Constituição e intervenção

31 de março de 2010

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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Os cidadãos geralmente presumem que a Consti­tuição é um todo harmônico que responde ao conjunto dos problemas públicos e privados com a coerência que permite a sobrevivência institucional estável. Essa nem sempre é a realidade e, muitas vezes, as dessintonias constitucionais são a origem de crises institucionais a que a própria Constituição não responde, dificultando, mesmo na forma de ações judiciais, a prudente ação, principalmente dos tribunais superiores.
Hans Kelsen (1873/1973), o grande jurista austríaco do século XX, tendo vivido longo tempo em Harvard/EUA, que contribuiu para a construção da Constituição de Weimar (1919) e redigiu a Constituição Austríaca (1920), quando foi criado o Tribunal Constitucional, procurou desenvolver uma convincente teoria sobre a coerência normativa interna a partir dos pressupostos constitucionais. Todavia, definindo as variáveis que presidem a estrutura da Ordem jurídica, o jurista identificou que a Ordem não apenas tinha uma dimensão de coerência hierárquica, mas convivia com conflitos normativos e, no seu conjunto, possuía diversas lacunas hipoteticamente colmatáveis através de ações de efeito jurisprudencial produzidas pelos tribunais superiores.
A Constituição brasileira de 1988, devido à sucessiva superposição de Emendas Constitucionais (cerca de 60), assumiu uma natureza ímpar, permitindo que o seu corpo geral mais se explique pelos conflitos e lacunas sistêmicas do que pela sua coesão normativa interna. Neste sentido, ganharam dimensões discursivas abertas questões que envolvem a ordem política, fragilizando significativamente os mecanismos de controle da constitucionalidade e os mecanismos constitucionais de controle de situações políticas complexas.
A recente crise do Distrito Federal, neste sentido, abre o espaço discursivo necessário para que se avalie a sua evolução não apenas em função dos movimentos de seus atores, mas principalmente através dos mecanismos constitucionais que podem viabilizar a superação: o impeachment de autoridades executivas e legislativas e a intervenção política nos poderes Executivo e Legislativo. O texto constitucional não propriamente se estende sobre o item referente ao impeachment, mas tem informações suficientes sobre a questão da intervenção política (no caso em poderes do Distrito Federal), hoje suscetível direta ou indiretamente a nove emendas que desequilibraram a matéria constitucional originária.
Neste sentido, desde sua redação originária, a Constituição é bastante objetiva quando dispõe que, dentre as funções institucionais do Ministério Público, existe a de promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados nos casos previstos nesta Constituição (IV, 129). Por outro lado, em linha complementar, dispositivo constitucional dispõe que a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para (art. 34): pôr têrmo a grave comprometimento de ordem pública (III); ou, garantir o livre exercício de qualquer dos poderes nas unidades da federação (IV).
Aplicadamente a questão parece linear, mas na verdade a representação de intervenção no caso concreto do Distrito Federal, apesar da visibilidade alcançada na interrupção das ações do Poder Judiciário, ainda não está suficientemente visível no que concerne ao grave comprometimento da ordem pública, aliás, um dispositivo que, como veremos na forma do texto constitucional, não tem uma explícita dimensão de eficácia. Todavia, é claro, os deputados, não propriamente na ausência de evidência dos fatos, mas de suporte jurídico, poderão evoluir para a solução localista do impeachment dos autores executivos e legislativos; o que, em princípio, já foi detonado e não poderá ser interrompido, demonstrando a fragilidade da proposta de intervenção federal ou, no caso, a sua ineficácia.
Não há como negar, no entanto, que, na evidência, o autor provocou a desagregação da crise de direito comum, segundo noticiário judicial, procurando subornar autoridade pública, ou trouxe aos autos documentos falsos (noticiário jornalístico), condutas que caracterizam a figura constitucional típica de interceptação do livre exercício de poderes (art. 34, IV). Em quaisquer dos casos, as figuras constitucionais típicas, a primeira poderia gerar efeitos interruptivos em ação que já tramita no Superior Tribunal de Justiça, à medida que a esse Tribunal compete processar e julgar originariamente (art. 104), nos crimes comuns, os governadores dos Estados e do Distrito Federal (art. 105, I, a), excetuados os crimes de responsabilidade, que também não estão restritos à órbita judiciária, o que fragiliza o livre exercício (do Poder Judiciário) no Distrito Federal.
