Edição 258
“Dever de revelação” do árbitro e seus impedimentos
4 de fevereiro de 2022
Francisco Cláudio de Almeida Santos Ministro aposentado do STJ
“…Não houvesse o duty of disclosure, a arbitragem estaria fadada ao insucesso. Ao fracasso. Ela não sobreviveria; sequer existiria”, Pedro Batista Martins
Muito se tem lido ou ouvido críticas às iniciativas de advogados e a acolhida nos tribunais quanto à propositura de ações a visar à invalidação de sentenças arbitrais, por supostas ou mesmo autênticas circunstâncias a denotar dependência ou parcialidade de árbitros em relação às partes, tudo por descumprimento do denominado “dever de revelação”, princípio de ordem pública consagrado na doutrina internacional e na doutrina brasileira, em relação à arbitragem, às vezes tratado com certo descuido.
Na verdade, a atuação de colegas que simplesmente provocam o Judiciário para, sem motivação, retardar o cumprimento de uma sentença arbitral não é nada louvável, porém, em vista da nobre e importante missão do árbitro, cuidados devem ser adotados por pessoas que aceitam a incumbência de julgar, principalmente, advogados que são conhecedores da lei, quanto à importância do dever de o árbitro declarar qualquer fato que, aos olhos das partes, “denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”, ou confessar seu impedimento para firmar o “contrato de árbitro”, conforme dispõe o art. 14 (em seu caput e § 1º) da Lei nº 9.307/1996, que está a completar 25 anos.
Antes de prosseguir, deve-se registrar o reconhecimento do Poder Judiciário brasileiro, tanto do Supremo Tribunal Federal quanto, em especial, do Superior Tribunal de Justiça, da plena e eficaz constitucionalidade da jurisdição arbitral, decorrente da vontade das partes no âmbito do Direito Privado, como forma heterocompositiva de solução de conflitos.
A figura mais importante na arbitragem, como instituição pela qual pessoas capazes de contratar, públicas ou privadas, naturais ou jurídicas, valem-se dela para resolver controvérsias relativas a direitos patrimoniais disponíveis, é um terceiro (ou terceiros) não interessado, independente e imparcial, pessoa natural, escolhido livremente, e remunerado por aquelas, denominado árbitro, pessoa que deve reunir além dos requisitos já citados, as seguintes qualidades: competência, diligência e discrição (art. 13, § 6º da lei citada).
O árbitro é, realmente, figura de destaque na arbitragem, porém, em contrapartida, tem deveres e obrigações tanto quanto outra figura relevante e semelhante, na jurisdição estatal, o “juiz de direito”, que é uma autoridade, expressão da soberania estatal, agente do Estado dotado de poderes coercitivos nos termos da lei, escolhido por sorteio para compor litígios em razão da matéria ou de determinada localização geográfica, também imparcial e independente por formação, bem assim por força do cargo que ocupa.
O árbitro tem função análoga a de um juiz: compor litígios, ou seja, dar solução às divergências entre as partes, como ensina um renomado especialista português Manuel Pereira Barrocas[1]. A expressão que figura na lei brasileira (art. 18), de que “o árbitro é juiz de fato e de direito”[2] não significa, entretanto, entre ambos, árbitro e juiz de direito, uma igualdade absoluta, pois, segundo observações do autor citado, “o juiz administra justiça em nome do povo”, enquanto o árbitro o faz “em nome das partes”; aquele administra justiça pública, este justiça privada lícita; o poder do juiz tem fonte na soberania do Estado, o poder do árbitro decorre da vontade das partes; e, finalmente, o juiz integra a organização estatal, o árbitro não, razão pela qual precisa do apoio do Estado para que suas decisões sejam executadas, caso não cumpridas voluntariamente.
Uma identidade entre o árbitro e o juiz a ser ressaltada é a imunidade de ambos, tocante à errônea aplicação da lei ou à compreensão dos fatos, mas ambos são responsáveis, penal e civilmente, pela prática de atos ilícitos.
