Edição 129
Contratos emergencias de obras públicas
11 de julho de 2012
Flávio de Araújo Willeman Subprocurador-Geral do Estado do Rio de Janeiro
A memória recente dos brasileiros não consegue esquecer as situações de calamidade pública proporcionadas por intempéries da natureza. Nos últimos 10 (dez) anos, para não ir muito longe, vários Municípios da federação sofreram (e sofrem) com a consequência das chuvas e temporais que, não raro, inundam cidades, destroem casas e prédios públicos, fazem cair encostas, pontes, viadutos, morros e favelas, e, infelizmente, ceifam vidas de pessoas.
Os fatos da natureza, como os acima relatados, impõem certamente a adoção de medidas pelo Poder Público não só para prevenir novos problemas, mas também, e, sobretudo, para reconstruir os bens públicos (e, muitas das vezes, bairros e/ou cidades inteiros) danificados. Frequentemente as medidas a serem adotadas exigem a contratação de vultosas obras públicas que, em certas situações, não suportam a espera da realização de licitações públicas e, por isso, são objeto de contratos administrativos emergenciais, nos termos do artigo 24, IV, da Lei Federal nº 8.666/93.
Neste contexto, indagação jurídica interessante e que circunda os contratos de obras públicas se põe em debate; diz respeito à possibilidade de aplicação de percentual de BDI (Bonificações e Despesas Indiretas) em patamares superiores aos usualmente praticados pela Administração Pública em contratos de obras públicas decorrentes de dispensa de licitação por calamidade pública (artigo 24, IV, da Lei nº 8.666/93). Mais objetivamente, indaga-se se as situações de calamidade pública, como as ocorridas em vários Municípios da federação, recentemente, por conta de condições climáticas atípicas e inevitáveis, justificariam a adoção de BDI em parâmetro “superior” à média praticada pela Administração Pública.
Antes de se passar ao objeto deste estudo, cumpre explicitar, ainda que brevemente, o que vem a ser o denominado BDI (Bonificações e Despesas Indiretas) e as razões que justificam sua utilização em contratos de obras públicas.
Pois bem. Como de conhecimento convencional, o BDI é um fator representativo de bonificação (lucro) e despesas indiretas que, aplicado sobre custo direto da obra, afeta o custo final da obra ou do serviço de engenharia. Precisamente porque não são passíveis de identificação como itens autônomos da planilha orçamentária, tais elementos compõem um percentual que incide sobre o custo global da obra ou do serviço de engenharia.
De acordo com ANDRÉ LUIZ MENDES e PATRÍCIA REIS LEITÃO BASTOS, “conceitualmente, denomina-se Benefícios ou Bonificações e Despesas Indiretas (BDI) a taxa correspondente às despesas indiretas e ao lucro que, aplicado ao custo direto de um empreendimento (materiais, mão-de-obra, equipamentos), eleva-o a seu valor final”.
O grande debate que envolve a aplicação do BDI relaciona-se ao conceito e à identificação das despesas indiretas autorizadas a constar do referido fator adicional. Além disso, o tema é alvo de frequentes questionamentos quando da análise dos orçamentos formulados em construção civil, sobretudo à luz de problemas com eventuais e indesejados cômputos em duplicidade, isto é, valores discriminados na planilha orçamentária e no BDI. Daí porque as empresas de construção civil devem adotar cautela e transparência na elaboração de suas propostas orçamentárias, dedicando redobrada atenção ao detalhamento da composição do BDI, que, por sua vez, deve ordinariamente compor o projeto básico da obra ou do serviço de engenharia. A esse propósito, confira-se o Enunciado n. 258 da Súmula do Tribunal de Contas da União:
As composições de custos unitários e o detalhamento de encargos sociais e do BDI integram o orçamento que compõe o projeto básico da obra ou serviço de engenharia, devem constar dos anexos do edital de licitação e das propostas das licitantes e não podem ser indicados mediante uso da expressão “verba” ou de unidades genéricas.
No que tange à identificação dos custos considerados como despesas indiretas, o critério que tem sido usualmente reconhecido pela doutrina e jurisprudência administrativa especializada na matéria é o contábil. De fato, somente podem ser incluídos no BDI aqueles itens que não comportam, de forma alguma, inclusão na planilha de custos, por não estarem relacionados diretamente ao serviço ou à obra objeto do contrato. A esse respeito, invoca-se, novamente, a lição dos Auditores Federais de Controle Externo ANDRÉ LUIZ MENDES e PATRÍCIA REIS LEITÃO BASTOS:
Como não há nenhuma norma que determine o que deve ou não ser incluído como Bonificação e Despesa Indireta (BDI), a utilização de um critério contábil para classificar os gastos que podem ser considerados como despesas indiretas é uma forma de se delimitar tecnicamente quais os itens que compõem o BDI.
