Desmonte

20 de julho de 2011

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(Artigo originalmente publicado na edição 92, 03/2008)
 
Realizou-se, em Brasília, no mês de janeiro, o primeiro ato do cerimonial da “morte anunciada” do transporte interestadual de passageiros. O desenlace foi decretado pelo presidente Fernando Henrique através do Decreto no 2.521/98, cujo art. 98 prescreveu que todas as permissões desse setor passavam a ser improrrogáveis e teriam seu termo em 7 de outubro de 2008. O presidente Itamar Franco, anteriormente (autorizado pela regra do art. 175, parágrafo único, inciso I, da Constituição, por meio do Decreto no 952, de 7/10/93, art. 94), mantivera as permissões interestaduais e internacionais pelo prazo de quinze anos prorrogáveis por mais quinze, podendo as permissionárias que prestassem serviços de boa qualidade prorrogar a permissão até 7 de outubro de 2023. Mais de 300 contratos foram firmados com essa regra.

Um dos pilares do Estado Democrático de Direito reside na segurança jurídica. O Decreto do presidente Itamar Franco ampliou direitos das permissionárias e gerou justificada confiança na legitimidade do seu ato. O rompimento da palavra estatal, por outro chefe do Executivo, oscila entre a violação da boa-fé e uma espécie de estelionato administrativo.

A licitação geral, consequência do Decreto henriquino, é de inconveniência e inoportunidade óbvias, mas está acontecendo no governo Lula como uma espécie de coisa julgada política. O primeiro ato do desmonte do sistema interestadual e internacional de ônibus, com reflexos em cascata pelo resto do país, já foi praticado. Tudo está encaminhado para o réquiem do maior e mais barato sistema de transporte coletivo rodoviário do mundo, que, se ocorrer, ficará na História do país como um ato fronteiriço entre a insanidade política e a insensatez econômica.

Acredito que o presidente da República não está informado do papel que lhe caberá nessa operação licitatória que pretende desmontar todo o atual sistema (14.000 ônibus; 2.700 linhas de serviços) para permitir o ingresso de empresas sem qualificação técnica que venham a ofertar maior desconto sobre a tarifa e, em razão disso, operar um sistema de baixa qualidade e segurança. Na área social, o desmonte do sistema atual provocará milhares de avisos prévios, sem garantia de reemprego, angústias de muitas famílias e desprestígio do governo federal.

O presidente, que tem diploma honoris causa de bom senso, poderá, porém, com um leve deslizar da caneta do poder, revogar o art. 98 do Decreto no 2.121/98 e repristinar o anterior de Itamar Franco, honrando a palavra estatal por esta manifestada. Foi essa a proposta que fizemos à audiência pública e, agora, renovamos publicamente. As permissionárias, em nome de setenta mil trabalhadores e milhões de usuários (140 milhões de deslocamentos anuais), agradecerão ao presidente por evitar que ocorra a “morte anunciada” de sua atividade, impedindo, simultaneamente, que sobre seu governo, mas por ordem de um governo anterior, recaia a responsabilidade da maior operação de deseconomia de escala provocada por uma intervenção pública no país.

Darci Norte Rebelo
Consultor Jurídico da FETERGS
Membro do Colégio de Advogados da NTU