Princípio importante na arbitragem é a questão da “confiança das partes” no árbitro[3]. De ambas as partes – compreenda-se – porquanto o contrato de investidura dos árbitros não é um contrato exclusivo entre quem indica seu nome e o árbitro, mas um contrato deste com as partes, que esperam seu bom serviço na solução do litígio e, para tanto, o remuneram.
Assim, a confiança a que se refere a lei de arbitragem (art. 13) é um princípio, consoante lição da renomada jurista Judith Martins-Costa, autora que tem a confiança como princípio e ao dissertar sobre o contrato de investidura do árbitro, em sua notável obra sobre a “boa-fé”, deixa claro que o princípio da confiança é encontrado no Direito Público (irmanado à segurança jurídica) como também no Direito Privado (vinculado à boa-fé).
A complementar sua lição ensina a notável tratadista ao examinar as raízes das palavras boa-fé e confiança:
“Há evidente e intensa ligação entre boa-fé e confiança. Antes de mais, há uma comum raiz, a fides que está no núcleo de ambos. Essa ligação é por vezes de superposição, por outras de diferenciação: pelo primeiro viés (superposição), a boa-fé abrange a tutela das legítimas expectativas, sobrepondo-se ao princípio da confiança (bona fides – cum fides). No proteger as legítimas expectativas, cabe falar em uma confiança objetivada, que não se reduz ao estado de fato característico da boa-fé subjetiva, ou ‘boa-fé crença’, mas é pautada pelo que comumente acontece (id quod plerumque accidit) em certo setor ou situação de vida.” [4]
No mesmo sentido, é de relembrar-se a reflexão do advogado e mestre Arnoldo Wald que, a discorrer sobre o “princípio da confiança”, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, assim se expressou:
“A confiança contém, evidentemente, um elemento ético da maior relevância, podendo até afirmar-se que a recente jurisprudência incorporou ao Direito um valor que anteriormente era simplesmente moral e não jurídico”.[5]
Neste sentido, deve-se interpretar a menção à confiança contida no art. 13 da Lei de Arbitragem, como um princípio explícito na arbitragem, como princípio geral do direito que é, assim como a boa-fé.
Ante tais considerações, dessume-se que o “dever de revelação” é a primeira demonstração explícita de que as partes poderão ter, além do currículo do árbitro, de informações sobre suas atividades profissionais, suas produções científicas e comportamento social, capazes de evidenciar sua imparcialidade e independência para a missão atribuída, com absoluta “confiança”, “dever” a ser fielmente cumprido antes e durante toda a arbitragem.
Com relação às partes, no Direito brasileiro como no de muitos outros países há plena liberdade para o processo de escolha dos árbitros, inclusive, para a adoção de regras de um órgão arbitral institucional (câmaras, centros de arbitragem, públicos ou privados) ou entidade especializada, e, ainda, por delegação das partes. Sempre, porém, prevalecerá a vontade das partes para afastar dispositivo do regulamento do órgão ou entidade que limite a escolha do árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal da sua lista de árbitro.
No caso de impasse e de outros em que a parte se sinta prejudicada mercê do descumprimento do princípio da igualdade das partes (art. 21, § 2º da Lei de Arbitragem), tal como na arbitragem multipartes (quando em um dos polos da relação processual arbitral, ou em ambos, existe mais de uma parte e estas não chegam a um consenso sobre a escolha do árbitro), há um importante precedente da Corte de Cassação francesa em que aquele Tribunal anulou uma sentença arbitral e proclamou que, ante o impasse, a câmara que administra a arbitragem deverá escolher todos os árbitros.
No que tange aos árbitros, para o aperfeiçoamento do contrato de arbitragem (ou de investidura), a obrigação inicial é de um “dever de revelação” de qualquer fato que possa ao sentir das partes significar algo que comprometa sua imparcialidade ou sua independência, e, por tal razão, o dever de revelação ou duty of disclosure (no direito comparado) deve ser full disclosure, ou seja, o mais completo possível.
