Em fevereiro, o ano judiciário brasileiro promete começar com todos os holofotes voltados para o Supremo Tribunal Federal (STF). É que a mais alta corte do país iniciará suas atividades com uma tarefa para lá de polêmica: decidir se o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pode ou não apurar irregularidades cometidas por magistrados. Duas liminares concedidas pelos ministros do STF Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, em dezembro do ano passado, restringiram o poder da Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do CNJ responsável por promover as investigações. Ao colegiado da Suprema Corte caberá, no próximo mês, validar ou não essas determinações.
Ambas as liminares foram concedidas às vésperas do recesso forense e acirraram ainda mais a crise no Poder Judiciário, iniciada em setembro, quando a Corregedora Nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, disse em entrevistas que no Brasil existem “bandidos de toga”.
A declaração criou um racha entre a corregedora e o presidente do CNJ e também do Supremo, ministro Cezar Peluso, e iniciou praticamente uma guerra com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e a Associação dos Juízes da Justiça do Trabalho (Anamatra), que, contrárias às investigações, ingressaram conjuntamente no STF com mandados de segurança para restringir o poder de investigação do órgão.
As ações resultaram nas liminares concedidas em dezembro. Uma delas foi proferida pelo ministro Marco Aurélio, monocraticamente, após a ação movida pelas associações entrar 13 vezes na pauta do STF ao longo de 2011 e não ser julgada. Segundo a decisão do ministro, somente os tribunais locais podem abrir processos para investigar irregularidades cometidas por magistrados. O Conselho Nacional de Justiça, portanto, somente poderia processar os juízes após a conclusão dos casos pelas corregedorias locais.
De acordo com levantamento preliminar da corregedoria, cerca de 2,5 mil processos envolvendo juízes, atualmente em tramitação, correm o risco de “morrer na praia”, se a liminar do ministro Marco Aurélio prevalecer. É que praticamente todas essas ações (pedidos de providência, reclamações disciplinares, sindicâncias e processos administrativos) foram abertas diretamente pela Corregedoria Nacional de Justiça. Algumas foram encaminhadas para os tribunais locais continuarem a investigação, outras foram mantidas no próprio Conselho.
A depender da posição a ser dada pelo STF a essa liminar, todos os processos que foram abertos pela Corregedoria Nacional terão de começar do zero nos tribunais locais – o que pode levar muitos dos casos à prescrição. É que o prazo prescricional para as investigações contra juízes são curtos, variam de seis meses a cinco anos, a contar do momento em que o fato foi levado a conhecimento.
A segunda liminar, por sua vez, resulta de acontecimentos que tiveram início em julho de 2010. Na ocasião, o então Corregedor Nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, solicitou ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) um levantamento sobre as movimentações atípicas realizadas por membros e serventuários do Poder Judiciário a partir de 2006 até 2010 (esse período foi escolhido a fim de se evitar possíveis prescrições). O relatório, no entanto, chegou apenas em fevereiro do ano passado, quando Eliana Calmon já havia assumido o posto.
De um universo de 216,8 mil juízes e servidores, o Coaf encontrou 3.426 movimentações acima do esperado (mais de R$ 250 mil por ano), sendo 233 delas classificadas como atípicas. Os estados com o maior registro de transações foram São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. A corregedoria nacional optou por apurar primeiro a Justiça paulista, já que a Bahia havia sido inspecionada duas vezes (em 2008 e 2010) e o Rio de Janeiro seria o próximo destino. Descontentes, as associações ingressaram com ação no STF para barrar a investigação. Os argumentos foram acolhidos pelo ministro Lewandowski, que acabou por conceder a liminar, paralisando assim a apuração do TJSP.
Diante do alarde feito pelas entidades na imprensa de que estaria promovendo uma devassa nas folhas de pagamento de mais de 200 mil pessoas em todo o País, Eliana Calmon interrompeu seu recesso e também o silêncio a que deseja se submeter até que o caso seja decidido em definitivo pelo STF. Em coletiva, declarou: “Só posso lamentar a polêmica, que é fruto de maledicência e irresponsabilidade da AMB, Ajufe e Anamatra, que mentirosamente desinformam a população ou a informam com declarações incendiárias e inverossímeis.”
À imprensa, a ministra explicou que as movimentações atípicas não necessariamente constituem-se em irregularidades e que há casos aceitáveis – como, por exemplo, heranças recebidas ou eventual venda de imóvel que represente ganho na renda do magistrado. Eliana também negou que tivesse acessado dados bancários dos magistrados, sobretudo de ministros do STF.
A ministra destacou que sua equipe chegou a São Paulo no início de dezembro com a ideia de investigar cerca de 50 nomes que já eram alvo de reclamações no CNJ. “Pegamos esses nomes por amostragem, pois era impossível olhar tudo. Se fossem mais de 200 mil pessoas investigadas não seria uma listagem, seria uma serpentina”, afirmou.
Sobre a apuração no TJ de São Paulo, constatou: “Vimos que muitos magistrados não haviam fornecido cópia do Imposto de Renda e que havia declarações de bens que sequer foram analisadas porque os envelopes ainda estavam lacrados”.
Segundo a corregedora, o monitoramento da evolução patrimonial dos juízes brasileiros é feito pelo CNJ há quatro anos, com base na emenda constitucional que criou o órgão. Na avaliação dela, o conselho deve, sim, fiscalizar a magistratura e, dessa forma, contribuir com o fim da corrupção no país.
Crise a todo o vapor
Em meio à crise no Poder Judiciário, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado chegou a incluir na pauta de votações a Proposta de Emenda Constitucional que visa a fortalecer o poder de investigação do CNJ, mas, em decorrência das liminares, a votação foi adiada. A desistência ocorreu mesmo após um acordo entre governistas e oposicionistas de que seria votado o texto sobre as atribuições do Conselho Nacional de Justiça.
O argumento do presidente da CCJ, senador Eunício Oliveira (PMDB-CE), para o adiamento da votação, foi de que regimentalmente o projeto não poderia ser apreciado pelo fato de já estar marcada uma audiência pública sobre as funções do CNJ. O autor da PEC, Demóstenes Torres, classificou a suspensão da votação como “golpe”.
Sem uma decisão definitiva do Supremo ou a aprovação pelo Congresso Nacional de proposição que confirme ou não os poderes do CNJ, a crise no Poder Judiciário segue a todo o vapor, com trocas de farpas entre as autoridades envolvidas por meio da imprensa.
Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, no início de janeiro, o ministro Marco Aurélio defendeu a liminar que concedeu e declarou que o Conselho Nacional de Justiça não é um “super órgão” nem está “acima do Supremo Tribunal Federal”.
A corregedora, em entrevista ao Estado de São Paulo, publicada no dia 10 de janeiro, reafirmou a autonomia e a importância do CNJ investigar: “Quem é que investiga o desembargador? É o próprio desembargador”, disse.\
“O grande problema não são os juízes de primeiro grau, são os tribunais de justiça. Os membros dos TJs não são investigados pelas corregedorias, que só têm competência para investigar juízes de primeiro grau. Nada nos impede de investigar. Como juíza de carreira, sei das dificuldades, principalmente quando se trata de um desembargador, que tem ascendência política, prestígio e certo domínio sobre os outros”, acrescentou.
Sobre os que querem impedir seu trabalho, ela mandou um recado: “Eles não vão me desmoralizar. É um momento muito significativo. Não desanimarei, podem ficar seguros disso”.