A diferença entre Revelia e Efeitos da Revelia no Processo Civil Brasileiro

26 de fevereiro de 2014

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Os operadores do direito devem ser, antes de tudo, intérpretes da lei. E isso significa da lei no sentido geral, ou seja, de todo o sistema jurídico que alcança a lei, a jurisprudência e a doutrina a serem aplicadas ao fato jurídico. Ora, a lei não existe sozinha, sem o fato jurídico para lhe dar vida. O fato jurídico é o componente humano que dá vida à lei. Sem ele a lei tornar-se “letra morta” sem nenhuma utilidade. É como o corpo sem a alma: não há vida, não há razão de ser. Isso por que no direito é como na vida, tudo está interligado. Em sendo assim, para aplicarmos corretamente as leis temos que ter uma compreensão do sistema como um todo. E esse exercício de adequação do fato jurídico à lei, conhecido como subsunção, nada mais é do que a interpretação da “letra da lei” para aplicá-la ao caso concreto, dando-lhe vida. E essa tarefa de interpretação da lei faz parte da essência do ofício do advogado. E isso significa narrar os fatos, mostrar o direito e provar ambos, demonstrando, assim, a subsunção, ou seja, o liame subjetivo e a correlação entre o fato ocorrido e a lei, a fim de efetivar o direito do cliente. E para que isso aconteça, cabe ao advogado, a tarefa não menos importante de se utilizar do instrumento processual adequado, ou seja, do tipo de processo e procedimento corretos para o caso específico, que deverá escolher dentre vários regidos pela lei processual (civil, penal ou trabalhista) a depender do direito a ser aplicado. Sem isso não há direito que se concretize por melhor e mais explícito que seja. E isso é tarefa privativa do advogado que tem o conhecimento técnico jurídico preciso que o torna capaz (capacidade postulatória) para ajuizar a ação adequada e, assim, representar seu cliente diante da Justiça, efetivando o direito pleiteado. Enfim, sem o trabalho técnico do advogado não há direito efetivo.

E para efetivar o direito do cliente precisamos do processo. O processo não é nada mais do que o instrumento de efetivação do direito em si. Se errarmos no processo, perdemos o direito. E isso é tão sério que já existe jurisprudência que condena os advogados por “perda de uma chance”. Isso significa que, em casos de culpa ou negligencia do causídico, ou seja, quando o cliente perde a única e última chance de teria para conseguir a realização de seu direito por culpa de seu advogado, este  será responsabilizado, civilmente, por desídia no seu ofício.  Afinal, o processo não é tão somente uma pilha de papel. O processo é a vida do cliente. É a vida das partes nele envolvidas. E como tal ele merece o nosso maior respeito, zelo e total dedicação, pois, ele é o meio adequado (processo) para se atingir um fim (o direito).

Quando se julga um fato jurídico temos duas frentes a observar: a matéria fática (os fatos em si) e a matéria de direito (a lei a ser aplicada). Mas se essas frentes do fato jurídico estão interligadas, como saber distinguir uma da outra?  Até que ponto a matéria fática influencia a matéria de direito ou vice-versa? Seria possível julgar somente uma das duas? Como? Em que circunstâncias isso pode ocorrer?

A regra é a analise das duas frentes em conjunto, ou seja, a subsunção é justamente a aplicação da lei aos fatos no caso concreto. Mas, quando que os fatos não interferem na lei a ser aplicada? Em outras palavras: quando será julgada somente a matéria de direito?

A matéria de direito é apreciada isoladamente quando se tratar de direitos indisponíveis, quando os fatos já foram provados por documentos ou quando não há outras provas a serem produzidas. Em outras palavras, há direitos que são comprovados somente por documentos que a lei exige (direitos indisponíveis) e, assim, independem de provas dos fatos, basta juntar os documentos que a lei determina para comprovar o direito. Por isso se tornam matéria de direito, ou se prova com documentos, ou não se prova.

É, por exemplo, o caso do direito de propriedade de bens imóveis, que, apesar de se tratar de direito disponível, se provam somente com o registro público. Se o sujeito não tiver o registro não adianta ele contar os fatos, ou seja, que comprou de fulano ou sicrano, no dia tal, na presença de beltrano, etc… Nada disso terá relevância se ele não apresentar o registro do imóvel. Por isso a questão é unicamente de direito, ou seja, ou se prova da forma prevista em lei ou não se prova. Ou seja, só se prova pelo e como a lei determina, independentemente do que tenha ocorrido. Por isso chamamos matéria de direito: ou seja, só importa é o que a lei diz. Os fatos sequer são avaliados se o sujeito não apresentar os documentos que comprovem o seu direito que é especificado na lei. Não sou eu que estou dizendo que a propriedade só se prova com o registro: é a lei, por isso, a matéria é unicamente de direito.