De qualquer forma, essa questão pode ser — como está sendo — apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, porque se inclui dentre as suas competências julgar e processar originariamente habeas corpus em caso de crime comum de governador de Estado ou do Distrito Federal (art. 102, I, i). Esta posição se torna mais explícita à medida que a solicitação de intervenção federal dependerá (art. 36) de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida pelo Poder Judiciário (art. 102, I, i). Vê-se, por conseguinte, que tudo indica a efetiva similaridade com o caso da crise do Distrito Federal, vista da perspectiva do crime comum, deixando faltar ao Supremo iniciativas fundamentais para a eficácia da decisão.
Por outro lado, e essa nos parece uma especialíssima leitura, quando se verifica que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar e processar originariamente diferentes itens de conduta (art. 102, I), não se identifica em qualquer das letras sua explícita competência para decidir sobre intervenção nos Estados ou no Distrito Federal (art. 34) a fim de pôr termo a grave comprometimento da ordem pública (art. 34, III), deixando, por conseguinte, em aberto, figura constitucional típica de grave turbulência e desajuste entre poderes (que só se complica por eventuais renúncias), ou funcionamento anômico ou entrópico de qualquer um dos poderes. Da mesma forma, dentre essas competências do Supremo Tribunal Federal está aquela de provocar a intervenção federal (art. 49, IV) nos casos de necessidade de se garantir o livre exercício dos Poderes nas unidades da Federação (art. 34, IV), mas não tão simplesmente.
Nestes casos, resta observar que os caminhos consti­tucionais federais para intervenção em Estados ou no Distrito Federal são estreitos e poderão exigir um esforço hermenêutico, juridicamente extensivo e nem sempre politicamente aconselhável. Para concluir, deve-se observar que o Decreto de intervenção presidencial (art. 84, X, c.c. art. 36, § 1º), consequente de apreciação positiva do Supremo Tribunal Federal, nos casos originários de violação do livre exercício dos poderes (art. 34, IV), deverá ser necessariamente aprovado pelo Congresso Nacional (art. 49, IV), sendo que, voltamos a repetir, silencia-se a Constituição sobre a competência da União para intervir nos casos em que os Estados ou o Distrito Federal envolvam-se em grave comprometimento da ordem pública (art. 34, III). Essa posição mais se fortalece à medida que, durante a vigência da intervenção federal, fica suspensa a tramitação de Emendas Constitucionais (art. 60, parágrafo 1º).
Finalmente, ocorre que, independentemente da tecitura constitucional, que atribui ao Congresso Nacional (art. 49, IV) poderes para apreciar o Decreto de intervenção presidencial (art. 84, X, c.c. art. 36 § 1º), após manifestação do Supremo Tribunal Federal, a matéria está permeada pela Lei orgânica do Distrito Federal (e dos Estados) nos casos de violação do livre exercício dos poderes (no caso crimes comuns). Assim, para o correto andamento do procedimento, o Superior Tribunal de Justiça, preliminarmente, deverá solicitar na forma da Lei Orgânica do Distrito Federal (ou de qualquer Estado), licença prévia (art. 60, inc. III), autorizada por dois terços dos membros da Assembleia Legislativa, para abrir processo penal contra o governador, e, somente então, havendo condenação, seguir para o Supremo Tribunal Federal, para manifestação sobre o cabimento do Decreto de intervenção presidencial.
A intervenção federal, por conseguinte, é um mecanismo de alta complexidade, porque o texto constitucional, procurando preservar a independência dos poderes e a autonomia federativa, construiu mecanismos que mais se destinam a interceptar o processo de intervenção federal nos Estados (e no Distrito Federal) do que propriamente a viabilizá-lo, tornando-o um instituto de baixa eficácia jurídica e política e de remota motricidade, na forma da Constituição (e suas emendas). Nestas especiais circunstâncias, constitucionalmente, o Distrito Federal ficou em situação privilegiadíssima, pois adquiriu os poderes dos entes federativos e, ao mesmo tempo, protegeu-se da posição hierárquica da União, que, tradicionalmente, nas federações (e repúblicas) marca a sua organização e determina a sua dinâmica política.
Conclusivamente, para enfrentar as situações de crise, especialmente nos crimes de responsabilidade, resta apenas a Lei orgânica do Distrito Federal, no que não estiver em conflito com a histórica lei federal, a figura típica do impeachment. O quadro político do Distrito Federal caminha num processo lento e cauteloso, mas deixa evidente a necessidade de organização, evitando excessos políticos, aos efetivos propósitos federativos para que sua funcionalidade não seja vítima da própria estrutura.