Desafios para a compreensão do fenômeno e para o combate aos efeitos nocivos da desinformação

17 de outubro de 2022

Carlos Alberto Ávila Araújo Professor da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais

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Nos últimos anos, a palavra “desinformação” vem se tornando muito presente nos vários ambientes e dimensões da vida humana: na ciência, na educação, na política, na cultura, na religião, e até mesmo na vida cotidiana. Junto com ela, outras palavras, como “infodemia”, “pós-verdade” e “fake news”, entre outras, também vêm sendo muito utilizadas e essa intensidade de seu uso é sintoma de uma realidade contemporânea: a intensa produção, circulação e utilização de informações falsas, principalmente (mas não só) nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens instantâneas.

A produção e circulação de informações falsas não é exatamente uma novidade na história humana. Mentiras, boatos, rumores e falsificações sempre existiram, estiveram presentes nas mais diferentes formações sociais, de diversas épocas. Mas há algo novo, há uma realidade diferente nos últimos anos – o que tem motivado pesquisadores a caracterizar os tempos atuais como “sociedade da ignorância”, “sociedade do desconhecimento” e outras designações.

Esse fenômeno contrasta com a realidade de quatro ou cinco décadas atrás. Nos anos 1970 e 1980, era muito comum o discurso de que estávamos entrando numa era da “sociedade da informação” ou “sociedade do conhecimento”. O desenvolvimento de tecnologias digitais trazia a promessa de um amplo acesso à informação para todas as pessoas, bem como a possibilidade também de que todas as pessoas se tornassem produtoras e disseminadoras de informação.

Os anos se passaram, as previsões de amplo acesso à informação e amplas condições de produção da informação se cumpriram, mas as previsões de uma sociedade mais sábia, mais justa e mais democrática não se confirmaram. Nas últimas décadas, movimentos como o terraplanismo e a negação das mudanças climáticas da Terra ganharam força. No plano político, a vitória de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos em 2016, e a aprovação do Brexit, também em 2016, se tornaram verdadeiros paradigmas de como as pessoas podem tomar decisão sobre o voto baseadas em informações falsas. Alguns anos depois, durante a pandemia de covid-19, parcelas significativas da população de vários países duvidaram da existência do vírus, dos números de mortos, da importância das medidas de isolamento, da necessidade do uso de máscara, e até mesmo da validade das vacinas. Mais recentemente, no Brasil, movimentos que levantam dúvidas sobre a eficácia das urnas eletrônicas se converteram numa verdadeira ameaça à democracia. E agora, até mesmo pesquisadores de institutos de pesquisa têm sido fisicamente agredidos durante a execução de seu trabalho, por conta de informações falsas espalhadas sobre eles.

Esses fatos e muitos outros ocorridos em vários países têm motivado pesquisadores de diferentes áreas (como a Ciência Política, a Ciência da Computação, a Antropologia, o Direito, a Ciência da Informação, entre outras) a estudarem o que tem ocorrido nas dinâmicas informacionais das sociedades contemporâneas. Em tais estudos, têm ficado cada vez mais claro que as questões da desinformação possuem uma dupla natureza. De um lado, há estruturas organizadas de produção e disseminação de conteúdos total ou parcialmente falsos. Há uma estrutura de financiamento, ligada a grupos políticos, econômicos e religiosos, e que articula conteúdos e linguagens específicos para diferentes tipos de mídias e serviços de informação, de acordo com distintos perfis de público que se deseja atingir. De outro lado, há uma dinâmica mais espontânea, na qual pessoas comuns, no decurso de suas atividades cotidianas, colaboram com a desinformação compartilhando conteúdos falsos, deixando de checar as informações, se apropriando de conteúdos enganosos e os utilizando para a tomada de decisões e condução de suas ações.

Ao mesmo tempo, é possível perceber também que o fenômeno da desinformação é composto por diferentes aspectos ou dimensões, que podem ser divididos em basicamente dois grupos, conforme atuam em relação a uma questão fundamental: a confiança nas instituições de produção e disseminação do conhecimento, tais como a ciência, a universidade, a escola, o jornalismo, os institutos de pesquisa, entre outras. De um lado estão conteúdos e discursos produzidos por atores que reconhecem a legitimidade de tais instituições e, se aproveitando dessa legitimidade, produzem conteúdo falso imitando o modo de expressão de tais instituições. De outro lado, estão aqueles conteúdos que se sustentam na crítica e desconstrução de tais instituições.

No primeiro grupo estão as chamadas fake news. Elas são produzidas com a intenção de mentir, de enganar, de distorcer ou esconder a verdade, e fazem isso buscando ser apreendidas como notícias jornalísticas verdadeiras. Ou seja, as fake news são parte de uma estratégia que reconhece a legitimidade do discurso jornalístico, das instituições jornalísticas e, em lugar de questionar essa legitimidade, na verdade se aproveitam delas para terem credibilidade.

