Direito comparado: Brasil e Itália debatem reformas constitucionais, Código Civil e inteligência artificial

29 de novembro de 2024

Da Redação

Ivanir Ireno Juiz Federal (TRF1)/ Diretor Jurídico da Ajufe

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A abertura do seminário foi feita pelos professores da Universidade de Florença Roberto Cordeiro Guerra e Stefano Dorigo, pelo vice-presidente do STJ, ministro Luis Felipe Salomão, pelo diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Florença, Alessandro Simoni, pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques e pelo editor-executivo da Revista JC, Tiago Santos Salles.

Seminário reuniu magistrados e especialistas do mundo jurídico ítalo-brasileiro para debater as reformas constitucionais brasileiras e italianas, a atualização do Código Civil brasileiro e os desafios da inteligência artificial

Debater as principais reformas constitucionais brasileiras e italianas, a atualização do Código Civil brasileiro e os desafios impostos pela inteligência artificial. Esse foi o objetivo da segunda edição do Seminário Internacional de Direito Comparado Brasil e Itália, realizado em Florença nos dias 21 e 22 de novembro, pela Revista Justiça & Cidadania. O evento reuniu magistrados de tribunais superiores dos dois países, além de renomados especialistas do mundo jurídico ítalo-brasileiro.

Na abertura do evento, a presidenta da Escola Superior da Magistratura Italiana e presidenta Emérita da Corte Constitucional Italiana, juíza Silvana Sciarra, destacou que a iniciativa do seminário fortalece a união e a compreensão mútua entre os dois países. “A Faculdade de Direito da Universidade de Florença tem um histórico muito forte de intercâmbio internacional e aplicação da legislação estrangeira. Essa colaboração com nossos colegas brasileiros é valiosa, pois se baseia em anos de trocas acadêmicas e profissionais”, afirmou.

O vice-presidente do STJ e diretor do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, ministro Luis Felipe Salomão, ressaltou a importância de seminários que promovam o debate sobre as atualizações legislativas e jurídicas em ambos os países, especialmente no campo do Direito Tributário. “Na área do Direito Tributário, tivemos avanço significativo com a Emenda Constitucional no 132/2023, que reestruturou o sistema tributário brasileiro, unificando mais de cinco tributos. Na Itália, também se observa movimento de modificação do sistema tributário integrado europeu”, explicou.

A juíza Margherita Cassano, da Corte Suprema de Cassação da Itália, destacou a relevância da troca de conhecimentos e chamou a atenção para a inteligência artificial como um dos principais desafios para o Poder Judiciário. “O uso de inteligência artificial no processo judicial exige reflexão profunda de todos os profissionais envolvidos, sejam advogados, professores universitários ou magistrados. Embora a IA possa ser uma ferramenta valiosa, especialmente no que diz respeito ao uso dos precedentes judiciais, o papel do juiz deve sempre ser central”, afirmou.

O diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Florença, Alessandro Simoni, destacou a “estreita colaboração” com o Brasil como uma das prioridades da universidade. “Os projetos de pesquisa em colaboração com colegas brasileiros têm sido prioridade para nós. A troca de experiências sobre o Direito Tributário e a legislação é sempre enriquecedora para ambas as partes. Sabemos que as reformas fiscais e o uso de tecnologia no processo judicial estão entre os principais desafios tanto no Brasil quanto na Itália.”

Professor da Universidade de Florença, Roberto Cordeiro Guerra, também abordou a importância da troca de ideias entre os dois países, especialmente no contexto das reformas fiscais e tributárias que Brasil e Itália estão vivenciando. “O Brasil está passando por profunda reforma tributária, e a Itália segue caminho similar. Esta troca de experiências será muito proveitosa, especialmente com relação ao uso da inteligência artificial no sistema tributário. Acredito que o trabalho conjunto entre nossos países pode gerar resultados muito positivos.”

O diretor-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), ministro Benedito Gonçalves, também participou do encontro por videoconferência e ressaltou que o seminário “simboliza a busca constante pelo aperfeiçoamento do Judiciário brasileiro e o compromisso com a justiça que dialoga com as melhores práticas internacionais”. 

Reforma Tributária e Direito Constitucional – Mediado pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, o primeiro painel do dia discutiu a influência da Emenda Constitucional
no 132/2023 na tributação sobre o consumo e a tributação nos estados-membros da União Europeia. Campbell focou a apresentação no histórico do sistema tributário brasileiro e na comparação entre os impostos sobre o consumo existentes.

“A redução promovida pela Reforma Tributária de cinco para dois impostos é modesta, levando-se em consideração o grande avanço da União Europeia, mas, para o sistema brasileiro, é uma mudança extraordinária”, ressaltou Campbell.

