Edição 40
Crimes contra o sistema financeiro e de lavagem de dinheiro
5 de novembro de 2003
Da Redação
Varas especializadas em crimes contra o sistema financeiro e de Lavagem de dinheiro são instaladas no Rio de Janeiro e no Espírito Santo
A Presidência do TRF da 2º Região e a Corregedoria da Justiça Federal assinaram em junho uma resolução especializando a 5ª Vara Criminal da Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro e a 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Espírito Santo. Esta resolução atribui competência às citadas Varas para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores.
Em entrevista à Revista Justiça & Cidadania o Juiz Federal Titular da 5ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, Dr. Abel Fernandes Gomes explicou a importância da especialização e outros pontos chaves deste sistema.
Qual foi o principal objetivo quando se criou a especialização da 5º Vara Federal?
O objetivo é o mesmo que resultou na especialização de várias Varas Federais pelo Brasil, na mesma matéria. É a busca da aplicação prática e mais efetiva de um trabalho do Conselho da Justiça Federal, derivado de um estudo sobre a investigação e a formação da prova do crime de lavagem de dinheiro. Este estudo constatou que é necessário partir de três pontos básicos para melhorar a investigação e a prova dessa espécie de delito: primeiro, é a especificidade do assunto – a espécie de delito envolvido – que exige dos órgãos que apuram o delito, que também se especializem; segundo, é a necessidade de integração entre os órgãos de investigação e de apuração da infração, com a efetivação da cooperação que deve existir, tanto internacional quanto interna, para a apuração desses crimes; e o terceiro, que é, praticamente, um objetivo derivado dos outros dois, que diz respeito à melhoria da qualidade da investigação e da formação da prova, com vistas à obtenção de um resultado que conjugue celeridade com efetividade. Esses são os três pontos principais que devem ser trabalhados e aprofundados para tornar mais eficaz o trabalho de todas as instituições e órgãos envolvidos no tratamento do assunto lavagem de dinheiro.
Faça uma breve relação entre a importância deste estudo de especialização das Varas e a questão da integração dos “paraísos fiscais” na colaboração com a investigação e utilização de meios.
Nesse caso, a questão da efetivação da cooperação internacional seria o primeiro benefício a ser alcançado. Com a concretização de normas para celebrar o maior número possível de cooperações internacionais com diversos países, inclusive aqueles que são considerados paraísos fiscais, mais facilmente se poderá alcançar as operações que este regime permite que sejam realizadas, muitas vezes para a prática da lavagem de dinheiro, produto de criminalidade grave. A concentração da competência em uma Vara especializada parte de uma idéia, no sentido de que será mais fácil adotar procedimento único e mais simples no trato com as autoridades estrangeiras. O que se objetiva, é a simplificação de procedimentos, sobretudo para obter informações bancárias e o repatriamento de bens daqueles paraísos fiscais, acreditando-se que um centro especializado como a Vara, poderá dar mais estabilidade nessas rotinas, que tenderão a não variar de acordo com os procedimentos internos cartorários que cada Juízo estaria livre para adotar. O pensamento é de que as autoridades dos outros países, logo sentiriam maior segurança na troca de informações, ao constatarem que seu interlocutor é o mesmo e adota sempre a mesma rotina de cooperação. É uma teoria a ser testada.
Existe algum outro aspecto ligado aos meios utilizados para melhorar a integração para as investigações?
Sim. Outro aspecto de extrema importância, sobretudo para a integração interna entre as várias instituições envolvidas, como a Receita, o Banco Central, a Polícia Federal, o Ministério Público e a Comissão de Valores Mobiliários, é ampliação da utilização de meios tecnológicos, como a informática e de inteligência de todo tipo, sobretudo frente a especificidade da matéria, à clandestinidade com que esses crimes são praticados e a profissionalização e singularidade técnica que algumas das condutas de lavagem de dinheiro encerra. É importante, também, que se tenha a convergência dos especialistas dessa matéria, para que eles possam trabalhar juntos e chegarem a resultados expressivos de maneira objetiva.
A Comissão de Valores Mobiliários – CVM – é responsável pela fiscalização dos crimes cometidos contra o sistema financeiro e de lavagem de dinheiro? Existe um sistema integrado relativo a esta questão?
A CVM é responsável pela parte ligada ao mercado de valores mobiliários. O Banco Central é o encarregado pelo controle das Instituições Financeiras no sentido mais amplo e ainda hoje pode-se contar com o COAF (Conselho das Atividades Financeiras) que também atua no controle das demais atividades que não contam com uma agência ou instituição fiscalizadora, tudo no campo do controle da lavagem de dinheiro.
