Edição 159
Democracia e os 25 anos da Constituição Cidadã
26 de novembro de 2013
Marcus Abraham Desembargador Federal do TRF-2a Região, Professor Titular de Direito Financeiro da UERJ
Inegável reconhecer o amadurecimento da democracia brasileira, com a inquestionável conscientização da população dos seus direitos de cidadania, decorrentes do texto e do espírito da nossa Carta Cidadã de 1988 que ora completa 25 anos, representando a consolidação da redemocratização do Estado brasileiro após vinte anos de ditadura militar, antecedido de alternâncias de regimes democráticos e autoritários ao longo do século XX.
A Constituição brasileira de 1988, forjada no ferro dos direitos sociais e no fogo dos valores liberais, estabelece no seu art. 3º os objetivos da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária, desenvolver o país, acabar com a pobreza e a marginalização, e minimizar as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos; tais intentos têm como fundamentos consignados no art. 1º, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho e da livre iniciativa.¹
Mas, diante de tantas pretensões, recursos financeiro se fazem mais do que imprescindíveis. Porém, não basta arrecadar o necessário, de forma justa, equitativa e equilibrada. A administração de tais recursos deve ser feita de forma zelosa e eficiente, e a sua aplicação precisa ser realizada de maneira criteriosa e sábia para que se possa atender às necessidades públicas da maneira mais ampla e satisfatória possível.
As manifestações populares ao longo de 2013 demonstram uma inequívoca consciência do povo brasileiro da incapacidade crônica dos governos, em todos os níveis federativos, em atender a tais objetivos, seja no viés arrecadatório, seja no da destinação, especialmente pelo contingenciamento injustificado das dotações orçamentárias e pela inadequação das suas escolhas.
Como bem destacou Ney Carvalho2, esses ciclos de vinte anos são representativos na história brasileira. Nas suas palavras: “Tais movimentos são repetitivos, desenrolam-se em ondas recorrentes”. Os movimentos populares de hoje se iniciaram a partir do reajuste dos preços das passagens de ônibus. Por sua vez, em 1992, assistimos aos “cara-pintadas” pedindo o impeachment do então Presidente Collor. Em 1984, um milhão e meio de pessoas foram às ruas bradar pelas “Diretas Já!”. Em 1968, tivemos a passeata dos cem mil na Cinelândia, organizada pelo movimento estudantil, contra a recém-implantada Ditadura Militar. Em 1942, a UNE foi às ruas liderando as manifestações antifascistas. Em 1925, a Coluna Prestes pelo descontentamento com a República Velha. Em 1904, a chamada Revolta da Vacina. Em 1880, foi a vez da Revolta do Vintém. E tantas outras no período pré-republicano.
Por outro lado, as demandas sociais manifestadas nos recentes movimentos populares não levam em consideração uma premissa básica das finanças públicas: a de que tudo tem um custo, mesmo que não seja visível a olho nu. Aliás, como dizia o economista Milton Friedman, no título de uma de suas obras: “Não existe almoço grátis”. Assim, para atender a todas as demandas, o governo se deparará com o velho dilema do “cobertor curto”: de um lado, a pressão e o apelo social para o aumento dos gastos públicos, no que se convencionou chamar de “conta das ruas”; de outro, as limitações financeiras e a necessidade de se encontrarem fontes alternativas para custear as novas despesas.
O fato é que, com duas décadas e meia da promulgação da Constituição Federal de 1988, já tivemos 74 Emendas Constitucionais, além de outras seis Emendas Revisionais. Ao todo, portanto, oitenta mudanças no texto constitucional.
Mas, afinal, isso se justifica, pois o Direito está em constante mutação, evoluindo pari passu com a sociedade, a fim de atender às suas necessidades e realizar a sua função.
E a base jurídica dessa evolução é a Constituição, que, por meio de suas emendas e revisões, adapta o seu texto a fim de oferecer instrumentos jurídicos, econômicos e financeiros aos anseios da coletividade e às pretensões dos governos, tudo por meio da legítima atividade do Poder Constituinte Derivado.
Devemos reconhecer a necessidade de constantes ajustes entre as normas constitucionais e a realidade fática e contemporânea, sob pena de eventual descompasso acarretar uma ruptura entre a ordem jurídica e a ordem social.
Precisamos, também, aceitar que o texto constitucional não é provisório, mas sim um texto em contínuo desenvolvimento. Não se trata de um produto pronto e acabado, mas de um documento vivo e em constante evolução.
A atividade estatal e a aplicação do Direito em cada nação dependem do modelo constitucional adotado e do ambiente jusfilosófico em que se inserem.