Especialista em Direito Constitucional e professor da Universidade de Gênova, Enrico Albanesi abordou a redação legislativa em reformas tributárias. Segundo Albanesi, à luz da experiência do Reino Unido com o Office of Parliamentary Counsel, o melhor caminho é garantir que as disposições legais de legislação tributária não sejam redigidas exclusivamente por especialistas em Direito Tributário. Ele enfatizou que o objetivo é criar leis eficientes e acessíveis aos cidadãos, sem desconsiderar o contexto histórico e político.

“A tarefa de elaborar legislação mais clara e eficiente exige trabalho cuidadoso e colaborativo. A legislação deve ser o resultado de processo deliberativo que envolva diferentes pontos de vista e leve em consideração não apenas a especialização técnica, mas também aspectos democráticos e sociais. A participação de especialistas em diversas áreas é fundamental para garantir que o produto final atenda às necessidades de toda a sociedade”, concluiu Albanesi.

Coordenador acadêmico do seminário e professor da Uerj, Marcus Lívio Gomes falou sobre as principais alterações trazidas pela EC 132/2023: “estamos saindo de 27 regulamentos de ICMS e cinco mil regulamentos de ISS para uma legislação única. Essa é a grande transformação trazida pela emenda, no que se refere à simplicidade e à transparência.”

Segundo Lívio, outras duas grandes mudanças são a tributação no destino e o direito amplo ao crédito, princípios também adotados no Imposto sobre Valor Agregado (IVA) da União Europeia. A introdução do modelo de split payment foi questionada por Lívio. “A questão do fluxo de caixa foi muito criticada na Itália, e hoje a União Europeia tem uma experiência piloto com a Polônia, que não teve feed­back positivo.”

Lívio também discutiu os desafios que a Reforma Tributária trará para o Poder Judiciário brasileiro: “o que não é tributação sobre bens, é tributação sobre serviços. Ou seja, o escopo da norma aumentou. Tudo será tributado. Além dos bens, todos os serviços residuais. A emenda constitucional também trouxe a tributação de direitos, o que será extremamente desafiador, pois conceitos de direito privado terão que ser reinterpretados. Toda a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do STJ, em tese, será reinterpretada à luz desses novos princípios.”

Doutorando em Processo Civil da Uerj, o advogado Lauro Seixas lembrou que a simplificação do sistema tributário é desafio já enfrentado pela União Europeia. Para Seixas, é importante que os estados brasileiros tenham flexibilidade para definir suas alíquotas. “A experiência europeia pode orientar o Brasil nessa transição para a unificação, mas isso não significa uniformização completa que impeça mudanças nos tributos, conforme as peculiaridades locais. O Brasil também deve permitir formas de flexibilidade, respeitando o pacto federativo e a autonomia dos estados”, defendeu.

Impostos seletivos e a proteção do meio ambiente – O segundo painel do dia, mediado pelo presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), desembargador Ricardo Cardozo, abordou os impostos seletivos e a extrafiscalidade ambiental. O juiz da Corte Suprema de Cassação da Itália, Andrea Salemme, discutiu as características dos “impostos socialmente orientados” presentes no ordenamento jurídico italiano e da União Europeia, com destaque para a taxação energética sobre produtos que geram danos ambientais (carbon tax e plastic tax) e o sugar tax.

Segundo Salemme, o imposto seletivo, tanto na Itália quanto na União Europeia, segue a lógica dos comuni aperti, modelo antigo em que a tributação ocorre no momento da venda, ou seja, quando os produtos saem da cadeia produtiva e entram na fase final da cadeia comercial. “Vale a pena notar que a caracte­rística desses impostos é que não há cobrança obrigatória explícita, sendo incorporados ao preço do bem. Se o imposto for cobrado de forma antecipada, o preço se forma ao longo dos vários estágios da cadeia, o que pode resultar em sua perda se o produto sofrer descontos, por exemplo. No entanto, quando o imposto incide no último estágio, a transferência para o consumidor é praticamente automática”, explicou Salemme.

Em seguida, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do STJ, abordou os incentivos econômicos e fiscais para a proteção do meio ambiente. Cueva defendeu a criação de mercado de crédito de carbono regulado no Brasil para garantir a credibilidade do país no mercado internacional. “Precisamos aproveitar efetivamente esse momento histórico de descarbonização e de evolução de política mundial de combate às mudanças climáticas para atrair investimentos”, afirmou.

Novos horizontes do Direito Empresarial – O Direito Empresarial também foi amplamente debatido no seminário. Presidido pelo mestre em Direito pela Uerj, Luis Felipe Salomão Filho, o debate focou na transformação que o Direito Empresarial tem passado nos últimos anos. Para ilustrar essa evolução, Salomão Filho citou as recentes mudanças legislativas no ambiente empresarial brasileiro, como a Lei de Liberdade Econômica, a Lei do Ambiente de Negócios e a Lei das SAFs. “Esses são apenas alguns exemplos para mostrar o quanto o legislador brasileiro tem se preocupado com o fomento ao negócio e com a atualização do arcabouço legal, tentando acompanhar as modificações que ocorrem mundo afora”, afirmou.

