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Diálogo judicial Brasil X Estados Unidos

30 de junho de 2011

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A quantidade de recursos cabíveis ao Supremo Tribunal   Federal (STF) – a mais alta instância do Poder Judiciário no Brasil – causou surpresa a magistrados americanos. O mecanismo de acesso ao tribunal guardião da Constituição Brasileira foi a tônica da apresentação do presidente da Corte, o ministro Cezar Peluso, durante o Diálogo Judicial Brasil e Estados Unidos, realizado entre 11 e 13 de maio, no Congresso Americano, em Washington D.C. (EUA).
Realizado pela primeira vez em 1998, e repetido este ano, o Diálogo Judicial Brasil x Estados Unidos contou com a participação de personalidades do Judiciário brasileiro. Além de Peluso, também estiveram presentes os ex-presidentes do Supremo, ministros Ellen Gracie e Gilmar Mendes, e o ministro Ricardo Lewandowski, que acumula a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Também participaram do evento o secretário-geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Fernando Marcondes; a conselheira do CNJ, Morgana Richa; o diretor da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, Joaquim Falcão; o presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Manoel Alberto Rebêlo dos Santos; além da desembargadora Norma Suely Fonseca Quintes e do desembargador Luiz Felipe Francisco, representando o Judiciário fluminense, além dos advogados Max Fontes e Marcus Fontes, presidente e vice-presidente da Harvard Law School Association of Brazil, entidade que tem contribuído para aproximar o Poder Judiciário brasileiro da comunidade jurídica norte-americana. Do lado americano, o destaque ficou por conta de Clifford Wallace, veterano juiz da Corte de Apelação dos EUA.
Os temas discutidos no encontro focaram a organização judicial, as formas de procedimento, a seleção judicial e seu treinamento, as eventuais reformas de procedimentos e as alternativas de solução de conflitos. Um dos objetivos do evento foi discutir a busca por mecanismos para desestimular o uso de recursos judiciais protelatórios da execução das sentenças.
No evento, o presidente do STF defendeu o desestímulo aos recursos como resposta à grande demanda da sociedade brasileira. Nesse sentido, Peluso destacou a sua Proposta de Emenda Constitucional – a PEC dos Recursos – que tem como objetivo permitir a execução de sentenças com decisão de segunda instância. Ele afirmou que a ideia não é acabar com a possibilidade de recursos ao STF, mas impedir que o Supremo examine causas já transitadas em julgado. De acordo com ele, a grande maioria dos recursos extraordinários que chega à Corte não resulta em reforma das decisões de segunda instância. “Menos de 1% dos casos têm as sentenças modificadas”, disse Peluso.
O tema do devido processo legal foi debatido com ênfase pelo professor Joaquim Falcão, da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas. O professor explicou aos juízes e juristas norte-americanos que atualmente existem no Brasil pelo menos 37 formas de se recorrer ao STF no Brasil, dado que surpreendeu os juristas americanos. Falcão ressaltou que o excesso de recursos faz parte da tradição do direito brasileiro.
No entanto, o professor defendeu mudanças nessa cultura. “Será que o excesso de recursos utilizados pelo governo federal não está em nome do devido processo legal indo contra os objetivos do devido processo legal?”, indagou Falcão, destacando que dados recentes publicados pela FGV, no relatório Supremo em Números. Essa pesquisa demonstra que 90% dos processos que chegam ao STF são recursos apresentados pelo Poder Público e que a União Federal é a principal usuária do sistema recursal brasileiro.

Direitos fundamentais
O papel das cortes supremas em relação aos direitos fundamentais e à democracia também foi um ponto abordado no evento. A juíza norte-americana Diane Wood destacou as diferenças entre as constituições do Brasil e dos Estados Unidos em relação principalmente aos direitos individuais.
A magistrada destacou que a Constituição norte-americana é bem mais sucinta que a brasileira, o que faz com que a Suprema Corte Americana não tenha que se envolver em questões tão detalhadas quanto o direito individual dos cidadãos. Ela lembrou que os direitos fundamentais são coletivos e não devem se prender a questões individuais.
Peluso, por sua vez, destacou que o STF continua tendo papel importante na consolidação da democracia após a promulgação da Constituinte de 1988. Já o ex-presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, destacou a legitimidade, a transparência e a segurança jurídica das decisões proferidas pela mais alta Corte do Brasil, afirmando que essas conquistas somente foram alcançadas devido à diversidade de instrumentos processuais destinados à fiscalização da constitucionalidade dos atos do poder público e à proteção dos direitos fundamentais no Brasil. “Ao contrário do que ocorre em diversos sistemas de justiça constitucional, nos quais as ações de inconstitucionalidade são julgadas em audiências privadas, as sessões de julgamento no STF são plenamente públicas. Os debates são transmitidos ao vivo pela TV Justiça e pela Rádio Justiça, ambos com alcance em todo o território nacional”, informou o ministro.
A ministra Ellen Gracie manifestou posição semelhante, ao defender a criação da TV e da Rádio Justiça, pela Justiça brasileira. “No Brasil temos que trilhar esse caminho, pois nossas decisões ainda são muito herméticas”, destacou a ministra. Ela, no entanto, reconheceu a necessidade de que as decisões do STF e do Judiciário de um modo geral sejam mais claras para que o público as entenda.
A transmissão das sessões foi ponto de controvérsia, por parte dos americanos. Após ouvir a experiência brasileira, o jurista Jeffrey Minear foi categórico ao declarar que transparência tem limite. Na Suprema Corte norte-americana, as decisões são tomadas em sala fechada, o que permite que os juízes falem francamente um com outro. Ele explicou que a transparência vem no produto final. “Depois que os juízes passam dias redigindo as decisões para que o público entenda, tudo é divulgado”, afirmou.

