Edição 183
Da inclusão do common law no sistema processual brasileiro
27 de novembro de 2015
Professor de Direito da Universidade Braz Cubas
Os julgamentos realizados pelo Poder Judiciário brasileiro têm causado bastante polêmica, ao haver diversas interpretações para a mesma lide. Uma mesma causa, dependendo do órgão julgador, da Turma Recursal, Câmara ou juiz, poderá ter diversas interpretações. Assim, não há lógica e racionalidade na prática do direito.
Destarte, tentativa para solucionar tal conflito foi a introdução, no Novo Código de Processo Civil, do julgamento fundamentado por precedentes das Cortes superiores.
Porém, inserir e mesclar este sistema com o praticado tem causado certa perplexidade como as fontes imediatas do direito e o conceito de precedente, bem como a sua aplicabilidade no sistema do civil law.
1. Do julgamento por precedentes e o desmoronamento da codificação
A Lei no 13.105, de 16 de março de 2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil, trouxe o sistema de julgamento por precedentes, conhecida pelo stare decisis. Esta forma de fundamentar a decisão judicial advém do sistema do common law, no qual a lide é julgada com fundamento em decisões anteriores sobre o mesmo assunto, tendo por obrigatoriedade seguir sua fundamentação. Sua finalidade é dar segurança aos jurisdicionados submetidos ao Poder Judiciário.
É possível analisar que o direito, desde seus primórdios, tem sido estudado a partir de uma lide submetida ao órgão jurisdicional. A codificação só surgiu com o Código de Napoleão de 1804, tendo por fim limitar e submeter o poder do Executivo à vontade do povo, por meio do movimento pandecteísta.[1]
A Revolução Francesa introduziu o princípio da igualdade perante a lei, que veio com o Código Civil de 1804, por meio de uma ordem racional do Direito. Foi elaborado por uma comissão de juristas formada por Napoleão em 1800, encarregada de abrandar os excessos racionalistas e jusnaturalistas da fase revolucionária e de conciliar as proclamações de um direito natural universal. Este Código representou a unidade e a universalidade do direito.
John Kelly, ao interpretar a codificação napoleônica, sugere que: “a ideia principal dos codificadores franceses era a de excluir a incerteza e a arbitrariedade da administração do direito e, para esse propósito, eles queriam reduzir tanto quanto possível a função interpretativa e criativa dos juízes em quem não confiavam”.[2]
O sistema adotado no Brasil foi o da codificação, totalmente influenciado pelo Código Civil francês. Assim, até antes da Constituição de 1988, tinha-se um sistema fechado no qual o único comando válido era a própria norma jurídica, que extraía seu fundamento da carta constitucional.
A ocorrência da transição é nítida com a promulgação da Constituição de 1988. O ordenamento jurídico pátrio é constituído por um conjunto de normas jurídicas, sendo livre o magistrado para interpretá-las na sua aplicação. Conforme o art. 5o, §1o, da Constituição Federal, os direitos fundamentais têm aplicação imediata. Portanto, na hipótese de inexistência de norma jurídica relacionados aos direitos e às garantias fundamentais, assegurados constitucionalmente, deverá o magistrado conceder tais direitos. Nesses termos, o sistema que era fechado passou a ser aberto.
Conforme Luiz Guilherme Marinoni:
[…] os direitos fundamentais têm função de mandamento de tutela (ou de proteção), obrigando o legislador a proteger um cidadão diante do outro. No caso de inexistência de norma ou insuficiência dessa tutela, o juiz deve tomar em conta essa circunstância, protestando o direito fundamental sobre as relações entre os sujeitos privados para conferir a proteção prometida pelo direito fundamental, mas esquecida pela lei.[3]
Com a Emenda Constitucional no 45, de 2004, foi introduzida a súmula vinculante, que são enunciados de julgamentos anteriores, vinculando o Poder Judiciário e os Órgãos da Administração Pública. Caso o magistrado julgue diferente ao prescrito, é cabível o instrumento da Reclamação Constitucional que cassará a decisão judicial ou, no caso da Administração Pública, anulará o ato.
