Edição 251
Dez anos de respeito à cidadania das famílias homoafetivas
5 de julho de 2021
Paulo Iotti Diretor-Presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero
Nos dias 4 e 5 de maio de 2011, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união entre pessoas do mesmo gênero como família, segundo as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva (ADPF 132 e ADI 4277). Meses depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o direito ao casamento civil homoafetivo por fundamentos semelhantes, em 20 e 25 de outubro (REsp 1.183.378/RS). Na mesma linha do STF sobre a união estável, afirmou que a Constituição protege todas as famílias, não só a heteroafetiva, e complementou dizendo que as normas legais que falam do casamento civil como a união entre o homem e a mulher não podem ser interpretadas como uma “proibição implícita” ao casamento civil homoafetivo, sob pena de violação dos princípios constitucionais da igualdade, não-discriminação, liberdade e dignidade humana. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que os Cartórios de Registro Civil do País realizem casamentos homoafetivos tanto por conversão de prévia união estável quanto de forma direta (Res. 175/2013).
O STF explicou que a Constituição não proíbe as uniões homoafetivas e que não se pode fazer uma interpretação constitucional homofóbica, no sentido de discriminatória às famílias homoafetivas. Assim, reconheceu que o fato da Constituição proteger expressamente a união estável entre o homem e a mulher não significa negativa de proteção das uniões civis ou estáveis entre pessoas do mesmo gênero, na lição do Ministro Gilmar Mendes. Afinal, embora a Constituição não fale das uniões homoafetivas, também não as proíbe, o que gera a chamada lacuna, passível de ser colmatada por interpretação extensiva ou analogia, como sempre defendi em doutrina e afirmei em sustentação oral no julgamento. A lógica foi a da proibição da discriminação por orientação sexual no Direito das Famílias.
Por isso, entendeu o STF que a interpretação sistemática da proibição constitucional de quaisquer formas de discriminação (art. 3º, IV) com a norma constitucional sobre a união estável (art. 226, §3º) demanda pelo reconhecimento da união homoafetiva como união estável constitucionalmente protegida. E se essa é a correta interpretação da Constituição, entendeu como cabível interpretação conforme a Constituição do art. 1.723 do Código Civil para impor interpretação que não exclua de seu âmbito de proteção as famílias homoafetivas. Afinal, tendo a Constituição afirmado que a família é a base da sociedade (art. 226), isso se aplica a qualquer família, e não só a algumas espécies de famílias, consoante lição clássica de Paulo Lôbo, como também entenderam o STF e o STJ.
Pelo mesmo raciocínio, em 2019, também por unanimidade, o STF reiterou o entendimento, afirmando que lei do Distrito Federal (DF) que estabelece o “estatuto da família” e a definiu como a união entre homem e mulher merece interpretação conforme a Constituição, para que a referência à proteção às famílias heteroafetivas não afaste o dever de proteção das homoafetivas. Já em 2020, declarou inconstitucional a suspensão da regulamentação de lei do DF que proíbe a discriminação por orientação sexual, refutando o argumento de que a suspensão visava proteger as famílias ao dizer que, ao contrário, referida lei ajuda na proteção das famílias, relativamente às famílias homoafetivas (ADI 5740 e ADI 5744, a primeira movida por mim, em nome do PSOL).
Tais decisões têm uma importância que muitas pessoas não percebem intuitivamente. Antes, se uma das pessoas integrantes do casal homoafetivo ficasse internada em hospital, a outra não poderia sequer visitá-la e muito menos tomar decisões sobre seu tratamento, por não ser considerada “família”. Em caso de morte, não teria direito a herança, que iria para a “família de sangue” (ou ao “Estado”, se não houvesse descendentes, ascendentes ou colaterais até o 4º grau), com inúmeros casos de expulsões da casa em que viveu por anos com o(a) companheiro(a) homoafetivo(a) por famílias que desprezaram o(a) falecido(a) durante sua vida, por sua não-heterossexualidade. Nada disso ocorre com um casal heteroafetivo por ser reconhecido como família conjugal, na forma da união estável ou do casamento civil. Tentava-se contornar isso por uma cara e complexa estratégia de procurações e contratos, em que um(a) outorgava ao(à) outro(a) a condição de procurador(a), curador(a), etc., mas além disso não garantir todos os direitos do Direito das Famílias, não há “igualdade” se ela precisa ser garantida por uma cara estratégia jurídica, quando para casais heteroafetivos isso não é necessário. Causa-me angústia, enquanto homem gay, lembrar desse contexto anterior à decisão do STF de 2011, por tal drama social.