A propósito, a já citada jurista Judith Martins-Costa, na obra mencionada, também leciona:
“Plasmado de forma instrumental aos requisitos da imparcialidade e da independência, está o dever anexo (instrumental ao ‘bem julgar’) de escrupulosa revelação sobre todas as circunstâncias que possam arranhar o vínculo de independência e imparcialidade e prejudicar a relação de qualificada confiança que une os figurantes desse contrato.”
E mais acrescenta que “o dever de revelação não se confunde com a mera informação, pois supõe uma informação qualificada pela sua destinação: desvendar possíveis ou potenciais conflitos, permitindo as partes sindicar eventual conflito de interesses.”[6]
O “dever de revelação”, instrumento indispensável para a lisura e regularidade da arbitragem, está positivado, como antes mencionado, no § 1º do art. 14 da lei regente, que justifica sua exigência na norma a seguir transcrita:
“Art. 14. Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil.
- 1º. As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função quaisquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência.”
A lei brasileira, como muitas outras, teve, em parte, inspiração na Lei Modelo da Uncitral, na qual se encontra na primeira parte de seu art. 12º – Fundamentos de objeção – o seguinte:
“(1) Quando uma pessoa for indicada com vistas à sua eventual nomeação como árbitro, fará notar todas as circunstâncias que possam suscitar dúvidas fundamentadas sobre sua imparcialidade ou independência. A partir da data da sua nomeação e durante todo o procedimento arbitral, o árbitro fará notar sem demora às partes as referidas circunstâncias, a menos que já o tenha feito.
(2) Um árbitro só pode ser objetado se existirem circunstâncias que possam suscitar dúvidas fundamentadas sobre sua imparcialidade ou independência ou se não possuir as qualificações que as partes acordaram. Uma parte só pode objetar um árbitro nomeado por si, ou em cuja nomeação tiver participado, por um motivo de que tenha tido conhecimento apenas após essa nomeação.”[7]
E a quase totalidade das leis do direito comparado cuida da questão a estabelecer um vínculo entre o duty of disclosure e eventuais dúvidas quanto a imparcialidade ou independência do árbitro.
A lei brasileira foi mais explícita, pois dispôs sobre possíveis situações de “impedimentos” ou “suspeições” do árbitro, equiparáveis a “algumas das relações” que caracterizam os impedimentos do juiz estatal, conforme previsto no Código de Processo Civil (CPC).
No vigente CPC, tais causas de impedimentos ou suspeições dos juízes estão previstas nos artigos 144 e 145, mas os impedimentos dos árbitros não se restringem aos impedimentos dos magistrados, como entendeu a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.526.789/SP, relatora a eminente Ministra Nancy Andrighi, que assim se expressou em seu voto: “De acordo com o art. 13, § 6º, da Lei em questão, é dever que incumbe ao árbitro, no desempenho de suas funções, proceder com imparcialidade e independência.
Por esse motivo, optou-se por vedar que atuem como árbitros aqueles “que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes” (art. 14 da Lei de Arbitragem), aplicando-se a eles, na medida do possível, os mesmos deveres e responsabilidades previstos no Código de Processo Civil.
Ocorre, todavia, que, conquanto as hipóteses de impedimento e suspeição dos árbitros sejam as mesmas às que estão sujeitos os juízes, não se pode considerá-las como fazendo parte de um rol taxativo.
