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Decreto 201/67 aplicável ou não nos casos de infração político administrativo de prefeitos e vereadores?

31 de agosto de 2006

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Fenômeno assaz recorrente no atual contexto político nacional diz respeito aos inúmeros processos versando sobre a cassação ou a perda do mandato dos políticos, a demandar, em cada caso, procedimentos distintos.

Sob este diapasão, ainda nos albores de 2000, a Revista Época (edição de 24 de janeiro, p.36), informou que mais de 2.000 prefeitos brasileiros são ou já foram processados por corrupção, rotina que nas cidades de interior tem o condão de impedir diversas reeleições.

Como é bem de ver, a cassação do mandato (rectius, crime de responsabilidade) é conseqüência da condenação judicial passada em julgado e não se confunde com perda do cargo, atribuição da Câmara de Vereadores, nos limites da lei orgânica, conforme será adiante exposto.

Deveras, a denúncia em face do cometimento de crimes de responsabilidade, que, a bem da verdade, não deixam de ser comuns e descritos no art. 1º do Decreto 201/67, compete ao Ministério Público.

Desta sorte, não detêm as Câmaras Municipais competência para autorizar, ou não, a persecutio criminis tal qual o Parquet, verdadeiro senhor da Ação Penal Pública.

A esse respeito, já teve oportunidade de decidir o Superior Tribunal de Justiça.

“Penal. Prefeito Municipal. Crime de responsabilidade – Art. 1º. Dl 201/67.

I – Os crimes previstos no art. 1º do DL nº 201/67 configuram, na melhor exegese, crimes funcionais, sujeitos a processo e julgamento pelo Poder Judiciário, independentemente de autorização do órgão legislativo municipal. Inexiste impedimento legal da instauração ou prosseguimento da ação penal após a extinção do mandato de prefeito. Precedente do STF.

II – O art. 4º do DL nº 201/67 elenca as infrações político-administrativas, em que se prevê a perda do mandato, sendo julgadas pela Câmara Municipal. A cassação do exercício do cargo de prefeito impede a instauração ou o prosseguimento do processo político-disciplinar, regulado no art. 5º do referido Decreto-Lei, em face da perda do objeto.

III – Recurso provido.”

(RESP nº 38469/SC, 6ª Turma, Rel. Min. Vicente Leal, in RSTJ, vol. 86, p. 383. Original sem grifos)

Nesta diretriz hermenêutica, o Supremo Tribunal Federal também já se pronunciou no Recurso de Habeas Corpus nº 49.204/SP, primeira Turma, com voto capitanea da eminente relatoria do Min. Amaral Santos, DJ 10/3/72 p. 6.142.

Estabelecida a distinção entre cassação de mandato e perda do cargo, alça-se necessária a seguinte indagação: para os casos de perda do cargo, pode a Câmara dos Vereadores lançar mão do decreto 201/67, que descreve as infrações político-administrativas em seu artigo 4º?

O Professor Emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Dr. Múcio Ribeiro Dantas aduziu que o Decreto-Lei n.º201/67 foi revogado pela Constituição de 1988 quanto ao estabelecimento da competência à Câmara Municipal para o julgamento do Prefeito, nas infrações político-administrativas.

Caberia, na ótica do renomado publicista potiguar, só ao Tribunal de Justiça julgar prefeito e vereadores, seja por crime comum, de responsabilidade ou mesmo nas chamadas infrações político-administrativas. Tal entendimento, no sentido radical da revogação total do Decreto 201/67, em que pese respeitável, não grassa muitos defensores, destacando-se os renomados juristas Victor Nunes Leal e Manoel Gonçalves.

No entendimento do Professor Manoel Gonçalves não se poderia dar à Câmara, órgão legislativo, função jurisdicional, sem dispositivo constitucional expresso.

Nem tanto ao mar e nem tanto à terra, o Colendo Supremo Tribunal Federal entendeu ser o Decreto-Lei n.º 201/67 válido, em parte, perante a Constituição de 1988 que, ampliando a autonomia dos Municípios, a estes entregou a tarefa de disciplinar o processo de perda de mandatos municipais, bem como definir infrações político-administrativas, por meio de lei local, ou até mesmo na sua lei orgânica.

Com efeito, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 29, conferiu relativa soberania ao município, atribuindo a ele ampla competência para editar sua Lei Orgânica Municipal.

Por conseguinte, quando o assunto versar sobre sanções e restrições ao político e cidadão, não há que se conceber legislações conflitantes sobre a mesma matéria, isto é, não há de se falar  na coexistência entre o decreto 201/67 e a Lei Orgânica, quando ambas disporem de forma contrária acerca da perda do mandato.

A lei orgânica ou qualquer outra lei municipal é o bastante.

Outrossim, preceitua o mestre Hely Lopes Meirelles, em lapidares linhas de sua festejada obra “Direito Municipal Brasileiro”, que o referido Decreto-Lei não está a ser aplicado totalmente.