Qual foi a principal razão para que as Varas especializadas fossem criadas?
O Conselho da Justiça Federal fez uma pesquisa, através do Centro de Estudos Judiciários, ouvindo Procuradores da República, Juízes Federais e Delegados da Polícia Federal. Por meio da aplicação de um questionário, esses profissionais responderam quais as dificuldades encontradas e necessidades a serem sanadas para uma apuração efetiva dos crimes citados. A partir do resultado, constatou-se que muitas destas dificuldades impediam que se chegasse ao fim da apuração destes crimes. Geralmente, os processos malogravam nas fases administrativas, às vezes não chegavam nem ao inquérito, e eram muito lentas essas apurações.
Com esta constatação, o Conselho da Justiça Federal criou uma Comissão de Estudos sobre os Crimes de Lavagem de Dinheiro, presidida pelo Ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça. Esta comissão era multidisciplinar, e constituída por pessoas indicadas por todos os órgãos que falei anteriormente: Justiça (três juízes federais), Procuradoria da República, Polícia Federal, Banco Central, COAF, CVM e Febraban. A Comissão elaborou um relatório com o resultado de seu trabalho, inclusive com sugestões para que cada instituição participante, dentro de suas atribuições, procurasse adotar medidas para colocar em prática aqueles resultados dos estudos da Comissão. Isso foi feito através da edição de uma cartilha pelo Conselho da Justiça Federal. Para a Magistratura, uma das sugestões era a especialização das Varas, o que fez com o grupo de magistrados federais participante da Comissão interdisciplinar, prosseguissem nos trabalhos, tendo como presidente o Ministro Gilson Dipp, e a participação dos Juízes Federais Ali Mazloum, de São Paulo, Salise Monteiro Sanchotene, do Rio Grande do Sul, e eu do Rio de Janeiro. O Presidente do STJ e do Conselho, Ministro Nílson Naves e o Coordenador do Conselho à época, Ministro César Rocha, adotaram as providências para a edição de ato recomendando aos TRFs a especialização das Varas.
Com a especialização como fica a distribuição dos processos? Muda o procedimento do sistema interno?
Sem dúvida. A distribuição ocorrerá de acordo com a classificação jurídica do fato.Verifica-se essa classificação, baseada na Lei 7492/86 ou na Lei 9613/98 – que tratam, respectivamente, dos crimes contra o sistema financeiro e crimes de lavagem de dinheiro – e, assim sendo, estes processos são automaticamente distribuídos para a 5ª Vara do Rio de Janeiro ou para a 5ª Vara do Espírito Santo – no caso da 2ª Região – e nos outros Estados para as Varas lá especializadas.
Segundo o Ministro Nilson Naves a criação de Varas especializadas é muito importante porque a lavagem de dinheiro está ligada a outros crimes como o narcotráfico, o terrorismo, o seqüestro e o tráfico de armas. Para combatê-los já estão sendo criados convênios com o sistema judiciário de outros países como Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile e Bolívia. O que o senhor acha do convênio do sistema jurídico brasileiro com o de outros países?
Além de ser um objetivo da Comissão de Estudos dos Crimes de Lavagem de Dinheiro, é uma das 40 recomendações do Grupo de Ação Financeira — GAFI, organismo internacional para o estudo e apresentação de conclusões aos países membros. O Brasil, hoje, é membro do GAFI, e são as orientações desse Grupo que formam o núcleo de tudo que se busca em termos de restrição à lavagem de dinheiro. Não havendo cooperação internacional, não se consegue tornar as investigações desses crimes realmente efetivas, isto porque, são crimes praticados transnacionalmente. Claro que existem práticas locais, mas, em regra, o dinheiro vai circular por vários lugares do mundo, como os paraísos fiscais. Serão transferidos de um país para o outro, não só o dinheiro como também bens e valores. Se a cooperação internacional for nula e se não forem vencidas determinadas etapas e burocracias, como aquelas rogatórias jurássicas que levam meses e gastam muitas folhas de papel com traduções juramentadas e termos técnicos, nada evoluiremos em termos de investigação transnacional. Se não superarmos tudo isso, que faz parte de um direito do século passado, ou talvez do século retrasado, e não partirmos para o direito do século XXI – o direito operante -, será impossível terminar o processo em tempo hábil. Sem contar que, aqui no Brasil, a prescrição dos crimes tem prazos relativamente pequenos e, considerando a pena mínima ou a pena que eventualmente é aplicada em concreto, fica difícil conseguir efetividade na repressão dos crimes de lavagem de dinheiro.
Qual o interesse do judiciário nessa especialização?
O interesse é melhorar a prestação jurisdicional nesse tipo de crime que é difícil de apurar, e esse é o grande objetivo por parte do Conselho da Justiça Federal no que diz respeito à Justiça.
Pelo lado da Justiça, é até uma questão interessante abordar, pois o Juiz não é um elemento propriamente de combate ao crime, o que é atribuição constitucional de outras instituições. Até porque, o juiz tem que ser imparcial, neutro, e aplicar a legislação seguindo os princípios de justiça e imparcialidade, verificando onde está a verdade dos fatos e assim julgar de acordo com ela. Se for para condenar, que seja condenado, se for para absolver, que se absolva. O que importa, segundo a concepção do Poder Judiciário, é que o seu trabalho seja feito de forma efetiva e econômica, em qualquer sentido, sem que isso implique transformar o juiz em agente direcionado a combater o crime. Não perdemos de vista, em nenhum momento, a função constitucional que tem o juiz criminal.
Em relação ao caso dos diretores do Itaú sobre a sonegação do CPMF, esse seria um caso para a 5º Vara?
Sonegação fiscal não. Este crime é da competência comum de todas as Varas Federais Criminais.
Como é tratada a questão do crime antecedente na Cartilha criada pelo Conselho.
A pergunta é muito pertinente. As diretrizes da cartilha elaborada pela Comissão do Conselho, seguem aquilo que está estabelecido como princípio para a melhor apuração do crime de lavagem de dinheiro e consta das recomendações do GAFI. Grosso modo, o crime antecedente é aquele de onde provém o dinheiro cuja lavagem se pretende apurar.
O Brasil adotou uma legislação peculiar, pois ao mesmo tempo em que prevê um elenco limitado de crimes antecedentes, abre uma brecha para qualquer crime, desde que praticado por organização criminosa. É um misto de legislação de segunda e terceira geração. Seja como for, a orientação da Comissão vê a questão sob o prisma que deve prevalecer juridicamente, de que a instauração de uma investigação, ou até de um processo, para apurar crimes de lavagem de dinheiro, não está condicionada à plena configuração do crime antecedente.
Partindo do princípio contido no art. 2º, inciso II, da Lei 9.613/98, que define a autonomia do crime de lavagem em relação ao antecedente, é importante que as autoridades estejam conscientes de que, para atuar eficazmente na apuração do referido crime, não é necessário que o crime antecedente tenha sido solucionado com trânsito em julgado, pois, do contrário, haverá entrave intransponível à imediata apuração da lavagem de dinheiro com sua característica volatilidade.
O crime antecedente que gera o de lavagem, como por exemplo, o narcotráfico praticado internamente, nem mesmo tem que ser processado pela mesma Vara. Apenas é necessária a mínima indicação da prática da infração antecedente, capaz de mostrar a justa causa para que a denúncia pelo crime de lavagem seja recebida. Daí, então, será avaliado se a prova desenvolvida no processo é suficiente para resultar na condenação. Não se pode perder de vista, como acontece já com o delito de receptação, que o crime de lavagem de dinheiro é um crime autônomo em relação ao antecedente.
Fale um pouco sobre a sua visão em relação ao sistema financeiro nacional.
O problema na apuração dos crimes contra o sistema financeiro nacional está citado na literatura brasileira. Temos uma pesquisa muito boa, feita pela professora Ella Wiecko Volkmer de Castilho, Procuradora da República, que está em Brasília atuando junto ao STJ. Desta pesquisa, ela escreveu um livro publicado pela editora Del Rey, que aborda toda a dificuldade na apuração desses crimes contra o sistema financeiro. Na época desta publicação ainda nem existia a Lei de Lavagem de Dinheiro. É uma pesquisa interessante, e nela podem ser encontradas as dificuldades e o filtro pelo qual vem passando a apuração desses crimes até chegar no final, sem a obtenção de resultados práticos, haja vista a prescrição.
Na prática processual também se vê essa demora absurda. O Banco Central vai investigar uma Instituição e leva uns 8 anos para terminar o processo. Depois manda para a polícia, que leva mais uns 5 anos para apurar o mesmo fato sob sua ótica, e aí vai para o Ministério Público, que denuncia. Antes de chegar ao final do processo, já ocorreu a prescrição entre a data do fato e a da sentença e, o que é mais comum, entre a data do fato e o recebimento da denúncia. Isso é uma coisa que já vem se notando há muito tempo. Por que isso? É possível dizer, com certeza, que em razão da falta de trabalho conjugado e convergente entre os órgãos interessados na apuração.
Se o Banco Central, no mesmo momento em que começa o processo administrativo, fizesse um contato com a Receita, com a Polícia ou com o Ministério Público, todos estariam trabalhando juntos e levantando dados, pois um elemento isolado pode não ser nada para um órgão, mas junto com outros poderá formar resultados dentro de uma cadeia de informações concretas e objetivas. A idéia é que a Vara Especializada seja um ponto de referência. Quando se tem um ponto de referência, se consegue juntar todos os profissionais ligados àquela matéria em torno desse ponto. Afinal, ao cabo da reunião de elementos, todos convergem para o Judiciário.
Na sua opinião seria necessária uma lei mais severa?
A lei não deve ser severa, mas responder na proporção da lesão causada, sem subterfúgios e de forma igual para todos. Duas coisas são necessárias: a efetividade da lei penal e sua democratização. A primeira consiste na conscientização de que a lei penal existe para ser aplicada da melhor forma possível, com o abandono da cultura do mero “criticismo” e da negativa à punição, muito conveniente às finalidades “liberalóides”. O objeto do direito Penal: a pena, é necessária à sociedade. A segunda consiste na sua aplicação a quem pratica o delito, independentemente da classe a que pertença, sob pena de, aí sim, permanecermos praticando o abominável “direito penal de autor”, dirigido apenas a quem detenha um tipo de condição sócio-econômica.
Toda lei deve sempre ser aperfeiçoada, mas antes disso deve ser efetivada. Muitas vezes as leis são alteradas, principalmente no Direito Penal, antes mesmo de serem colocadas em prática. Temos um exemplo recente, que é a Lei referente às armas de fogo. Os institutos preventivos dessa Lei sequer foram colocados, seriamente, em prática. No entanto, já se fala em alterar algo que nem se verificou como é que funciona. As leis brasileiras sobre crimes contra o sistema financeiro e de lavagem de dinheiro estão dentro, mais ou menos, daquilo que os demais países adotam, com uma diferença ou outra. Mas a questão é de operacionalizar as leis e torná-las efetivas.
Qual foi a primeira conclusão do Conselho após o estudo feito?
A comissão entende que o importante é que se tenha a especialização das Varas e em todos os setores que com ela possam atuar externamente. Na Procuradoria da República, na Polícia etc. Para a Polícia, inclusive, foram feitas sugestões no sentido de que se procure colocar em setores especializados mais técnicos em contabilidade, em informática e outros ramos da criminalística, para que se possa dispor, realmente, de profissionais capazes de elaborar os laudos técnicos necessários. Uma polícia técnica é primordial.
E quanto ao Tribunal já existe uma especialização? A discussão já está no Conselho?
Apesar do ato conjunto do Presidente do TRF e do Corregedor da Justiça Federal da 2ª Região, Desembargadores Federais Valmir Peçanha e Ney Fonseca, especializando as duas Varas, uma no rio outra no Espírito Santo, o TRF da 2ª Região, propriamente, não é especializado por matéria, mas existe uma comissão interna que estuda essa possibilidade. Está em estudo a especialização por Seções, Turmas e matérias. Eu, particularmente, acho conveniente. Acredito que o Tribunal vai debater o assunto e encontrar soluções viáveis.
Este estudo e discussão são internos, porque os Tribunais, nesse ponto, têm autonomia, baseados nos seus Regimentos Internos.
Qual a perspectiva de atuação das Varas especializadas?
É uma iniciativa nova, que parte de um estudo que reuniu dados empíricos informalmente, mas que ainda não teve tempo de testar as soluções que acredita adequadas. Por outro lado, a especialização é de recente vigência, pelo fato de ter sido iniciada, aqui na Região, apenas no dia 2 de julho do corrente ano. Ainda estamos num momento de observação de seu funcionamento, e avaliando como a demanda está se apresentando. Tivemos um aumento significativo de julho a agosto, e estamos acompanhando para ver se vai se projetar nos próximos meses. Ainda não sabemos se foi um fator isolado, derivado da novidade da especialização, ou se vai prosseguir com esta distribuição em massa. Estamos em fase de experiência. Somente no futuro poderemos verificar a importância da especialização da Vara, avaliando se ela vai corresponder às expectativas.
De todo modo, penso que a iniciativa do Conselho da Justiça Federal, de trazer para si o foco do estudo, discussão e proposta de soluções na matéria, só vem a demonstrar o quanto a área criminal, sobretudo nas matérias de competência federal, vem assumindo importância no cenário nacional e internacional e, junto com os Juizados Especiais, se transformando numa das grandes causas da Justiça do novo século. Enxergar diferente, é manter os olhos no passado, sucumbir à realidade do momento e se colocar fora do futuro.