Isso porque a Lei nº 9.307/1996 erigiu a imparcialidade em postulado fundamental do procedimento arbitral, sendo certo que sua violação pode acarretar, em última instância, a invalidação integral da sentença proferida (artigos 21, § 3º, e 32, VIII, da Lei nº 9.307/1996). O alcance de seu conteúdo normativo, portanto, não pode ficar restrito, unicamente, às hipóteses de impedimento ou suspeição expressamente listadas nos artigos 134 e 135 do CPC/1973.” (negritamos).[8]
Tem razão a douta ministra no seu voto, acolhido unanimemente pela Turma, pois a lei não é exaustiva de todas as situações que impedem os juízes e, principalmente, a atuação de árbitros. E, além da douta observação da insigne magistrada, como a arbitragem é regida também por manifestações das partes no âmbito da autonomia privada, podem elas, diretamente, ou pela concordância com impedimentos criados nos regulamentos das instituições particulares que administram os procedimentos arbitrais, nas arbitragens institucionais (câmaras ou centros de arbitragens), criar outros impedimentos distintos dos que a lei registra.
Antes de exemplificar com alguns impedimentos instituídos pelas partes, por instituições e até por agências reguladoras, entre nós, sem ofensa às leis, é de lembrar-se que a Lei nº 13.140/2015 (Lei de Mediação) dispõe em seu art. 7º que o mediador não poderá atuar como árbitro em processos arbitrais pertinentes a conflito em que tenha atuado como mediador.
As partes, por outro lado, podem estabelecer que os árbitros sejam exclusivamente brasileiros, o que impede, ao contrário do que faculta a lei, a atuação de árbitros estrangeiros, ou ajustar que os mesmos sejam oriundos de países cujo direito é filiado ao sistema jurídico da civil law. Tais opções dependem apenas da vontade uniforme e expressa das partes.
Os regulamentos dos centros de arbitragens também podem estabelecer condições. É o caso do Regulamento da Câmara de Arbitragem do Mercado da Bovespa, de 20 de setembro de 2011, que, em seus artigos 3.2.1 e 3.4.1, dispõe, respectivamente, que, na hipótese de árbitro único, este deverá ter formação jurídica, o mesmo se exigindo do terceiro árbitro escolhido pelos árbitros indicados pelas partes que também deve ser eleito dentre os membros integrantes do corpo de árbitros da Câmara de Arbitragem, tanto quanto o árbitro único. Daí, nenhum expert em bolsa, economista, financista, poderá presidir um tribunal arbitral[9], somente bacharéis em Direito.
O Regulamento de Arbitragem de 2012, da CAM da CCBC, em seu art. 5.2, versa sobre várias hipóteses de impedimentos de árbitro, algumas meramente repetitivas das que constam na legislação, com o acréscimo do impedimento para ser árbitro da figura do conciliador antecedente, na mesma controvérsia, e, ainda, daquele que “(l) tenha interesse econômico relacionado com qualquer das partes ou seus advogados, salvo por expressa concordância das mesmas” (partes, obviamente).
Uma situação muito singular acontece no âmbito de um segmento da economia, forte, profundo e extensamente regulado, o setor de produção, distribuição e comercialização da energia elétrica. Neste setor, regulado com fundamento na Constituição de 1988 (art. 21, XII, b), a partir de 1995/1996, quando instituída a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), seguiu-se a previsão de criar-se um Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE), instituído, finalmente, através da Lei nº 10.433/2002, como pessoa jurídica de direito privado, e veio a ser regulado o setor de comercialização, mercado privado aberto que admitia duas formas de contratação, a dos contratos bilaterais[10] e o mercado de curto prazo, seguindo-se as leis nº 10.847 e nº 10.848, ambas de 2004, e o Decreto nº 5.163/2004, que criaram o que passou a ser chamado o novíssimo modelo do setor elétrico; na última lei, surgiu a Câmara de Comércio de Energia Elétrica (CCEE), sucessora da MAE, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada sob autorização do Poder Concedente e regulação e fiscalização pela Aneel, com a finalidade de viabilizar a comercialização de energia elétrica.
No § 5º do art. 4º da Lei nº 10.848/2004 encontra-se uma disposição que elege a arbitragem como meio de solução de controvérsias nos contratos de comercialização de energia elétrica, e de acordo com a Resolução nº 109/2004, da CCEE, foi instituído um modelo de Convenção Arbitral, obrigatório para os agentes (associados) da Câmara, no qual se encontra uma cláusula (nº 12) com vários impedimentos atribuídos às pessoas nomeadas árbitros, além daquelas hipóteses previstas na Lei de Arbitragem e de eventuais regulamentos da Câmara escolhida para administrar as arbitragens no âmbito da comercialização de energia elétrica. Os impedimentos estão elencados na Convenção Arbitral da CCEE, em 11 incisos contidos na cláusula citada, alguns muito óbvios porque mencionam pessoas ligadas diretamente às partes, tais como, sócios, empregados, familiares, conselheiros, e mais credores ou devedores de quaisquer agentes da CCEE, pessoas que tiverem qualquer interesse em que o resultado do conflito beneficie quaisquer das partes e/ou “outro agente” da CCEE, for credor ou devedor de uma das partes ou de controlador ou administrador das partes ou de qualquer agente da citada Câmara, ou for ex-contratado, ex-prestador de serviço em caráter permanente ou temporário ou ex-consultor, nos últimos dois anos, de quaisquer das partes no conflito, de “qualquer agente da CCEE” ou, ainda, da própria CCEE.
O rol de impedimentos é vasto e exaustivo, porquanto impede de ser árbitro qualquer pessoa com algum vínculo com as partes ou agentes da CCEE, ou com interesse efetivo ou potencial no resultado econômico da divergência, em favor de uma das partes ou de qualquer agente da Câmara de Comércio de Energia Elétrica.
Resulta este impedimento da natureza especial do contrato de compra e venda de energia elétrica, coisa móvel nos termos do disposto no atual Código Civil (art. 83), cuja natureza não permite a tradição, uma vez que a energia elétrica não é transportável, mas fornecida através de linhas de transmissão que são operadas por concessionárias de serviço público, assim, segundo as regulações do setor, as operações realizadas no âmbito da CCEE são contabilizadas e liquidadas de forma multilateral em determinados períodos, quando um agente em posição credora recebe seu crédito de todos os devedores do mercado e não de um agente devedor específico, em contrapartida a um agente devedor que efetua o pagamento a todos os credores e não especificamente a um ou outro agente credor; por outro lado, apesar do mercado de energia elétrica a curto prazo ser conhecido por mercado spot, a liquidação das operações não é feita pela cotação da mercadoria em certa data, a exemplo do mercado spot das bolsas de valores, mas por um preço denominado de “preço da liquidação das diferenças” (PLD) que é um preço administrado pelas autoridades do setor (Operador Nacional do Sistema/ ONS e CCEE), com base em programas de computadores alimentados pelos seus gestores), capaz de causar grandes surpresas e prejuízos aos comercializadores.
Em consequência, a lista de impedimentos neste setor é imensa e variada. E como os agentes da CCEE são milhares em todo Brasil é muito difícil ou impossível saber quem com eles tem alguma relação que não o impeça de ser árbitro, se não indicado – declarado o fato – pelo próprio.
Por último, sem esgotar outras possibilidades de regramento de impedimentos de árbitros extralegais, é oportuno uma observação na arbitragem conhecida como de investimento. Segundo as regras de arbitragem do Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos (ICSID), que é o braço de arbitragem do Banco Mundial, a maioria dos árbitros deve ser nacional de Estados que não sejam o Estado contratante, parte na controvérsia, nem do Estado de origem do investidor-parte, salvo acordo expresso entre as partes. Assim, os árbitros indicados para compor o painel arbitral, necessariamente, devem declarar fielmente sua nacionalidade ou dupla nacionalidade, sob pena de, em caso de omissão ou falsidade de algum, o fato acarretar a nulidade da sentença arbitral, além de causar prejuízo às partes, indenizável (questão que não será tratada neste artigo).
Se a sentença arbitral emanou de quem não podia ser árbitro (art. 32, II da Lei de Arbitragem brasileira), ela é nula, daí a grande importância do dever de revelação.
