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Cumprimento da sentença

30 de abril de 2006

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Caminho evolutivo

No sistema processual civil brasileiro poucos eram os casos de cumprimento da sentença condenatória independentemente de um processo de execução ex intervallo. A tradição romana da actio iudicati, recepcionada pelos sistemas continentais europeus, deixava pouco espaço para a aglutinação das fases de conhecimento e de execução no mesmo processo. Isso ocorria, por exemplo, nas ações possessórias e na ação de despejo, ou no mandado de segurança, dando margem ao surgimento de uma classificação quíntupla das demandas, que colocava, ao lado da sentença condenatória, a executiva lato sensu e a mandamental. Mas é fácil verificar que essa classificação, acrescentando duas espécies no gênero processo de conhecimento, ao lado das demandas condenatórias, constitutiva e declaratória, não significa que a sentença executiva lato sensu e a mandamental não sejam condenatórias, indicando somente um tipo diverso de efetivação (qual seja, a ausência de um processo autônomo de execução). E tanto é assim, que outra classificação – desta feita, de acordo com o cumprimento da sentença condenatória – passou a chamar aquela que demandava execução ex intervallo de condenatória pura, para distinguí-la das condenatórias sem processo de execução (ou seja, a executiva lato sensu e a mandamental).

Em tempos mais recentes, coube a Kazuo Watanabe a ampliação da categoria das sentenças condenatórias mandamentais, em que as atividades de cognição e de execução se aglutinam no mesmo processo de conhecimento, quando sugeriu a redação do art. 11 da Lei da Ação Civil Pública (lei n. 7.347, de 24.07.85):

Artigo 11: “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor.”

A seguir, ainda por influência de Kazuo Watanabe, a mesma idéia foi detalhada no Código de Defesa do Consumidor (lei n. 8.078, de 11.09.1990), por seu art. 84:

Artigo 84: “Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado .

Par. 1º. A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível quando por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente.

Par. 2º. A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287 do CPC).

Par. 3º. Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.

Par. 4º. O juiz poderá, na hipótese do par. 3º ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

Par. 5º. Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial”.

Do Código de Defesa do Consumidor, a disposição passou para o Código de Processo Civil que, pela lei n. 8.952/94, adotou, no art. 461, a mesma técnica para as obrigações de fazer e não fazer. Finalmente, o art. 461-A do CPC, acrescentado pela lei n. 10.444/02, estendeu o cumprimento da sentença condenatória, sem necessidade de execução ex intervallo, às obrigações de entregar coisa certa1.

Assim, nas obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa certa, a sentença deixou de ser condenatória pura, sendo efetivada no próprio processo de conhecimento.

Faltavam as obrigações de pagar. E o círculo fechou-se pela lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005, ora em comento.

O cumprimento da sentença na lei 

nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005

Decorrente de projeto de Athos Gusmão Carneiro, amplamente debatido no Instituto Brasileiro de Direito Processual e, depois, com a comunidade jurídica, a lei n. 11.232/05 traz profunda modificação em todo o direito processual brasileiro e em seus institutos. A principal característica da lei – denominada de cumprimento da sentença – consiste na eliminação da figura do processo autônomo de execução fundado na sentença civil condenatória ao pagamento de quantia certa, generalizando o disposto nos arts. 461 e 461-A do CPC. Agora, a efetivação dos preceitos contidos em qualquer sentença civil condenatória se realizará em prosseguimento ao mesmo processo no qual esta for proferida.

A unidade processual é determinada pelas disposições segundo as quais a provocação do juízo para as medidas de cumprimento da sentença se fará mediante um requerimento do credor (arts. 461, par. 5º e 475-J do CPC, na redação da lei) e não mais pelo exercício de uma ação (ação executiva). O obrigado não será citado, justamente porque não existe um novo processo, mas simplesmente intimado na pessoa de seu patrono (art. 475-J, par. 1º).

A nova lei denomina cumprimento da sentença, em sentido genérico, as atividades destinadas à efetivação do preceito contido em qualquer sentença na qual se reconheça a existência de uma obrigação a ser cumprida pelo vencido. Quando se trata de dar cumprimento a uma obrigação de fazer ou não fazer ou de entregar coisa certa, a efetivação se faz mediante o cumprimento da sentença em sentido estrito, e quando se trata de obrigação de pagar, mediante a execução (execução por quantia certa contra devedor solvente – art. 475-I). Assim, o cumprimento da sentença (lato sensu) é o gênero, que tem como espécies o cumprimento da sentença stricto sensu (obrigações específicas) e a execução (obrigações de pagar). O conceito de execução não se estende ao cumprimento das obrigações específicas, o qual continua regido pelos arts. 461 e 461-A.

Como conseqüência dessa unidade do processo (cognição-efetivação), não faria sentido manter o conceito de sentença como “ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa” (art. 162, par. 1º, do CPC). Daí sua nova redação, pela qual sentença passou a ser o “ato do juiz que implica (rectius, configura) alguma das situações (rectius, hipóteses) previstas nos arts. 267 e 269 desta lei” 2. Assim, haverá uma sentença sempre que houver julgamento do mérito da causa (art. 269) e sempre que o juiz determinar a extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267). Mas, em função da unidade cognição-efetivação, a sentença de mérito só porá fim ao processo em casos excepcionalíssimos, ou seja quando não restar obrigação alguma a ser cumprida, sequer por custas ou honorários da sucumbência.