“Os arts. 4º a 8º do Decreto-Lei nº. 201/67 foram revogados pelos artigos 29 e 30 da Constituição Federal de 1988, devendo essa matéria ser regulada pela Lei Orgânica do Município.

Tais sanções podem ser estabelecidas ou modificadas por norma municipal e, como imposições punitivas, devem ser interpretadas restritivamente e aplicadas tão-só aos fatos típicos de sua incidência, observando o devido processo legal.”

O processo de cassação de mandato deve ser regulado pela legislação local. Contudo, na ausência dessa norma municipal, pode-se seguir o disposto no art. 5o do Decreto-Lei 201/67”.

Nesta toada, tem-se o RE 301.910-4, do Colendo Supremo Tribunal Federal, desafiado através da seguinte ementa do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul:

“Argüição direta de inconstitucionalidade – art. 76 da Lei Orgânica Municipal de Selvíria – infrações político-administrativas – tipificação – possibilidade – julgamento político – interesse local – art. 29 da Constituição Federal – revogação dos artigos 4º a 8º do Decreto-Lei 201/67 – improcedência do pedido – constitucionalidade da norma.

Os artigos 4º a 8º do Decreto-Lei 201/67 foram revogados pelos artigos 29 e 30 da Constituição Federal de 1988, devendo essa matéria ser regulada pela Lei Orgânica do Município. As infrações político-administrativas do prefeito e as faltas ético-parlamentares dos vereadores, ensejadoras da cassação de seus mandatos, não constituem matéria processual, porquanto a cassação tem natureza parajudicial e caráter político punitivo, e, por isso mesmo, é de interesse local que sejam afetas à competência da lei orgânica municipal.

Do supramencionado aresto do STF, extrai-se o seguinte trecho da brilhante relatoria da Ministra Ellen Gracie:

De qualquer sorte, mesmo que superados os óbices de admissibilidade do recurso extraordinário, observo que, no mérito, a decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul manifesta entendimento consentâneo com o que decidido pelo Plenário da Corte.(rel. Min. Marco Aurélio, unânime, DJ de 08.06.2001).

Daí deflui a conclusão de que cabe a utilização do referido decreto lei, apenas se omissa for a Lei Orgânica do Município quanto ao processo de perda de mandato de prefeito ou vereador, o que revela-se cada vez mais raro, dada a existência de lei orgânica em quase todos os municípios brasileiros.

Assim sendo, se previsto na lei municipal o procedimento e sua tramitação contra prefeito ou edil, a instauração de um processo visando à perda do mandato não pode se socorrer da subsidiariedade do Decreto-Lei nº. 201/67, que dava a qualquer cidadão o direito de iniciar o processo.

Quanto à aplicabilidade do Decreto-Lei 201/67 em caso de omissão da legislação municipal, cumpre trazer a colação recente julgado do Tribunal de Justiça Fluminense, da relatoria do eminente Desembargador Antonio Saldanha Palheiro, 13ª Câmara Cível, unânime, que, como se julgasse o caso, assim decidiu:

A carta política de 1988 reconheceu o Município como ente federativo, concedendo-lhe a respectiva autonomia administrativa. Por tais circunstâncias, apesar do reiterado reconhecimento da não revogação do Decreto-lei 201/67 com o advento da Constituição Federal, a tramitação procedimental dos processos administrativos deve observar as normas municipais, que prevalecem sobre o mencionado Decreto-lei, o qual é aplicado apenas nos casos omissos. Negado provimento ao recurso. (TJRJ, 2002.001.21272, Julgado em 14/05/2003)”

Por outro lado, em atenção ao direito do munícipe de apresentar denúncia para cassação de mandato eletivo, sobreveio a Lei Federal nº 4.717/65 (Ação Popular), cuja ratio essendi é garantir o amplo acesso a qualquer um do povo à prestação jurisdicional.

Por todo o exposto, infere-se que o uso irrestrito do referido decreto, com a aplicação de todos os seus artigos, consubstancia inequívoca subversão da ordem jurídica, visto que o mesmo foi manifestamente suplantado pela legislação superveniente.

Conclusivamente, alça-se inquestionável a evidente revogação dos arts. 4º a 8º do Decreto-Lei nº. 201/67 pelos artigos 29 e 30 da Constituição Federal de 1988, que atribuem competência aos municípios para legislar sobre matérias antes disciplinadas pelo Decreto.  A Câmara dos Vereadores, através de um de seus representantes, pode instaurar processo de perda de mandato, desde que respeitado o procedimento previsto na Lei Orgânica ou em outra lei municipal afeta a tal matéria.   

E assim o Direito, como ciência mutável que é, progride com vistas a aperfeiçoar os mecanismos de composição dos conflitos, em um movimento inexorável, já contemplado por Luis de Camões em uma de suas belas passagens: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se a confiança: todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.”