As fake news, portanto, são mentiras travestidas de jornalismo. Elas podem ter origem em um site que copia, na aparência, as características de um site jornalístico; podem ter como nome ou endereço web o mesmo nome ou endereço de uma instituição já existente, com uma letra trocada; podem ser assinadas por pessoas que se apresentam como jornalistas sem serem, ou por pessoas com o nome quase idêntico ao de jornalistas ou colunistas reconhecidos e respeitados. O texto utiliza a estrutura típica do jornalismo – linguagem, entrevistas, apoio em avaliações de especialistas, imagens, entre outros. Associada às fake news está a fake science, isto é, discursos que promovem o mesmo movimento: espalham mentiras travestindo o discurso de elementos que o fazem parecer científico.

De outro lado, estão aquelas ações que buscam justamente deslegitimar as instituições de produção do conhecimento. Entre elas estão os chamados testemunhais falsos. Trata-se da velha fofoca, ou rumor, mas com uma sofisticação proporcionada pelos aparatos tecnológicos (filmagens e voz) que, ao contrário das fake news, se constrói na oposição às instituições, na crença de que universidades, escolas, cientistas, veículos jornalísticos, organizações internacionais são todos manipuladores, doutrinadores, agentes conspiratórios, e que, portanto, não merecem credibilidade. Os testemunhais são produzidos por pessoas que se apresentam como pessoas “comuns”, que usam linguagem coloquial, erros gramaticais, filmagens amadoras, e que defendem essas características como uma virtude. O fato de serem pessoas simples, “assim como a pessoa que assiste”, se torna o critério de legitimidade, de credibilidade, em oposição às “forças manipuladoras” das instituições do chamado “sistema”. A força do relato, o grau de emoção do autor ou apresentador, e a importância dos fatos apresentados (normalmente secretos e assustadores, porque estão sendo escondidos justamente pelas instituições) agregam força narrativa a essa modalidade informativa.

Outro fenômeno é o chamado discurso do ódio. Diferente dos dois primeiros, ele não busca ser factual, ele não tem a intenção de apresentar um fato do mundo. Antes, ele diz de intenções, desejos, necessidades e medos de determinado sujeito ou grupo de sujeitos – por exemplo, de que imigrantes voltem para os países deles, de que o feminismo desapareça e tudo volte a ser como antes, de que determinado grupo político seja exterminado. Sua intenção, e nisso ele é complementar às fake news e aos testemunhais falsos, é mobilizar as pessoas para agirem com a emoção e não com a razão. Mais especificamente, com determinadas emoções (medo, ressentimento, ódio) de forma a proporcionar reações de agressividade, sobretudo em relação à discordância. O outro deixa de ser visto como adversário, portador de ideias ou pontos de vista distintos, e se torna um inimigo a ser eliminado, e todo o objetivo dos espaços informacionais passa a ser vencer o outro. Nesta modalidade, os fatos mencionados podem ser verdadeiros ou não, a intenção é colocar as pessoas em estado de guerra – mas é justamente essa condição emocional que predispõe as pessoas a deixarem de lado a busca da verdade em prol do objetivo mais urgente de vencer a discussão a qualquer preço.

E há ainda um outro fenômeno, que vem sendo chamado de pós-verdade. Embora muitas pessoas critiquem o seu uso, identificando que ele seria na verdade um modismo ou mero sinônimo de mentira com uma embalagem diferente, existem pesquisadores que defendem que o termo é um conceito científico que designa um fenômeno inédito, que se produz na confluência de três condições. A primeira delas é a ampla disseminação de informações falsas (complemente falsas, e não apenas distorções como na era dos meios de comunicação de massa) com suporte tecnológico que permite alcances inimagináveis na era da fofoca e dos rumores. A segunda é a possibilidade de checagem nos dias atuais, em que muitas pessoas podem, em poucos segundos e com aparelhos de uso cotidiano como o smartphone ou o notebook, checar a veracidade das informações recebidas por elas em qualquer meio. A terceira é o fato das pessoas não fazerem isso, isto é, não checarem, não verificarem se uma informação é verdadeira ou falsa, antes de a repassarem e dela se apropriarem. É esse desinteresse, esse desdém pela verdade, que marca aquilo que vem sendo identificado como uma “cultura da pós-verdade” ou um “regime de pós-verdade” A expressão cultura designa justamente um conjunto de valores, de naturalizações, de estímulos a um determinado comportamento – no caso, o desprezo pela verdade, a valorização daquilo que confirma ideias preconcebidas, a seleção apenas daquilo que é confortável. A pós-verdade caracteriza um imaginário contemporâneo no qual a desconsideração da verdade é naturalizada, estimulada, exaltada, como um valor ou uma virtude.

Ainda é preciso avançar na compreensão do fenômeno da desinformação e dos fenômenos a ela associados. E, além de diagnosticar o problema, é preciso também desenvolver estratégias de intervenção e de combate aos seus efeitos perversos. Diversas ações já vêm sendo apontadas por pesquisadores de várias áreas: a promoção de competência crítica em informação ou literacia digital, a criação de mecanismos de certificação da veracidade e qualidade da informação, a construção de mecanismos de responsabilização por crimes cometidos por meio de informação falsa, o aumento da visibilidade e circulação dos serviços de checagem, e a mobilização de estratégias para o esclarecimento quanto às bolhas e para sua “perfuração”. A efetiva implementação de tais ações é fundamental, sobretudo, para a manutenção de determinados valores construídos nos últimos séculos, tais como a democracia, a inclusão, a defesa da diversidade e a promoção de uma cultura da paz.