O dever de declaração, princípio da arbitragem previsto na quase unanimidade das legislações[11] e regulamentos arbitrais do mundo é, sem dúvida, ato dos mais importantes para garantia do sucesso do procedimento arbitral. Trata-se de um dever legal, de um princípio, de um “seguro”, que nas palavras de Ricardo Dalmaso Marques: “… consiste em um dos atos mais significantes do processo arbitral, pois, se exercido de forma adequada e mediante razoável reflexão, mostra-se decisivo para certificar a validade da constituição daquele árbitro e de todo o tribunal arbitral”.[12]
Sem a menor dúvida, o dever de declaração é matéria de ordem pública, posto que, como ensina o já citado Ricardo Dalmaso Marques: (o)“direito a um julgamento válido, imparcial e justo é inerente à ideia de jurisdição, que é exercida tanto pelo juiz quanto pelo árbitro, ainda que em contextos e funções diversas.”[13]
Em conclusão, a falta do cumprimento daquela obrigação legal viola o princípio da ordem pública, como, aliás, entendeu o Superior Tribunal de Justiça, ao recusar o reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira, em face de omissão de árbitro que não revelou seu impedimento, por vínculo econômico/ profissional com uma das partes, como consta em trecho da ementa do acórdão assim redigido: “Ofende a ordem pública nacional a sentença arbitral emanada de árbitro que tenha, com as partes ou com o litígio, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes (artigos 14 e 32, II, da Lei nº 9.307/1996). (Acórdão do Órgão Especial do Superior Tribunal de Justiça na SEC nº 9412, Relator Ministro João Otávio Noronha).
Daí a suma relevância do “dever de revelação” na arbitragem.
Notas_____________________________
[1] “Manual de Arbitragem”. Edições Almedina, Coimbra, 2010, pág. 265.
[2] Tal expressão constava no art. 1.041 do Código Civil de 1916 e no CPC de 1973.
[3] Dispõe a lei de regência em seu art. 13: “Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes.”
[4] “A Boa-fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação”, São Paulo: Marcial Pons, 2015, pág. 239.
[5] “A contribuição do Superior Tribunal de Justiça na consolidação do principio da confiança”, artigo publicado em Doutrina do STJ – Edição Comemorativa – 15 anos, edição do STJ, 2005, págs. 31/48.
[6] Ob. cit., pág. 340.
[7] Tradução não oficial de equipe do CBar – Comitê Brasileiro de Arbitragem, atualizada.
[8] Os artigos citados são os do CPC revogado, porém a lição é válida para as disposições legais vigentes.
[9] Várias câmaras brasileiras continham disposição semelhante quanto à exigência de o presidente do tribunal integrar o seu respectivo quadro de árbitros, mas tal restrição foi retirada após a reforma da lei de arbitragem de 2015 (Lei nº 13.129) que introduziu uma modificação no § 4º do art. 13 da lei básica, a fim de permitir que as partes poderão afastar a aplicação do regulamento do órgão arbitral, submetido, porém, o nome do árbitro presidente aos órgãos competentes da instituição.
[10] Denominação criticada por Luiz Gastão Paes de Barros Leães (“denominação equívoca e pouco técnica”), em parecer sobre “a comercialização da energia elétrica no mercado atacadista de energia elétrica”, pub. na Revista dos Tribunais, vol. 792, outubro de 2001, São Paulo, RT, págs. 157/169.
[11] O autor conhece apenas um país que, em sua legislação, não contém menção expressa sobre o duty of disclosure, talvez por ser evidente para os italianos o velho brocardo latino: nemo judex in causa sua esse potest (v. artigo de Silvia Maroni, intitulado “Indipendenza, neutralità, terzietà e imparzialitá dell’arbitrato”, na ob. col. aos cuidados de Giovanni Iudica, 2ª. ed., Torino, 2012).
[12] O Dever de Revelação do Árbitro, Lisboa: Almedina, 2018, pág. 107.
[13] Ob. cit., pág. 109.