Sob esse prisma, o BDI deve conter apenas gastos que contabilmente são classificados como despesas indiretas, quais sejam: administração central, ISS, PIS, COFINS, CPMF, mobilização e desmobilização, despesas financeiras e seguros/imprevistos. Qualquer outro gasto deve ser incluído analiticamente na planilha orçamentária como custo direto. (Grifos não são do original)
Uma vez explicitadas as despesas indiretas passíveis de inclusão no BDI de acordo com o critério contábil, cumpre registrar que há certa variabilidade entre os percentuais adotados por cada esfera administrativa. Há também entendimento doutrinário no sentido de que não compete à Administração Pública fixar percentual médio para o BDI, mas estabelecer, tão-somente, um percentual máximo aceitável. Neste sentido, confiram-se as lições de FLÁVIO AMARAL GARCIA:
Dito isto, fato é que não cabe à Administração fixar o valor do BDI, devendo o edital indicar apenas as parcelas que irão compor esses custos. Caberia aos licitantes, nas suas respectivas planilhas orçamentárias, detalharem como esses custos serão dimensionados.
A fixação prévia do BDI pode restringir a obtenção de uma proposta mais vantajosa para a Administração Pública; afinal, nessa parcela de custos o licitante, se for mais eficiente, pode reduzir o valor final da obra com vistas a se sagrar vencedor do certame.
Em outras palavras, se uma das parcelas do BDI é o lucro, parece contraditório que o próprio edital fixe previamente esse valor. Se isso ocorre, a competição se limita apenas aos custos diretos, equalizando os custos indiretos para todos os licitantes.
Isso não significa dizer que a Administração Pública não possa fixar um teto para o BDI. Essa é uma medida que, devidamente amparada em estudos técnicos, pode ser tida como benéfica para o interesse público.
Nada obstante, a rotina administrativa dos órgãos e entes públicos encaminha-se no sentido de fixar, sim, percentual médio aceitável a título de BDI em contratos de obras públicas e serviços de engenharia. A prática administrativa leva em consideração, usualmente, os parâmetros aceitos pelos órgãos de controle, especialmente pelas Cortes de Contas.
Resta saber, nesse contexto, se tais percentuais médios, previamente idealizados pela Administração Pública, geralmente a partir de situações cotidianas, podem ser eventualmente superados ante situações concretas dotadas de especificidade tal que autorize, consequentemente, contratações diretas com a utilização de percentual de BDI diferenciado.
Sobre o tema, tem-se que a prudência administrativa sinaliza pela adoção, como regra, dos parâmetros previamente fixados pelos órgãos e entes públicos para o BDI, seja em contratações precedidas de procedimento licitatório, seja em contratações diretas. Em verdade, quer-se sustentar neste trabalho que a circunstância de o contrato de obra pública ou serviço de engenharia – em cujo valor se pretende aplicar o BDI – ter sido, ou não, precedido de licitação não constitui fator decisivo para a possibilidade de superação dos patamares usuais.
Com efeito, as especificidades de cada situação concreta, devidamente comprovada técnica e contabilmente, é que nortearão os parâmetros para o estabelecimento do percentual do BDI que deverá ser apresentado à Administração Pública quando da formulação da proposta, seja no procedimento licitatório, seja na fase de pesquisa de mercado que deve instruir o procedimento de contratação direta, conforme artigo 26 da Lei nº 8.666/93.
Nessa linha de entendimento, o próprio Tribunal de Contas da União, em decisão adotada por sua composição plenária, já constatou e registrou a inviabilidade de se estipular o percentual preciso a ser aplicado para a taxa de BDI, exatamente porque a adequabilidade do custo arbitrado está associada às características da obra e às especificidades dos serviços incluídos como custos diretos na planilha orçamentária. Daí a importância, mais uma vez, de o detalhamento da composição do BDI constar tanto nos orçamentos elaborados pela Administração, quanto nas propostas apresentadas pelos potenciais contratantes para a realização de obras públicas e serviços de engenharia.
Confira-se, a propósito, importante trecho do Acórdão nº 1795/2009, do Plenário do Tribunal de Contas da União, exarado nos autos do Processo 006.585/2009-6, em que aquela Corte de Contas destaca a necessidade de o exame da taxa de BDI ser efetuado sob o prisma conjuntural:
11. No que concerne ao tema BDI, preliminarmente, cumpre esclarecer que não há como se estipular o percentual preciso a ser aplicado para essa taxa, porquanto a adequabilidade do custo arbitrado está associada às características da obra em questão e às especificidades dos serviços incluídos como custos diretos na planilha orçamentária.
12. Dessarte, o BDI só pode ser considerado inadequado se analisada pormenorizadamente sua composição. Nessa linha de intelecção, o artigo reproduzido acima sugere que a faixa apropriada para o BDI estaria entre 20% e 40%, contudo, podem ser aplicados percentuais superiores ou inferiores a esse intervalo, desde que devidamente justificados.
(…).