Felizmente, embora as bancadas fundamentalistas e reacionárias do Congresso Nacional muito bradem, não criaram lei(s) visando a discriminação das famílias homoafetivas. Mas, se lei ou medida provisória o fizer, tudo indica que o STF isto derrubará, como os casos do DF o provam. Bem como o indicam decisões do STF já no contexto da eleição do atual presidente, como quando proibiu a invasão de universidades para censura ideológica durantes as eleições de 2018 (ADPF 548), ano no qual já havia garantido o direito de pessoas trans mudarem nome e sexo no registro civil independente de cirurgias, laudos e ação judicial (ADI 4275 e RE 670.422/RS); reconheceu a homotransfobia como crime de racismo, em 2019 (ADO 26 e MI 4733), e, em 2020; garantiu o direito à doação de sangue igualitária a homens que fazem sexo com outros homens (ADI 5543) e afirmou a inconstitucionalidade de leis municipais e uma estadual que proibiam o debate de gênero nas escolas (ADPF 457, 526, 460, 461, 465, 467 e 600 e ADI 5537, 5580 e 6038)
Não aprecio diálogos que veem o STF como Tribunal puramente “político”, que fazem previsões de suas decisões futuras não a partir de sua jurisprudência concreta e os fundamentos concretos pelos quais decidiu tais questões, mas por puros achismos políticos. Seja como for, o Tribunal tem garantido os direitos das minorias sexuais e de gênero LGBTI+ mesmo no contexto do atual Governo Federal, notoriamente opositor de nossa plena cidadania, em contexto político em que isso causa tensões entre o STF e o Governo Federal. Ou seja, no que tange à proteção de minorias e grupos vulneráveis contra discriminações diversas, a jurisprudência do STF tem sido maravilhosamente protetiva, emancipatória e impecável, donde quem o critica por outras decisões tem a obrigação de elogiá-lo quando ele acerta, como neste tema.
É preciso parar com esse fetiche de demonização do STF por alguma espécie de “conjunto da obra”. É direito de todas e todos criticar instituições democráticas (como o STF) e quem as integra, desde que não por injúrias e discursos de ódio e não defenda o fechamento delas, situações obviamente inconstitucionais. É preciso elogiar decisões acertadas e criticar decisões erradas. Pessoas racionais e de boa-fé podem legitimamente discordar sobre o que merece elogio e o que merece crítica, apenas digo há tempos que as exigências de racionalidade (que difere de “racionalização”) e de boa-fé já afastam uma série de terraplanismos argumentativos e negacionismos em geral.
Importante citar que o Movimento LGBTI+ nunca abandonou a luta política, pela importância em termos de segurança jurídica de termos nossos direitos garantidos por lei e, se o caso, emenda constitucional, já que tentamos aprovar a não-discriminação por orientação sexual na Constituinte e, no Congresso, uniões civis (com distintos nomes), a união estável, a doação de sangue, o casamento civil igualitário, uma lei de identidade de gênero e a homotransfobia como crime de racismo, havendo ainda a proposta de Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero idealizado por Maria Berenice Dias, que ajudei a escrever, junto a outras pessoas (PLS 134/2018). De qualquer forma, é um bálsamo sabermos que o STF está firme na garantia da proteção das minorias sexuais e de gênero LGBTI+ contra quaisquer formas de discriminação, garantindo-nos igual respeito e consideração relativamente a pessoas heterossexuais e cisgêneras. Lembre-se que democracia não permite a tirania da maioria, como pacífico na teoria constitucional, sendo que as decisões do STF são democráticas porque garantiram às pessoas LGBTI+ os direitos e as proteções básicas constitucionalmente afirmadas como de titularidade de todas e todos.
Em suma, a decisão sobre as uniões homoafetivas foi um marco importantíssimo na cidadania sexual e de gênero da população LGBTI+, pois embora tenha tratado apenas do tema do Direito das Famílias entre casais do mesmo gênero (não porque o STF quis, pois era o objeto das ações às quais estava vinculado), a unanimidade do Tribunal e sua enfática proibição de quaisquer formas de discriminação por orientação sexual abriu caminho para os julgamentos seguintes, sobre não-discriminação nas Forças Armadas, em 2015 (ADPF 291) e as citadas decisões sobre identidade de gênero de pessoas trans, homotransfobia como crime de racismo, doação de sangue igualitária e educação inclusiva, não-discriminatória, nas escolas.