Despejo e consignação de chaves extrajudicial: O Projeto de Lei nº 3.999 de 2020
5 de agosto de 2024
Arnon Velmovitsky Presidente da Comissão de Direito Imobiliário do Instituto dos Advogados Brasileiros
Há décadas, o Poder Judiciário brasileiro vem enfrentando os desafios do elevado número de demandas em trânsito nos tribunais de todo o país. A elevada taxa de judicialização de conflitos, associada aos custos da manutenção da estrutura judiciária têm se mostrado um entrave à garantia da prestação jurisdicional célere e efetiva.
O Brasil é um dos países com maior número de processos por habitante no planeta. Segundo o Relatório Justiça em Números 2023, apenas no último ano, o número de casos novos distribuídos na primeira instância foi de 14,68 processos para cada cem habitantes, enquanto o número de casos solucionados na primeira instância, por cem habitantes, foi de 11,89 processos neste mesmo período. Na Europa, os mesmos indicadores são de 3,57 e 3,26, respectivamente.
Nesse sentido, conforme asseverou o Ministro Luis Felipe Salomão, na II Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios para a evolução do direito, “a comunidade jurídica tem diante de si o desafio de compatibilizar as técnicas de desjudicialização e o uso da tecnologia, de um lado com as garantias fundamentais como o contraditório e a ampla defesa, de outro.”
Não foi por outro motivo, ainda, que o Conselho Nacional de Justiça definiu a “Meta 9”, cuja missão é integrar a Agenda 2030 da ONU ao Poder Judiciário, mediante ações de prevenção e desjudicialização de litígios voltadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030.
Assim, já é possível observar várias iniciativas legislativas bem-sucedidas na promoção da prevenção e da desjudicialização de litígios, as quais impactam positivamente no volume de demandas levadas ao Poder Judiciário, como a Lei de Alienação Fiduciária de Bens Imóveis (Lei no 9.514 de 1997), com sua previsão de leilão extrajudicial do bem; a lei que alterou o antigo Código de Processo Civil, permitindo a realização de inventário, partilha, separação e divorcio extrajudicial; e a lei que instituiu o usucapião extrajudicial.
Por outro lado, embora louváveis as iniciativas do Poder Legislativo no sentido de permitir a resolução administrativa/extrajudicial de demandas que podem e devem ser tratadas fora de juízo, destaca-se que a atuação do advogado é imprescindível a fim de garantir a ausência de prejuízo aos jurisdicionados.
Dessa forma, tendo em vista que o ordenamento jurídico brasileiro já concebe, constatado o inadimplemento do devedor fiduciante após a tramitação de um processo extrajudicial com diversas fases, a consolidação da propriedade em prol do credor fiduciário, por que não cogitar a existência do despejo extrajudicial?
A Lei do Inquilinato (Lei no 8.245 de 1991), redigida pelos mestres Sylvio Capanema de Souza, Geraldo Beire Simões e Pedro Antônio Barbosa Cantizano, pacificou o mercado de locações e trouxe soluções processuais que somente após muitos anos vieram a ser implementadas pelo Código de Processo Civil.
Contudo, as ações que versam sobre o Direito Imobiliário ainda representam 21% do total de demandas em curso no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Nessa linha, em recente pesquisa realizada pelo SECOVI-RJ, foi apurado que 95% dos imóveis pertencem a proprietários que são pessoas físicas detentoras de um único imóvel. Ou seja, depreende-se que não há, até o momento, interesse de fundos e grandes grupos financeiros de investirem na aquisição de imóveis para locação.
Diante de tal cenário, passou-se a cogitar a possibilidade de cumulação de despejo com a cobrança de encargos locatícios inadimplidos, analogamente ao que prevê o artigo 62, I, da Lei do Inquilinato, na via extrajudicial. Afinal, a única ferramenta ao dispor do locatário para evitar a rescisão do contrato de locação é a purgação integral da mora. Nesse sentido, a constatação do cumprimento ou não dessa obrigação, após o término do prazo assinado, é ato simples que não apresenta grau de complexidade suficiente a ensejar a atuação obrigatória do Poder Judiciário.
Logo, uma vez concebida a ação de despejo por falta de pagamento como um processo de baixa complexidade, verifica-se que, assim como no caso da alienação fiduciária, este é um litígio que pode e deve tramitar administrativamente, através de cartório, cabendo ao oficial certificar a ocorrência dos fatos relevantes do procedimento.
As vantagens advindas da desjudicialização desse tipo de demanda beneficiam especialmente o locatário, na medida em que, com a segurança jurídica de uma desocupação mais célere, com prazo médio estimado de seis meses, mais proprietários estarão dispostos a alugar os seus imóveis.
Em outra vertente, com a diminuição do prazo de desocupação do imóvel, o custo de contratação de seguro fiança e outras garantias ofertadas pelo mercado irão sofrer um decréscimo considerável, desonerando o locatário de pagamento de elevados valores para a sua contratação.
Além disso, o custo do despejo extrajudicial será muito menor do que o aforamento da ação de despejo por falta de pagamento, podendo redundar na desocupação voluntária, sem maiores despesas para os envolvidos.
Ocorrendo a necessidade de aforamento da ação, a melhor opção será a cumulação de pedidos – despejo e cobrança – para contemplar, após o despejo, a fase de cobrança dos valores devidos.
Por essas razões, redigi uma minuta inicial, que serviu de ponto de partida para a redação do Projeto de Lei que contempla o despejo extrajudicial, com as valorosas contribuições do Professor Carlos Gabriel Feijó, o qual convidei para participar desta empreitada.
Após quase um ano de discussões, chegou-se ao texto de Projeto de Lei que foi apresentado ao Deputado Federal Hugo Leal e, após inúmeras reuniões com a assessoria legislativa e com o próprio deputado, foi gerado o Projeto de Lei no 3.999 de 2020, o qual também contemplou a hipótese de consignação extrajudicial das chaves, conquista que atende à demanda de diversos locatários, que poderão consignar chaves em cartório de ofício, sem a necessidade de aforamento de ação judicial, proposta do deputado, que também é advogado.
Destaca-se, neste ponto, que a preocupação, sempre presente, de todos aqueles que participaram dessa empreitada, foi produzir um Projeto de Lei que encurtasse o prazo de tramitação do processo de resolução do contrato de locação, fornecendo ao jurisdicionado uma resposta ágil, sem, no entanto, comprometer os direitos dos envolvidos, especialmente a ampla defesa e o contraditório.
Em seguida, o Projeto de Lei no 3.999 de 2020 foi apreciado pela Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, tendo como relator o Deputado Federal Celso Russomano, que apresentou substitutivo aprovado pela Comissão, no qual foram inclusas mudanças com o objetivo de desburocratizar o projeto, sem perder as suas principais características: desjudicialização; celeridade; ciência do locatário; possibilidade de desocupação voluntária e de purgação da mora; assistência obrigatória de advogado; e bilateralidade.
Após a aprovação pela Comissão de Defesa do Consumidor, o Projeto de Lei no 3.999 de 2020 foi recepcionado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados no dia 10 de junho de 2024, após a publicação em avulso do parecer da Comissão de Defesa do Consumidor no dia 1o de junho de 2024, no Diário da Câmara dos Deputados (DCD) de 11 de junho de 2024, onde atualmente está em tramitação.
Não obstante a pendência de aprovação do projeto, ao consultar a enquete do Projeto de Lei no 3.999 de 2020 da Câmara dos Deputados, verifica-se que 82% dos parlamentares concordaram totalmente com o projeto e 7% concordaram com a maior parte de sua redação, o que denota uma plena satisfação com a proposta apresentada, de forma que o futuro se mostra promissor com a possibilidade de aprovação desse Projeto de Lei, que contribuirá para a prevenção e desjudicialização de litígios na área imobiliária em todo o território nacional.
Notas
1 CNJ. Justiça em Números 2023. Disponível em: https://cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/justica-em-numeros-2023-010923.pdf.
2 TRF2 – Agencia CNJ de notícias. Com 84 milhões de processos em tramitação, Judiciário com produtividade crescente. Disponível em: https://www10.trf2.jus.br/portal/cnj-com-84-milhoes-de-processos-em-tramitacao-judiciario-trabalha-com-produtividade-crescente/.
3 Sítio do STJ. Ministro Salomão avalia importância da II Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios para a evolução do direito. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/27052021-Ministro-Salomao-avalia-importancia-da-II-Jornada-Prevencao-e-Solucao-Extrajudicial-de-Litigios-para-a-evolucao.aspx.
4 Portal da Câmara dos Deputados. PL 3.999/2020. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2258980.
5 Portal da Câmara dos Deputados. Enquete do PL 3.999/2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/enquetes/2258980/resultados.
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