17. Nesse sentido, creio que não cumpre ao TCU estipular percentuais fixos para cada item que compõe a taxa de BDI, ignorando as peculiaridades da estrutura gerencial de cada empresa que contrata com a Administração Pública. O foco desta Corte de Contas deve ser o de impedir que sejam pagos valores abusivos ou injustificadamente elevados e, nesse mister, é relevante obter taxas de referência, mas pela própria logística das empresas e suas especificidades é natural que ocorram certas flutuações de valores nas previsões das despesas indiretas e da margem de lucro a ser obtida.
Como se percebe, é o próprio órgão de controle externo que, em âmbito federal, reconhece a inviabilidade de fixação apriorística de taxa de BDI a ser aplicada indistintamente a todo e qualquer contrato de obra ou serviço de engenharia. E mais: o Tribunal de Contas da União constata tal inviabilidade independentemente de tratar-se de contratação direta ou de contratação precedida de procedimento licitatório.
Diante das considerações acima expostas, é possível concluir que eventuais situações de calamidade decorrentes de condições climáticas atípicas, por si só, não justificam a aceitação de taxa de BDI em patamar superior ao usualmente praticado pela Administração Pública. Todavia, pode ocorrer que, a partir de situações calamitosas concretas, que reclamem contratações diretas de obras e serviços de engenharia, também podem surgir despesas indiretas passíveis de justificações técnicas que permitam, ocasionalmente, a elevação do percentual do BDI a patamares razoavelmente superiores aos praticados ordinariamente pelo Poder Público em situações de normalidade.
Cumpre advertir que tais exceções devem ser técnica e contabilmente comprovadas, e suas justificativas apresentadas – e aceitas – previamente à Administração Pública, de modo a não configurar hipótese de superfaturamento, o que poderia vir a ensejar a incidência da regra de responsabilidade solidária prevista no artigo 25, § 2º, da Lei nº 8.666/93.
Notas _______________________________________
1 Art. 24. É dispensável a licitação:
(…)
IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;
2 In: Um Aspecto Polêmico nos Orçamentos de Obras Públicas: Benefícios e Despesas Indiretas (BDI). R. TCU, Brasília, Volume 32, n. 88, abril/junho 2001, p. 13.
3 A esse respeito, confira-se o trabalho técnico intitulado “BDI: Um Fator Estimável e Importante para Avaliação de Inexequibilidade”, desenvolvido por Luis Wagner Mazzaro Almeida Santos, apresentado no Encontro Técnico Nacional de Auditoria de Obras Públicas – IBROP/TCE/MG, em julho de 2004. Veja-se, ainda, a Orientação Normativa n. 15, de 17 de março de 2009, da Advocacia-Geral da União, que fixa as seguintes premissas acerca do tema:
“OBRAS E SERVIÇOS DE ENGENHARIA. BDI (BONIFICAÇÃO OU BENEFÍCIO E DESPESAS INDIRETAS). CONCEITO. OBRIGATORIEDADE DE PREVISÃO E DETALHAMENTO DO PERCENTUAL DE BDI.
1. O BDI (bonificação ou benefício e despesas indiretas) é um percentual que incide sobre o custo global direto da obra ou serviço de engenharia e se compõe do lucro da empresa contratada e das despesas indiretas, sendo que estas são aquelas despesas que afetam o custo da obra ou serviço, mas não conseguem ser identificadas como itens autônomos do orçamento elaborado.
2. Deve-se ter cautela para se identificar os custos considerados como despesas indiretas, recomendando-se adotar o critério contábil. Segundo este, são despesas indiretas os gastos com administração central, ISS, PIS, COFINS, mobilização e desmobilização (somente em locais distantes de centros urbanos), despesas financeiras e seguros/imprevistos.
3. Por outro lado, não podem ser consideradas despesas indiretas os custos com administração local, IRPJ, CSSL, equipamentos, ferramentas, taxas e emolumentos.
4. O percentual de BDI não deve ser o mesmo a incidir no custo dos materiais e no custo dos serviços, tendo em vista a natureza das despesas incluídas em cada grupo.
5. É obrigatória a previsão do percentual de BDI e o detalhamento de sua composição tanto nos orçamentos elaborados pela Administração quanto nas propostas apresentadas pelos licitantes para a contratação de obras e serviços de engenharia.
4 Artigo citado, p. 27.
5 Ver, por todos, Paulo Sergio de Monteiro Reis. In: “Percentual de BDI indicado na planilha elaborada pela Administração. Seria ou não possível determinar que os licitantes cotassem percentual idêntico ao indicado nessa planilha?”. Disponível em www.institutozenite.com.br (doutrina 526/124/junho/2004).
6 GARCIA, Flávio Amaral. Licitações & Contratos Administrativos (Casos Polêmicos). 3ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 14.
7 Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
(…)
§ 2º Na hipótese deste artigo e em qualquer dos casos de dispensa, se comprovado superfaturamento, respondem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor ou o prestador de serviços e o agente público responsável, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis.