Contratos de aprendizagem e a polêmica CBO

5 de março de 2012

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1. O contrato de aprendizagem é um contrato especial de emprego; o caráter educativo é que o distingue dos demais

Nos termos do artigo 428 da CLT, “o empregador se compromete a assegurar” ao aprendiz “formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação”.

Algumas atividades são obviamente incompatíveis com a aprendizagem, tais como o corte da cana, a carga e descarga de caminhões, a limpeza de calçadas e outras, eis que não exigem formação profissional sistemática e metódica.

Entretanto, agentes da fiscalização, adotando uma visão excessivamente ampliativa e baseados em normas regulamentares expedidas pela autoridade do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, exigem que a base de cálculo da cota de aprendizes seja feita tomando como padrão unicamente a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO.

2. O artigo 429 da CLT determina que todos os estabelecimentos respeitem a cota mínima de cinco
e máxima de quinze por cento de aprendizes

A base de cálculo é o “número de trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional”.

Portanto, funções que dispensam formação profissional não devem ser consideradas para fixação da cota de aprendizes. A atividade deve necessariamente permitir a conciliação do trabalho com o ensino ministrado nos serviços nacionais de aprendizagem e nas demais instituições autorizadas.

Outras atividades também são excluídas da cota, tais como as que exigem “habilitação profissional de nível técnico ou superior, ou, ainda, os cargos de direção, de gerência ou de confiança” (artigo 10, § 1o, do Decreto 5598/05).

Em suma, a definição do número de aprendizes é feita com base nas atividades compatíveis com essa modalidade especial de contrato.

3. O artigo 429 da CLT, ao restringir a base de cálculo às funções que “demandem formação profissional”, é absolutamente coerente com as finalidades para as quais se instituiu o contrato de aprendizagem

Contudo, lamentavelmente, sua aplicação vem sendo deformada em consequência da equivocada interpretação da legislação aplicável, inclusive cristalizada em normas de hierarquia inferior, assim como decretos e regulamentos do Ministério do Trabalho e Emprego.

O artigo 10 do Decreto no 5.598 de 2005 diz que a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO deve ser considerada “para a definição das funções que demandem formação profissional”.

Ora, tal critério se indispõe claramente com a letra e a finalidade do artigo 429 da CLT acima reproduzido. Isto porque, ao se examinar a CBO, percebe-se sua enorme amplitude, alcançando atividades que jamais poderiam se encaixar no conceito legal de aprendizagem, eis que com ela incompatíveis, tais como “embaladores a mão”, “trabalhadores de carga e descarga” e “garis”.

Para piorar, há contradições intoleráveis na CBO, como, por exemplo, quando trata dos “trabalhadores de carga e descarga” (código 7832):

“Para o exercício dessas ocupações, não se requer nenhuma escolaridade e cursos de qualificação. O tempo de experiência exigido para o desempenho pleno da função é de menos de um ano. A(s) ocupação(ões) elencada(s) nesta família ocupacional, demandam formação profissional para efeitos do cálculo do número de aprendizes a serem contratados pelos estabelecimentos, nos termos do artigo 429 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, exceto os casos previstos no art. 10 do Decreto 5.598/2005.”

É visível o paradoxo. A CBO reconhece desnecessariamente a escolaridade e a qualificação nessa atividade. Contudo, ao mesmo tempo, afirma ser necessária a formação profissional e, portanto, inclui tais trabalhadores na base de cálculo do número de aprendizes (!!!!!).

5. O exemplo revela que a CBO não deve ser tomada em termos absolutos, mas sim relativos; é um mero indicativo

Em face da lei, estão obviamente excluídas da base de cálculo da cota as funções que exijam cursos de nível técnico ou superior, os cargos de confiança e as que dispensam qualquer formação profissional.

A CBO não pode ser aplicada sem adequação ao texto legal e, portanto, apenas atividades compatíveis com o programa estipulado no artigo 428 da CLT devem ser tomadas para cálculo do número mínimo e máximo de aprendizes.

6. Os tribunais frequentemente adotam esta posição moderada, que respeita os objetivos da legislação de aprendizagem, como demonstram os seguintes acórdãos:

“MANDADO DE SEGURANÇA – MENOR APRENDIZ – FIXAÇÃO DA COTA – FUNÇÕES QUE EXIJAM FORMAÇÃO PROFISSIONAL – Nos termos dos artigos 428 e 429 da CLT, para a quantificação do número de aprendizes a serem contratados, consideram-se apenas as funções que dependam de formação técnico-profissional metódica, caracterizada por atividades teóricas e práticas, metodicamente organizadas em tarefas de complexidade progressivas, desenvolvidas no ambiente de trabalho. Assim, mantém a segurança deferida em primeiro grau, a autoridade coatora não observou o referido requisito, fixando o numero de aprendizes com base apenas no fato de as funções estarem catalogadas na Classificação Brasileira de Ocupações, elaborada pelo Ministério do Trabalho em Emprego.” (TRT 3a R. – RO 1490/2009-019-03-00.6 – Rel. Juiz Conv. Fernando Luiz G. Rios Neto – DJe 6.12.2010 – p. 142).