Eleições
Os avanços no campo da Justiça Eleitoral foi outro ponto destacado no evento. O presidente do TSE, ministro Ricardo Lewandowski, ressaltou as conquistas da legislação eleitoral brasileira, que possui características únicas e peculiares se comparadas ao sistema norte-americano. O ministro também comentou o recente acordo firmado entre o Brasil e os EUA, por ocasião da visita do presidente Barack Obama ao País, e que possibilitará a troca de experiência brasileira em relação ao voto eletrônico para a América.
O sistema e a legislação eleitoral brasileiros foram elogiados pelo professor Keith Rosenn, jurista norte-americano que debateu o tema com o ministro Lewandowski. Ele afirmou que “nos Estados Unidos não existe um sistema uniforme de legislação que se compare com o Código Eleitoral no Brasil. Eu parabenizo o Brasil pela forma como a Justiça Eleitoral vem funcionando, o que, como disse o ministro Lewandowski, é básico para preservar a democracia”.
Rosenn ainda o trabalho dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que também atuam no Tribunal Superior eleitoral (TSE). “Não sei como eles conseguem. Trabalham muito no STF com uma carga elevada de processos e, ainda, atuam como juízes eleitorais administrando uma área geográfica enorme e com mais de 120 milhões de eleitores”, comentou o professor americano.

Combate à corrupção
A corrupção no processo eleitoral, assim como no sistema de um modo geral, no entanto, foi duramente criticada pelo jurista americano. A ministra Ellen Gracie afirmou que, nessa área, o uso da tecnologia e, especialmente, os avanços na legislação têm ajudado o Brasil a obter bons resultados, sobretudo no campo criminal. “No Brasil, por longo período, a persecução criminal de personagens do mundo político, em especial parlamentares, foi eficientemente impossibilitada. Não que houvesse na lei alguma regra de imunidade absoluta, como “the King can do no wrong”, mas porque a atuação do Poder Judiciário ficava na dependência de expressa autorização da Casa Legislativa a que pertencesse o acusado”, afirmou.
O quadro, de acordo com ela, passou a sofrer mudanças, sobretudo após a Constituição de 1988. “Desde 1988, tivemos avanços importantes no combate à corrupção, como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Improbidade Administrativa, que têm levado à cassação de mandatos e outras punições. E, mais recentemente, a Lei da Ficha Limpa”, explicou a ministra Ellen Gracie, informando que, embora o STF tenha considerado que a lei da Ficha Limpa não poderia ser usada no processo eleitoral de 2010, esta não fora declarada inconstitucional.
O juiz norte-americano, Peter Messite, destacou que nos Estados Unidos o nível de corrupção também é elevado. “Concorremos diretamente com o Brasil em termos de corrupção”, afirmou. Na avaliação dele, a grande diferença entre os dois países está na forma do tratamento legal dado aos casos. Messite salientou que nos Estados Unidos não há previsão de foro especial para políticos, como no Brasil. “Não temos o conceito de foro privilegiado. Quando temos um político corrupto ele vai a julgamento em júri normal, na Justiça comum. No Brasil, quando alguém é pego, todo mundo faz e, normalmente, a coisa ‘acaba em pizza’, como vocês dizem”, ponderou o juiz.

Troca de experiências
O Diálogo Judicial Brasil x Estados Unidos teve início na noite do dia 11 de maio, com um jantar na Embaixada do Brasil oferecido pelo Embaixador Mauro Vieira, ao qual esteve presente o presidente da Suprema Corte, Chief Justice John Roberts, que discursou ressaltando a importância do encontro entre os dois países. O evento possibilitou verdadeira oportunidade para a troca de experiências entre magistrados e juristas brasileiros e norte-americanos.
Nos dois dias seguintes, o evento tece continuidade com seis painéis, de cerca de uma hora e meia cada um, realizados no Plenário da Law Library of Congress, com a apresentação de um expositor de cada país, seguidos de comentários e de debates entre os magistrados e juristas convidados.