O resultado disso é que não haverá mais um processo de execução autônomo fundado em sentença proferida no processo civil (art. 475-N, inc. I). Quando a sentença reconhecer a existência de uma obrigação específica a ser cumprida pelo réu (obrigação de fazer, de não fazer, de entregar coisa certa), a efetivação do preceito se fará mediante as atividades qualificadas como cumprimento da sentença (s.s.); e, quando a obrigação for em dinheiro, mediante a execução, tudo no mesmo processo aglutinado de cognição-efetivação (art. 475-I).

Resulta daí que a disciplina do processo de execução, contida no Livro II do CPC, só se aplicará:

a) quando o título executivo for extrajudicial, sendo que os preceitos do processo de execução se aplicam apenas em caráter subsidiário ao cumprimento da sentença, incluindo a execução por quantia (art. 475-R); ou

b) quando a sentença houver sido proferida fora do processo civil estatal (sentença penal condenatória, laudo arbitral, sentença estrangeira homologada e acordo extrajudicial homologado).

Abolição das sentenças condenatórias puras

Parece, assim, que a lei n. 11.232/05 eliminou do processo civil brasileiro a categoria das chamadas sentenças condenatórias puras, ou seja aquelas que demandavam um processo de execução autônomo. Como visto, todas as sentenças portadoras do reconhecimento de uma obrigação a ser cumprida pelo réu comportarão efetivação mediante o prosseguimento do mesmo processo e, portanto, sem um processo executivo distinto e autônomo (sine intervallo). E essas sentenças, às quais a lei outorga eficácia de título executivo (art. 475-N, inc. I), serão:

a) mandamentais, quando afirmarem a existência de uma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa certa; ou

b) executivas lato sensu, quando se referirem a uma obrigação em dinheiro.

No primeiro caso, elas serão efetivadas mediante as atividades englobadas no cumprimento da sentença s.s. (arts. 461 e 461-A); no segundo, mediante a execução por quantia certa, que também se faz em prosseguimento ao processo.

Não sobra espaço, pois, no âmbito do novo sistema processual civil brasileiro para as sentenças condenatórias puras, restritas agora ao processo trabalhista.

Sentenças declaratórias

A sentença declaratória, que continua regulada pelo art. 4º do CPC, é positiva quando acolhe a demanda do autor e lhe concede a tutela jurisdicional postulada; e é negativa quando rejeita a demanda, concedendo tutela ao réu.

Na tradição de qualquer sistema processual, incluindo o brasileiro, para exigir a satisfação do direito que a sentença declaratória tornou certo, o autor deve propor nova ação, de natureza condenatória: a sentença declaratória positiva vale apenas como preceito, tendo eficácia imperativa exclusivamente no tocante à declaração da existência ou inexistência da relação jurídica entre as partes e a seu modo de ser.

Teria a lei 11.232/05 atribuído agora à sentença declaratória positiva eficácia de título executivo, dispensando a demanda destinada a obter o título? É o que passamos a examinar.

Uma nova classificação das sentenças

Examinem-se o art. 475-N e inc. I da nova lei:

Art. 475-N: “São títulos executivos judiciais:

I – a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia.”3

Sentença que reconheça a obrigação parece, à primeira vista, sentença declaratória. Confronte-se, então, esse dispositivo com o art. 4º do CPC:

Art. 4º: “O interesse do autor pode limitar-se à declaração:

I – da existência ou inexistência de relação jurídica;

II – da autenticidade ou falsidade de documento.

Parágrafo único. É admissível a ação declaratória, ainda que tenha ocorrido a violação do direito.”

Assim, pela interpretação literal do art. 475-N, inc. I, na redação da lei 11.232/05, c/c o art. 4º do CPC, teríamos agora, no ordenamento brasileiro, duas espécies distintas de sentença declaratória:

a) a que  reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia, que constituiria diretamente título executivo, dando margem ao cumprimento da sentença ou à execução por quantia certa, sem necessidade de propositura de nova demanda destinada a obter o título; e

b) as demais sentenças declaratórias, que não reconheçam a existência das obrigações acima mencionadas, e que se esgotam em si mesmas, por não dependerem de uma prestação a ser realizada pelo obrigado (por ex., declaratória negativa), ou que exigem nova demanda para obtenção do título executivo (por ex., declaratória de paternidade.).4 Mesmo nessas sentenças, entretanto, haverá normalmente um capítulo dependente de efetivação posterior, que é aquele atinente às custas e aos honorários da sucumbência.

