta uma distribuição ainda mais eficiente de acervos processuais.
O vínculo entre a organização da JMU em CJMs, com suas Auditorias, e a criação de novas Auditorias é justamente o incremento do acervo processual, fruto do eventual aumento de competência da JMU. Noutras palavras, a depender do acréscimo de feitos, poderão ser necessárias novas Auditorias – não muitas, talvez três. E o exercício da jurisdição como juiz das garantias se afigura compatível com a instrução e julgamento dos processos cíveis advindos da nova competência. Nesse quadro hipotético, seria uma solução duplamente útil.
A partir da concretização das ideias acima, elas poderão servir como alicerces sólidos para a Justiça Militar da União se debruçar sobre outra questão relevante: a criação dos seus tribunais regionais. Único ramo do Poder Judiciário Federal que deles ainda não dispõe, poderá ter na mencionada confluência de fatores caminho viável para esse importante aperfeiçoamento.
Nas palavras de Robert Goddard: “é difícil dizer o que é impossível, pois a fantasia de ontem é a esperança de hoje e a realidade de amanhã”.
Conteúdo relacionado: