Consumo e tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas

5 de junho de 2005

Presidente do Conselho Editorial e Consultor da Presidência da CNC

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Este é um tema de abordagem sempre preocupante, eis que seria de nenhum valor o conhecimento da História se fosse afirmado ser o problema das drogas um fenômeno recente, cabendo ressaltar que até o homem mais primitivo conheceu o seu uso para fins não-terapêuticos. Porém, nunca o fenômeno pareceu tão ameaçador como na sociedade dos nossos dias, já que a droga gera hoje níveis insuportáveis de violência, desestabiliza governos constituídos e pode servir de pretexto para ações de cunho intervencionista, adquirindo, pois, evidentes contornos políticos.

Remontam ao início do século, com a proposta do Presidente Theodore Roosevelt, em 1909, de examinar o problema do ópio que afligia a China, as tentativas de se introduzir, por meio do esforço solidário de um grupo de países, a cooperação internacional no combate às drogas. Treze nações reunidas em Haia, mais tarde, em 1912, aprovaram a Convenção do Ópio, a partir de quando catorze instrumentos internacionais sobre o controle de drogas foram concluídos. Depois, a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, aprovada em Viena, em 1988, representou importante avanço, eis que enquanto as convenções anteriores – reflexo de sua época – se concentravam quase exclusivamente no cultivo e na produção, a Convenção de Viena dispõe sobre o tráfico, isto é, a atividade que reúne duas vertentes, a da oferta e da demanda, de cuja Convenção o Brasil foi um dos signatários.

Se, de um lado, ainda há razão para otimismo desmedido – sobretudo se considerarmos as estatísticas reveladoras de aumento progressivo no número de dependentes – de outro, cumpre reconhecer que os trabalhos e o tempo dedicados à tarefa não foram vãos. É inegável que a quantidade e a diversidade de reuniões sobre temas tão diversos, como o da fiscalização do comércio de determinadas substâncias químicas empregadas na fabricação de entorpecentes ou o da substituição de cultivos ilícitos, entre outros, possibilitaram percepção mais nítida da complexidade do fenômeno das drogas.

Não é possível examinar as razões que provocaram a expansão – sobretudo nos países em desenvolvimento – do cultivo ilícito de drogas, sem que se reflita, necessária e obrigatoriamente, sobre a sua situação sócio-econômica.

A partir daí, entende-se porque um comércio de alta rentabilidade, como o de entorpecentes venha a estimular a produção da folha de coca ou papoula, por exemplo, em detrimento do plantio de produtos de preço cada vez mais aviltante para o trabalhador do campo. A falta de opções, numa economia sufocada por problemas típicos daqueles países, não poderia senão contribuir no sentido da escolha pelo lucro fácil e garantido, embora ilegal.

A dinâmica, no caso do aumento da produção ilícita, é fácil de detectar. No entanto, se nossa preocupação se concentrar no aspecto da demanda, nas causas que levam um número cada vez maior de pessoas ao abuso de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, a despeito de todas as proibições e de todos os riscos, aí teremos matéria para longa e complexa consideração.

Houve um tempo, e não muito distante, em que se acreditou estar a solução do problema na repressão à produção. Entendia-se que, erradicados os cultivos, a demanda desapareceria. Essa crença, além de contrariar a consagrada lei de oferta e da procura, pecava por subestimar, de maneira ingênua, a inesgotável capacidade que tem o ser humano de buscar alternativas, quando se trata de satisfazer uma necessidade, um desejo, ou a rendição a uma dependência.

A realidade dos fatos provou a inconsistência dessa premissa, resultando na mudança de atitude dos países que antes a defendiam. Ficou claro que a erradicação de cultivos, além de não inibir a demanda por drogas, acabou por aumentar o recurso a substâncias químicas, altamente tóxicas, para fabricação doméstica de entorpecentes e alucinógenos.

Essa comparação fez ruir mais uma premissa falaciosa: a de que o mundo se dividia em países “produtores” e países “consumidores”, já que é induvidoso de que se produz a droga nos países de alto consumo da mesma maneira que se consome a droga nos países de produção mais elevada.

Chegamos, então, a um estágio em que não existem, neste caso, nem heróis nem vilões. Não há mais lugar para a transferência de culpas ou a fuga de responsabilidades. O problema é comum a todos e a solução não pode estar confinada a uns poucos.

Há, hoje, felizmente, o consenso mundial sobre a necessidade de se abordar o aspecto da demanda, a fim de permitir o tratamento da questão das drogas de perspectiva ampla e abrangente, que leve em consideração suas diferentes vertentes: a produção, a demanda, a oferta, a distribuição e o tráfico ilícitos, sem esquecer a prevenção do uso indevido e a reabilitação dos dependentes.