Assim, nestes 25 anos, identificamos claramente um hibridismo em seu perfil e uma constante tensão entre os valores sociais (de natureza coletiva) e os liberais (de índole individual), que influenciam sobremaneira a figura de um Estado atuante como o brasileiro.
Ao conceder maior efetividade aos valores e princípios constitucionalmente previstos, permite-se exercer sua função de maneira mais equilibrada, balanceando e ponderando seus conceitos e comandos de ordem social e liberal, absorvendo as demandas da coletividade com maior capacidade e podendo responder a elas.
E, naturalmente, a atuação do Estado Contemporâneo brasileiro acompanha em paralelo essas mudanças paradigmáticas à medida que a consolidação do Estado Democrático de Direito traz consigo a reconstrução do relacionamento deste – e de suas instituições – com a própria coletividade.
Após vinte anos de ditadura militar, a nossa sociedade encontrava-se sufocada pelo regime autoritário, acirrando-se os ânimos para urgentes mudanças, não apenas quanto ao regime político, mas também quanto ao sistema eleitoral. O ano de 1984 foi decisivo. Viram-se, em todas as grandes capitais, movimentos populares pela implantação do sistema de voto direto e pela eleição de um presidente civil.
Entretanto, não havendo uma coesão política e idealística, a Emenda Constitucional (“Emenda Dante de Oliveira”) que deveria restabelecer o sistema eleitoral direto para a Presidência da República foi reprovada pelo Congresso em 25 de abril de 1984. O presidente eleito pelo voto indireto, a partir do colégio eleitoral, Tancredo Neves, veio a adoecer no dia de sua posse em 15 de março de 1985 e a falecer no mês seguinte, assumindo o governo em seu lugar o Vice-Presidente José Sarney.
Naquele momento de comoção social e mobilização dos partidos políticos, podíamos identificar o início da transição do regime autoritário para o democrático.
Naquela circunstância, era imperioso modificar as ordens política e jurídica do Estado brasileiro, ainda subjugadas pela Carta de 1967, modificada diversas vezes ao longo do período militar.
As associações de classe e os partidos políticos progressistas demandavam a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte com representantes eleitos pelos cidadãos e com função exclusiva de elaborar a nova Constituição, já que, daquela maneira, haveria maiores legitimidade, representatividade e soberania nas deliberações.
Todavia, mais uma vez frustrando-se os anseios dos movimentos democráticos, a maioria dos deputados decidiu pela convocação do Congresso Constituinte em 1986, formado por deputados federais e senadores eleitos em novembro daquele mesmo ano, que acumulavam ambas as funções: de congressistas e de constituintes.
Como bem ressaltou, à época, Raymundo Faoro3, “o Poder Constituinte não pertence aos legisladores, ainda que dotados de poderes de emenda, sejam os atuais ou os futuros legisladores, mas ao povo em conjunto, e, em expressão diferente, embora aceitável, à nação”. E mais, em uma verdadeira lição de democracia, Faoro nos ensina que “as constituintes não são convocadas, ao contrário da tese insistentemente divulgada. As constituintes nascem no momento em que o poder constituinte renasce, muitas vezes à revelia do governo de fato que o sufoca.”4
De toda forma, a assim denominada Nova República se instaurava pela adoção de medidas relevantes, como o acesso dos analfabetos ao voto, a autonomia para a criação de partidos políticos e, sobretudo, a emenda constitucional que permitiu eleições diretas para a sucessão presidencial.
Instalada em 1º de fevereiro de 1987 e presidida pelo Deputado Ulysses Guimarães, do PMDB (popularmente conhecido como “Senhor Diretas”), a Assembleia Nacional Constituinte foi composta por 559 membros. Diversos setores da sociedade foram instados a contribuir e influenciar as deliberações. Inúmeros conflitos de ordem ideológica surgiram, porém, avançou-se muito em questões como a dos direitos sociais e do trabalho, dos direitos humanos, da cidadania e de outros valores que redesenharam as ordens social, econômica e política brasileiras.
Foram dezoito meses de trabalhos, e, em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a nova Constituição da República Federativa do Brasil. Recebeu ela, à época, inúmeras críticas, tais como a sua extensão (245 artigos e setenta disposições transitórias); o excesso de disposições que dependiam de regulamentação; a abordagem de temas específicos que não comportavam o foro constitucional, em situações em que a Constituição deveria se limitar a estabelecer princípios gerais; e ambiguidades de ideais em detrimento de uma harmonia, demonstrando o embate das forças políticas da época.