Por outro lado temos uma regra processual civil que diz que se os fatos não forem contestados no prazo legal ocorrerá revelia. E revelia nada mais é do que a falta de contestação. Mas, os efeitos da revelia só se apresentam em relação à matéria fática e nunca quanto à matéria de direito. Então, quer dizer que mesmo sem a contestação o réu ainda poderá ganhar a causa? Sim por que seu direito não se perde por que não contestou, se ele comprovar com documentos que é o proprietário, mesmo sendo revel, ele não perderá a ação. É isso mesmo? Sim. Mesmo havendo revelia a matéria de direito não é prejudicada. Pois, em caso de revelia, o que será considerado verdadeiro, em desfavor do réu, são os fatos contados pelo autor, e não a matéria de direito propriamente dita. Isso por que a matéria exclusivamente de direito independe dos fatos. Em outras palavras: quando a matéria é unicamente de direito, pouco importa os fatos. Em sendo assim, mesmo que o réu perca o prazo da contestação, ou seja, se torne revel, ele não perderá seu direito se o provar com os documentos exigidos pela lei. Basta que junte os documentos que comprovam seu direito de propriedade mesmo que extemporaneamente. Ademais, se o autor não juntou os documentos essenciais que comprovem o seu direito, ele perderá a causa de qualquer maneira, mesmo o réu sendo revel, pois, nesse caso o juiz não poderá julgar contra os documentos apresentados.  

Imagine, por exemplo, que o autor entrou com o pedido de adjudicação compulsória, mas não comprovou o pagamento do imóvel com recibos. Neste caso, mesmo o réu sendo revel, o autor não ganhará a causa, simplesmente porque, alegou ser dono do imóvel e não comprovou o pagamento. E pagamento se prova com recibo. Enfim, em se tratando de matéria unicamente de direito ganha quem apresentar os documentos essenciais para provar o seu direito, independentemente da revelia ou de seus efeitos. Simples assim.

Mas, então, quando ocorrem os efeitos da revelia? Os efeitos da revelia só ocorrem quanto à matéria de fato. Por exemplo: suponhamos que o sujeito perdeu a vaga no concurso que tenha sido aprovado por que não entregou os documentos solicitados dentro do prazo estipulado no edital. O fato é que ele perdeu por que chegou atrasado e não conseguiu entregar os documentos. Ele, inconformado, ajuíza uma ação querendo que os documentos sejam aceitos e ele seja aprovado no concurso. A matéria fática se resume ao fato dele não ter conseguido entregar os documentos no prazo legal. A matéria de direito é que para ele ser aprovado deverá ser titular dos documentos solicitados no edital. Ele na inicial demonstra que não teve culpa e não entregou os documentos por motivo de força maior, mas que ainda pode entregar por que não teve culpa da não entrega. A parte ré não contesta a ação e, assim, ocorrem os efeitos da revelia. Ou seja, ele comprova o motivo de força maior que o impediu de entregar os documentos no prazo do edital e, com a revelia do réu, esses fatos se tornam verdadeiros. Assim, então, comprovado os fatos, por falta de contestação, a ação deverá ser julgada procedente. Ele ganha por que provou os fatos, ou seja, provou que não entregou os documentos por motivo de força maior e, portanto, não perdeu o seu direito de entregar os documentos e tomar posse no concurso.  

Essa a diferença entre matéria de fato e matéria unicamente de direito: quando a matéria é de fato e de direito, temos que comprovar ambos e se houver revelia perdemos a ação porque admitimos que os fatos narrados pelo autor são verdadeiros. Já na matéria unicamente de direito os fatos não têm muita importância e mesmo que não sejam contestados no prazo legal (revelia) o desfecho do processo vai depender da prova do direito e não dos fatos. Quem provar o direito ganha a ação. Portanto, nem sempre que houver revelia o autor ganhará a ação. Para chegarmos a essa conclusão basta interpretar as regras sobre a revelia e seus efeitos que estão nos artigos 319  e  seguintes do Código de Processo Civil[1]·.

Por outro lado, em se tratando de processo com mais de um réu, não ocorrerão os efeitos da revelia se um deles contestar a ação. E isso é porque na medida em que um réu contesta a ação, os fatos se tornam controversos, o que significa que não podem ser considerados verdadeiros sem que sejam feitas as provas necessárias. Não se podem considerar verdadeiros os fatos que foram contestados apenas por um dos réus, a não ser que na instrução probatória o autor consiga prová-los a seu favor. Mas, aí é uma questão de prova e não simplesmente de efeito da revelia, pois, nesse caso, eles não se operam. Portanto, nesse caso, ganhará a ação quem conseguir provar os fatos que embasam o seu direito. Assim, não se pode falar em efeitos da revelia quando somente um dos réus contestou o pedido do autor. Essa é a outra exceção sobre os efeitos da revelia que se encontra no art.320, inciso I, do CPC.

Enfim, apesar das normas processuais serem complexas,  elas não podem ser interpretadas, isoladamente, sem a conjugação das normas materiais e adjetivas. Caso isso ocorra caberá ao advogado consertar as injustiças cometidas bastando para isso que se utilize dos recursos cabíveis, disponíveis na Lei Adjetiva e que servem, justamente, para se corrigir possíveis erros cometidos na aplicação do direito ao caso concreto. Afinal, essa é a função essencial do advogado na administração da justiça: corrigir os erros que prejudiquem a aplicação do direito ao caso concreto.                              


[1]“Art. 319. Se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor.

Art. 320. A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente:

I – se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação;

II – se o litígio versar sobre direitos indisponíveis;

III – se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público, que a lei considere indispensável à prova do ato.”

Art. 321. Ainda que ocorra revelia, o autor não poderá alterar o pedido, ou a causa de pedir, nem demandar declaração incidente, salvo promovendo nova citação do réu, a quem será assegurado o direito de responder no prazo de 15 (quinze) dias.

Art. 322. Contra o revel que não tenha patrono nos autos, correrão os prazos independentemente de intimação, a partir da publicação de cada ato decisório.

Parágrafo único O revel poderá intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontrar.”