No primeiro caso (art. 475-N, inc. I), a sentença seria ao mesmo tempo declaratória e mandamental (obrigações de fazer, não fazer e de entregar) ou declaratória e executiva lato sensu (obrigações de pagar quantia certa). No segundo caso (art. 4º), teríamos uma ação declaratória pura, com a ressalva dos honorários advocatícios e das custas. E o sistema brasileiro teria acabado com a sentença condenatória no processo civil …

Todavia, pode-se dar ao art. 475-N, inc. I, interpretação mais flexível e sistemática, que não rompa com o caminho evolutivo acima traçado e melhor se afeiçoe ao ordenamento brasileiro (particularmente às tradicionais categorias das sentenças mandamentais e executivas lato sensu, como espécie de sentenças condenatórias, e às sentenças meramente declaratórias, previstas no art. 4º do CPC), afeiçoando-se, ainda, à clássica conceituação de Andréa Proto Pisani, no sentido de que sentença condenatória é a que se executa5. Assim, entendemos que a expressão “sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia” indica não apenas uma declaração, mas também a condenação, mantendo-se conseqüentemente a categoria da sentença condenatória, mandamental ou executiva lato sensu e, a seu lado, a da declaratória tradicional.

Conclusões

O certo é que a interpretação de uma nova lei, especialmente quando inovadora como a que estamos comentando, é tarefa difícil. E as primeiras interpretações correm sempre o risco de virem a ser desautorizadas pela doutrina e pela jurisprudência posteriores. Mas alguém tem que deitar a primeira pedra: e nós, aceitando o repto, tivemos a ousadia de fazê-lo.

Numa análise, que poderá ser provisória, entendemos, em síntese, que a Lei do Cumprimento da Sentença (lei 11.232, de 22.12.2005) trouxe as seguintes transformações ao sistema processual brasileiro:

a – a principal característica da lei consiste na eliminação da figura do processo autônomo de execução fundado na sentença civil condenatória ao pagamento de quantia certa, generalizando o disposto nos arts. 461 e 461-A do CPC;

b – a efetivação dos preceitos contidos em qualquer sentença civil condenatória se realizará em prosseguimento ao mesmo processo em que for proferida;

c – não mais haverá processo de execução autônomo fundado em sentença proferida no processo civil. Quando a sentença reconhecer a existência de uma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa certa, a efetivação do preceito se fará mediante as atividades qualificadas como cumprimento da sentença s.s; e quando a obrigação for de pagamento em dinheiro a efetivação se dará mediante a execução, tudo no mesmo processo que aglutina cognição e efetivação;

d – conseqüentemente, não havia mais como definir “sentença” como “ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa” (art. 162, par. 1º do CPC), sendo que, na nova redação, haverá sentença sempre que houver julgamento do mérito da causa (art. 269) e sempre que o juiz determine a extinção do processo sem julgamento do mérito (art.267);

e – a disciplina do processo de execução, contida no Livro II do CPC, só se aplicará:

d1 – quando o título executivo for extrajudicial;

d2 – quando a sentença houver sido proferida fora do processo civil estatal (sentença penal condenatória, laudo arbitral, sentença estrangeira homologada, acordo extrajudicial homologado);

f – parece, assim, que a lei eliminou do processo civil brasileiro a categoria das chamadas sentenças condenatórias puras, ou seja aquelas que demandavam um processo autônomo de execução, com exceção das sentenças proferidas fora do processo civil estatal (supra, e.2);

g – as sentenças serão mandamentais, quando afirmarem a existência de uma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa certa; e serão executivas lato sensu, quando se referirem à obrigação de pagar quantia em dinheiro;

h – no primeiro caso, serão efetivadas mediante cumprimento da sentença s.s. e no segundo, mediante execução sine intervallo;

i – na interpretação literal do art. 475-N, inc. I, da lei, a sentença, nos casos apontados supra (“g”) surgiria como declaratória;

j – nessa interpretação, teríamos, no ordenamento brasileiro, duas espécies distintas de ação declaratória:

j1 – a que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa certa ou pagar quantia, que constituiria diretamente título executivo, dando margem ao cumprimento da sentença (s.s.) ou à execução sine intervallo;

j2 – as demais sentenças declaratórias (art. 4º do CPC), que não reconheçam a existência das obrigações acima mencionadas, esgotando-se em si mesmas, por não dependerem de uma prestação a ser realizada pelo obrigado (como na sentença declaratória negativa) ou que exigem nova demanda para obtenção do título executivo (por. ex., declaratória de paternidade). Mesmo nessas sentenças, entretanto, haverá normalmente um capítulo dependente de efetivação posterior, que é aquele atinente às custas e honorários da sucumbência;

k – aceita a interpretação literal, teríamos assim sentença declaratórias que constituem título executivo, ao lado de sentenças declaratórias puras;

l – entretanto, uma interpretação mais flexível e sistemática do art. 475-N, inc. I, leva a afirmar  que a expressão contida no dispositivo não se refere apenas à declaração, mas também à condenação, mantendo-se conseqüentemente as categorias das sentenças condenatórias mandamentais e executivas lato sensu.

m – esta última interpretação parece afeiçoar-se melhor às linhas do caminho evolutivo indicado no texto, à sistematização das sentenças mandamentais e executivas lato sensu  como pertencentes ao gênero de sentenças condenatórias, e ao próprio art. 4º do CPC, aderindo, ainda, ao conceito doutrinário de que sentença condenatória é a que se executa.