É com base nessa percepção global que o Brasil tem atuado, tanto nos foros internacionais, quanto internamente, na adoção de políticas e programas de combate às drogas. A Constituição brasileira, da qual tive a honra de ser o Relator-Geral, promulgada em 1988, define como crime inafiançável e não-suscetível de graça ou anistia o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins; prevê programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente; e dispõe sobre a expropriação de terras utilizadas no cultivo ilegal de plantas destinadas à fabricação de drogas.

O mundo assistiu, no ano de 1990, a mais uma demonstração do empenho da comunidade internacional, no intuito de eliminar a trágica presença das drogas entre nós, quando, em Nova York, se reuniu a XVII Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, e aprovou dois documentos: uma Declaração Política e um Programa Global de Ação.

Aliás, pouco antes dessa Sessão Especial, reuniram-se em Cartagena das Índias os Presidentes de Bolívia, Colômbia, Estados Unidos e Peru. A escalada dos crimes cometidos em decorrência das atividades dos traficantes mobilizou a opinião pública e revelou a fragilidade dos mecanismos de controle ao tráfico, tanto nos três países andinos, quanto no país mais desenvolvido do hemisfério. Este é outro exemplo de que as drogas estendem seus tentáculos, indiscriminadamente, sobre países ricos e pobres, desenvolvidos ou em desenvolvimento. A Reunião Presidencial de Cartagena ressaltou também a preocupação de Bolívia, Colômbia e Peru com a urgente necessidade de recursos para a implementação de políticas de substituição de cultivos de folha de coca.

Por outro lado, os Chanceleres da Argentina, Brasil, Colômbia, México, Peru, Uruguai e Venezuela, reunidos, posteriormente no México, reiteraram a firme decisão de combater o narcotráfico dentro do estrito respeito à soberania e à integridade territorial dos Estados. O princípio da responsabilidade compartida nos leva a refletir que em momentos difíceis é preciso estender a mão, não fazer estéreis acusações e caminhar na mesma direção.

Em que pese o registro favorável de realizações bem sucedidas na busca de solução para o problema, ainda estamos longe de alcançar o ideal de uma sociedade livre das seqüelas derivadas do uso indevido das drogas. De todas as metas que pretendemos atingir, o controle da demanda parece ser o maior desafio. O homem pode, na prática, destruir plantios, policiar o tráfico, punir os traficantes, criar meios de fiscalizar atividades ilícitas e confiscar bens e dinheiro oriundos do comércio ilegal de drogas. Mas como se deve atacar a demanda? A proibição legal do uso indevido e, mais grave ainda, o próprio risco inerente ao consumo indiscriminado, não foram armas suficientemente fortes para debelar o mal.

Torna-se, portanto, cada vez mais imperiosa a fixação de diretrizes que permitam maximizar as possibilidades da cooperação internacional nesse campo. A tarefa de definir políticas de redução da demanda passa necessariamente por programas de prevenção do uso indevido. Campanhas de esclarecimentos à população, utilização criteriosa dos meios de comunicação, orientação do mestre-escola, conscientização dos pais e dos adolescentes, são alguns dos recursos de que nos devemos valer.

Entretanto, não basta estabelecer políticas e definir metas, sem um profundo conhecimento da realidade. Há que buscar, honesta e corajosamente, sem subterfúgios, dentro de nossos valores sócio-culturais, dentro de nossas peculiaridades como nações, seja individualmente, seja como parte da comunidade internacional, as causas que contribuem para que se expanda, de maneira incontrolável, o consumo de drogas na sociedade moderna. É preciso assumir atitude destituída de qualquer preconceito, sob pena de não alcançarmos o objetivo principal: o ideal de um mundo livre da violência associada às drogas.

Por igual, sabemos que tratar de um aspecto do problema de maneira estanque não trará resultados satisfatórios. Nenhuma política será efetiva se não considerar medidas destinadas ao controle de precursores químicos e mecanismos que impeçam a lavagem do dinheiro oriundo do tráfico. O cuidado com o meio ambiente tampouco deve ser esquecido.

Dentro da mesma linha de pensamento, os resultados só serão frutíferos se as decisões não se afastarem do respeito à soberania das nações, à sua integridade e à sua identidade. A cooperação internacional não pode servir de instrumento para o exercício de pressões de qualquer natureza, nem de justificativa para ações intervencionistas, sob pretexto de proteção à paz e à segurança internacional. Aliás, esses princípios estão consagrados em nosso país e devem continuar a servir de base para nossas ações, dada a inalteração da sua atualidade.

É preciso acrescentar novas idéias ao patrimônio que está sendo acumulado ao longo de quase um século. É preciso avançar. Pensar no presente com olhos no futuro. Esse trabalho deve contribuir no sentido de fazer prevalecer o espírito de solidariedade que a todos tem guiado, a fim de que as gerações futuras encontrem um mundo menos violento, mais justo e mais digno para o ser humano.

Sem esquecer o que é fundamental: ninguém deve agir sem convicção…ninguém forma convicção sem conhecimento… e ninguém adquire conhecimento sem leitura, informação e muito estudo.