Este modelo nada mais é do que uma norma jurídica com vigor maior que o da própria lei. Se uma lei é violada, o cidadão deverá propor uma ação judicial, perante o juízo de primeira instância. Caso esse magistrado não conceda a tutela específica, caberá recurso ao Tribunal de Justiça a que está vinculado. Contudo, havendo decisão judicial que afronte súmula vinculante, esta decisão será cassada pela Suprema Corte brasileira, suprimindo as instâncias recursais.
Portanto, é nítida a força vinculante da súmula sendo, de modo prático, a sua exigibilidade sistêmica superior ao da lei.
2. Súmula e precedente
Súmulas não se confundem com precedentes. Enquanto a súmula é o enunciado da decisão proferida por um Tribunal, precedente é a fundamentação e categorização da decisão.[4] Trata-se de uma forma de argumentação e de justificação.[5]
A ideia do stare decisis é a de um julgamento colegiado e deliberado. No Brasil, as súmulas não são deliberadas, mas, sim, votadas. Assim, não há um acordo sobre o julgado e sobre o seu estabelecimento como precedente.
Essa deliberação é importante para que possa ser definida a sua aplicação, e não um mero enunciado, aplicando-se em casos distintos.
3. Precedente: um problema de fonte do direito
Brevemente, foi analisado o sistema de julgamento pátrio vigente e a introdução do precedente no Código de Processo Civil de 2015. Porém, é difícil aceitar um julgamento com base na argumentação de outra decisão, até porque não existe a sua fonte.
A Constituição Federal dispõe, em seu art. 5o, inciso II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei”. Portanto, a fonte imediata de todo o ordenamento jurídico é a lei vigente.
Ao dispor que os direitos e as garantias fundamentais têm aplicação imediata, esta norma somente poderá ser expandida em sua aplicação em conceder direitos, mas jamais para restringi-los.
O precedente disposto pelo Código de Processo Civil de 2015 tem status e força de lei ordinária. Com efeito, se o art. 332 da Lei no 13.105/2015 dispõe sobre a improcedência liminar do pedido com base no precedente e não se tratando sobre direito e garantia fundamental não legislado, o cenário será de nova norma jurídica não criada pelo Poder Legislativo, mas, curiosamente, pelo Poder Judiciário.
Portanto, a busca pela segurança jurídica poderá causar maior insegurança ao jurisdicionado, uma vez que estará obrigado a seguir não só a lei, mas os precedentes que o Poder Judiciário entender vinculantes. Além do mencionado, o juiz de primeiro grau está em contato com as partes e as provas pessoais, mas sua decisão estará sempre vinculada às cortes superiores, por mais que se tente aplicar a solução justa no caso concreto. Por fim, com a arquitetura presente no Código de Processo Civil projetado para vigência em 2016, há uma quebra na tripartição de poderes, sendo que o Poder Judiciário, além de aplicar o direito, poderá criar norma jurídica geral e abstrata. E o que é mais preocupante, esta autorização não decorre da Constituição Federal, mas por uma Lei Ordinária.
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NOTAS
1 ROCHA, José Manuel Sacadura. A História do Direito no Ocidente. São Paulo: Atlas, 2015.
2KELLY, John Maurice. Uma Breve História da Teoria Geral do Direito Ocidental. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 411.
3MARINONI, Luiz Guilherme. A Ética dos Precedentes. São Paulo: Revista dos Tribunais 2015. p. 57.
4 SILVA, Ivan de Oliveira; FRANZOLIN, Cláudio; CARDOSO, Roberta. Lições de Teoria Geral do Direito. São Paulo: Atlas, 2014.
5 DIDIER JR. Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro; ATAIDE JR., Jaldemiro Rodrigues; MACÊDO, Lucas Buril (Coord.). Precedentes. Salvador: Jus Podium, 2015. p. 49.