Contracheque sem fundos

5 de novembro de 2003

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Os altíssimos salários, nessa idéia compreendidos os vencimentos, proventos de aposentadoria e pensões, mais cedo ou mais tarde, se não forem redimensionados aos limites máximos permitidos pela Constituição, poderão até provocar a inusitada figura do contracheque sem fundos, se é que essa já não existe em alguns rincões do país. Procura-se, com essas singelas observações, apenas despertar um debate mais amplo da sociedade em geral sobre se é ou não possível a persistência desse caótico quadro em nome do direito adquirido, que, antes de ser adquirido, tem de ser direito, do ponto de vista formal e material, e até, ou principalmente, pelo prisma da legitimidade.

É consabido que a Constituição insculpiu entre os direitos e garantias individuais o princípio de que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI).

A coisa julgada significa a imutabilidade do que foi decidido no processo valendo também para processos futuros. Faz lei entre as partes e o decidido torna-se não suscetível de modificação perante o próprio ou outro juízo e tribunal. No século retrasado, o clássico Pereira e Sousa já dizia que a autoridade da coisa julgada faz presumir verdadeiro tudo quanto se contém na sentença, e, como esta presunção é juris et de jure, exclui toda a prova em contrário. Por isso se diz que a sentença que passou em julgado faz do branco preto, e do quadrado redondo.

A despeito desse secular ensinamento, de um tempo a esta parte surgiram juristas, pessoas muitíssimo bem intencionadas, da melhor qualidade, defendendo a relativização da coisa julgada, uns em maior, outros em menor dimensão. Quer dizer, em linguagem vulgar, a coisa julgada poderia ser desfeita, mesmo afora dos casos já legalmente previstos e que são em número fechado (violação literal a disposição da lei, sentença fundada em erro de fato etc. – art. 485, CPC). Essa teoria, se vingar, fará que a prestação jurisdicional, que se encontra à beira do abismo, dê um passo à frente, lembrando velha piada.

Parafraseando as célebres palavras de madame Manom Roland, pronunciadas ao pé da guilhotina, minutos antes de sua execução, “ó!, liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!”, substituindo apenas a palavra “liberdade” por “direito adquirido”, chega-se à conclusão de que, em nome dele, inúmeros outros direitos, de uma grande maioria, estão sendo injustificadamente sacrificados em prol daqueles que a imprensa apelidou de “marajás”.

Segundo J. H. Meireles Teixeira, Duguit, famoso doutrinador francês, em conferência realizada na Universidade de Cairo, em 1926, afirmou que em poucos meses completaria meio século de magistério de direito e, até então, não sabia perfeitamente o que era o direito adquirido. Em outro passo, lembrou advertência de Epitácio Pessoa, que, além de Presidente da República, foi notável jurista, no sentido de que se o direito adquirido for levado às últimas conseqüências, ficará engessada a administração pública.

Nessa linha, há de se relativizar o direito adquirido, suprimindo dessas remunerações astronômicas tudo aquilo que ultrapasse o limite máximo previsto na Constituição, transferindo-se esse excesso aos milhões de brasileiros que estão percebendo aposentadorias  parcas e vergonhosas.

Na colisão entre o direito adquirido de poucos e o direito à vida de muitos, ambos igualmente garantidos pela Constituição, há de prevalecer o último, em nome dos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da segurança social.

Pela viabilidade da previdência social, espera-se que assim seja, para que não se corra o risco de amanhã ter em mãos contracheques sem fundos.