De uma maneira sucinta, podemos dizer que a Constituição Federal de 1988 ofereceu uma vasta gama de direitos fundamentais individuais e coletivos; aboliu a censura e outros cerceamentos das liberdades; reduziu sobremaneira o poder individual do Executivo e, inversamente, fortaleceu os Poderes Legislativo e Judiciário, dentro do jogo de equilíbrio democrático de poderes; manteve o regime presidencialista (submetido a plebiscito em 1993) e a república federativa; fortaleceu também os estados e municípios; e, finalmente, reconstituiu o sistema tributário nacional, com a redistribuição de tributos entre os entes federativos e a respectiva repartição de receitas financeiras, solidificando a autonomia dos estados e municípios, atenuando os desequilíbrios regionais e ampliando os direitos e as garantias dos contribuintes. Igualmente, impôs maiores limitações ao poder estatal de tributar, estendendo à seara fiscal os valores de segurança jurídica, de liberdade e de igualdade, necessários para a efetiva realização da almejada justiça social dentro de um Estado Democrático de Direito que, naquele momento, ressurgia.
Com mais de 220 anos, a Constituição dos Estados Unidos sofreu apenas 27 emendas, enquanto a brasileira, nestes 25 anos que ora se completam, já passou por seis Emendas Constitucionais de Revisão e outras 74 Emendas Constitucionais. Se esse excesso é ou não pertinente, aqui não se pretende julgar. Mas não temos como deixar de reconhecer comoválida a sua inexorável evolução.
A propósito, relevantes são as palavras de Carlos Maximiliano5, para quem: “Não pode o Direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica. As mudanças econômicas e sociais constituem o fundo e a razão de toda a evolução jurídica; e o Direito é feito para traduzir em disposições positivas e imperativas toda a evolução social.”
E, na mesma esteira, afirma Pinto Ferreira6 que “as constituições não são obras eternas e permanentes; têm, ao contrário, a necessidade de ajustamento e adaptação às novas condições sociais e históricas.”
O que se percebe é um fluxo natural de influências e pressões de interesses originados nas necessidades dos governados e, principalmente, daqueles que governam, seja democraticamente ou não.
Com sete Constituições, percebemos que não é ela própria – a Constituição – que transforma a sociedade, mas sim a sociedade e os detentores do poder em cada período é que transformam a Constituição, que somente vem a refletir os ideais das forças políticas que lhe dão vida.
Daí reconhecermos a importância dos valores e anseios que nela se inserem, porque será com base nestes que a sociedade viverá – bem ou mal.
A Constituição Cidadã, como foi assim conhecida na sua origem, foi fruto de um particular momento histórico e da mobilização da sociedade brasileira, desejosa de um novo Brasil. Devemos, contudo, reconhecer as suas imperfeições, buscar o seu aprimoramento e envidar máximos esforços para que a Carta Maior possa produzir os efeitos concretos originariamente pretendidos e oferecer um mundo melhor aos brasileiros. Se, para encontrar o ponto ideal de justiça social, o Brasil tiver de passar por outras dezenas de emendas constitucionais, que assim se faça, pois não há Constituição perfeita e tampouco existe um ordenamento jurídico que seja perene.
Afinal, como bem leciona Michel Temer7, “as Constituições se pretendem eternas, mas não são imodificáveis”. E completa o eminente constitucionalista: “Fatores ideológicos, econômicos, o pensamento dominante da comunidade, enfim, é que acabam por determinar a atuação do constituinte.”
Esses 25 anos da Constituição Federal de 1988 devem oferecer aos brasileiros e aos operadores do Direito motivos não apenas para celebrar a data, mas principalmente para reconhecer os efeitos positivos de ordem política, jurídica, econômica e, sobretudo, social que estas duas décadas e meia nos abonaram, com a consolidação da transição de um regime autoritário para o democrático, o amadurecimento das instituições, a inserção e a efetividade dos direitos humanos fundamentais, e a conscientização popular dos seus direitos e deveres cívicos, possibilitando a solidificação do Estado Democrático de Direito.
Referências bibliográficas ____________________________________________________
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Notas ___________________________________________________________________
1 ABRAHAM, Marcus. As emendas constitucionais tributárias e os vinte anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
2 Jornal O Globo, dia 1/7/2013, página 17.
3 FAORO, Raymundo. Assembleia Constituinte: a legitimidade recuperada. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 81.
4 Idem. p. 89.
5 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 157 e 159.
6 PINTO FERREIRA, Luis. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 30.
7 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 34.