“CONTRATAÇÃO DE MENORES APRENDIZES, RESTRIÇÕES – Ainda que o artigo 10 do Decreto 5.598/05 indique que a Classificação Brasileira de Ocupações deva ser considerada para definição das funções que demandam formação profissional, como quer a União Federal, essa conceituação não pode ser dissociada dos critérios maiores de que a contratação para aprendizagem, deve visar sempre, e principalmente, a formação educacional dos aprendizes.” (TRT 3a R. – RO 613/2010-105-03-00.0 – Rel. Juiz Conv. Milton V. Thibau de Almeida – DJe 27.4.2011 – p. 81).

“CONTRATO DE APRENDIZAGEM – FIXAÇÃO DA COTA – FUNÇÕES QUE DEMANDAM FORMAÇÃO TÉCNICO PROFISSIONAL – Nos termos do que se afere do artigo 428 da CLT, a formação técnico profissional ofertada pelo empregador no contrato de aprendizagem deve contribuir para o aprimoramento físico, moral e psicológico do aprendiz, viabilizando, com o trabalho, a vivência prática dos ensinamentos teóricos que lhe foram repassados no ensino fundamental ou nos cursos de formação profissional. A indicação pela Classificação Brasileira de Ocupações não é, por si só, fator suficiente para autorizar a contratação para aprendizagem, se as funções ali enquadradas como de formação técnico profissional não demandam aprimoramento intelectual.” (TRT 3a R. – RO 674/2010-107-03-00.0 – Rel. Des. Emerson Jose Alves Lage – DJe 7.3.2011 – p. 119).

É certo que há julgados em sentido contrário, levando ao absurdo de, interpretando elasticamente a CBO, admitir a inclusão da atividade do trabalhador da cultura de cana-de-açúcar na base de cálculo da cota.

Eis um exemplo:

“FISCALIZAÇÃO DO TRABALHO – APRENDIZES – TRABALHADOR DA CULTURA DE CANA-DE-AÇÚCAR – INCLUSÃO DA BASE DE CÁLCULO – De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações, o trabalhador da cultura de cana-de-açúcar integra a base de cálculo do número de aprendizes a serem contratados pelos estabelecimentos, nos termos do artigo 429 da Consolidação das Leis do Trabalho.” (TRT 17a R. – RO 43100 – 33.2008.5.17.0161 – Rela Desa Claudia Cardoso de Souza – DJe 24.2.2011 – p. 66).

Trata-se, entretanto, de uma visão manifestamente equivocada e que, a nosso ver, não deverá prevalecer nos tribunais superiores

7. Quando se aplica de forma simplista a CBO, está-se a aumentar ilegal e artificialmente a cota de aprendizes, o que pode ter repercussões sociais e econômicas desastrosas

Imagine-se uma empresa de serviços de limpeza com 1.000 garis e 15 trabalhadores de escritório. Se os garis compusessem a base de cálculo, a cota mínima seria de 51 aprendizes. Daí viria o problema: onde alocar esses 51 aprendizes?

Não se pode admitir que venham a exercer a função de garis, pois se estaria a violar toda a inspiração legal e doutrinária do contrato de aprendizagem.

Ademais, se empresas contratassem aprendizes nessa atividade, apenas para atender à cota, poderiam até se livrar das autuações fiscais, mas se sujeitariam a potenciais reclamações trabalhistas, denunciando o desvirtuamento do instituto e pleiteando o respeito às regras gerais da CLT, além de reparação por danos morais e materiais.

8. A atividade do aprendiz deve corresponder ao curso profissionalizante, a teor do artigo 430 da CLT; inexistentes tais cursos, não há como exigir a contratação. É o que diz o Professor JOSÉ AFONSO DALLEGRAVE NETO:

“(…) a empresa se desobriga do ônus da contratação compulsória, caso não haja na região qualquer programa profissionalizante compatível com o seu quadro de funções que demandem formação profissional ou, havendo os programas, não haja vagas disponíveis.

Antigamente, nessas hipóteses de ausência de curso ou falta de vagas ofertadas pelo Senai ou Senac, a empresa poderia implementar a Aprendizagem Metódica no Próprio Emprego (AMPE). Contudo, a partir da nova redação dada ao § 1o do art. 428 da CLT, a validade do contrato de aprendiz está condicionada à ‘inscrição em programa de aprendizagem desenvolvido sob a orientação de entidade qualificada em formação técnico-profissional metódica’.” (DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Contrato de trabalho especial de aprendizagem. Revista de Direito do Trabalho. n. 128. São Paulo: RT, outubro-dezembro de 2007. p. 378).

Algumas instituições, atentas ao problema suscitado pela CBO e em resposta à demanda do mercado, passaram a elaborar programas generalistas, ou seja, sem qualquer conexão com a atividade executada pelos aprendizes, o que é indesejável e contrário ao próprio interesse destes e da sociedade.

9. As autoridades fiscalizadoras devem atentar para a letra e para o conteúdo da legislação que disciplina o contrato de aprendizagem

Um mero regulamento não pode contrariar a lei, eis que lhe cabe apenas “prover sobre minúcias não abrangidas pela norma geral editada pelo Legislativo” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. S. Paulo: Malheiros, 1997. p. 164).

Não é dado ao poder regulamentar modificar a essência da lei que, definitivamente, consiste em propiciar qualificação profissional, de cuja falta muito se ressente o mercado de trabalho brasileiro, em face das novas tecnologias e das necessidades da economia globalizada.

A errada interpretação legal arrisca-se a gerar insegurança jurídica, com a explosão de conflitos, além de grande número de falsos aprendizes, aumentando o já enorme contingente de trabalhadores brasileiros com baixa qualificação.