Flávio Galdino, professor da Uerj, também abordou as mudanças no Direito Empresarial brasileiro, com ênfase nas medidas introduzidas no anteprojeto de atualização do Código Civil, resultado do trabalho da comissão de juristas criada pelo Senado Federal e presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão. “Uma das atividades fundamentais da comissão foi incorporar a jurisprudência e as decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça. O objetivo era trazer segurança jurídica para as atividades empresariais, simplificar e desburocratizar o direito da empresa, além de dotar o sistema empresarial brasileiro de maior flexibilidade”, explicou Galdino.

O presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Alexandre Cordeiro, destacou que uma das missões da autarquia é preservar o ambiente concorrencial sem restringi-lo, garantindo segurança jurídica para as empresas brasileiras. “As alterações societárias e as decisões de controle são feitas de maneira privada, mas depois passam por processo público, com a necessidade de notificação prévia ao CADE. Todos esses eventos da vida empresarial precisam de aprovação do CADE”, afirmou.

O professor da Universidade de Florença, Niccolò Abriani, discutiu o impacto da inteligência artificial no Direito Societário e na governança corporativa das empresas. Segundo Abriani, as empresas devem monitorar as oportunidades e os riscos associados às inovações tecnológicas e aos modelos de negócios que envolvem novas tecnologias.

“Os riscos de governança estão relacionados a quem escolhe os scripts e seleciona os grandes dados dos sistemas de inteligência artificial — obviamente, a alta administração. Os diretores executivos das empresas são os responsáveis pela elaboração dos scripts. E o risco aqui é que o viés autoritário dos administradores, que não estão próximos da propriedade ou dos acionistas, seja complementado por viés tecnológico. Isso pode desencorajar ainda mais os membros da administração e até os conselhos independentes de fazerem perguntas, levantarem objeções, criticarem ou sinalizarem os riscos de uma determinada estratégia”, alertou Abriani.

O ministro do STJ João Otávio de Noronha também participou do painel e defendeu a importância de atualizar o livro de Direito Empresarial do Código Civil brasileiro, cuja redação data de 1975. “É por isso que foi criada uma comissão para atualizar, mas não para refazer o Código. É preciso analisar o impacto da transformação digital, regulamentando o smart contract e os contratos digitais. Também é fundamental ter atenção com a cibersegurança, a proteção de dados e o desenvolvimento das startups e fintechs”, afirmou o ministro.

Mudanças na legislação civil – O segundo dia do seminário foi aberto com painel sobre as mudanças na parte geral da legislação civil, responsabilidade civil, direitos fundamentais e de personalidade na era digital, mediado pelo vice-presidente do STJ, ministro Luis Felipe Salomão. Sara Landini, professora da Universidade de Florença, abordou o uso de ferramentas digitais por bancos e seguradoras para a clusterização de clientes

“A clusterização não é um mal absoluto, pois ajuda essas entidades a identificar melhor o mercado-alvo. Por outro lado, pode ser vista como ferramenta que viola os direitos das pessoas, como no caso da exclusão do mercado financeiro. Determinados indivíduos, que não se mostrem merecedores do ponto de vista creditício ou que sejam  particularmente expostos ao risco, podem ser excluídos do mercado bancário, financeiro ou de seguros”, afirmou Landini.

Em seguida, Rosa Nery, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, abordou as principais mudanças introduzidas no Código Civil pela comissão de juristas no Senado Federal, com ênfase nos direitos da personalidade na parte geral.

“Ao pensar em nosso Código Civil, na comissão, nós mantivemos essa estrutura dos direitos da personalidade exatamente como está no Código 2002, mas com ampliação. Não alteramos o texto, mas incorporamos temas que não haviam sido considerados na legislação de Miguel Reale. O que houve de acréscimos foram de temas relacionados com momentos emblemáticos da vida civil”, enfatizou Rosa.

O desembargador Humberto Dalla, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), contextualizou as mudanças do anteprojeto de atualização do Código Civil brasileiro, destacando o livro de Direito Digital, o conceito de patrimônio digital e a responsabilização das plataformas digitais. Ele apontou que o tema será abordado pelo STF em novembro, devido ao julgamento de três ações que tratam da regulação das redes sociais. “A questão da responsabilização das plataformas é tema do Supremo Tribunal Federal, ação relatada pelo ministro Toffoli. O julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet encerra essa questão.”

Direito Digital e inteligência artificial – O segundo painel do dia foi presidido pelo desembargador Agostinho Teixeira Filho do TJRJ, e pela conselheira Daniela Madeira do Conselho Nacional de Justiça e tratou do Direito Digital e da inteligência artificial. Segundo Daniela, é fundamental que os órgãos de direção do Poder Judiciário estimulem o uso da tecnologia, tendo em vista o alto volume de processos em tramitação na Justiça brasileira. “Assim surge a questão da governança do CNJ e dos tribunais, de dar direcionamento para que os juízes possam realmente utilizar a inteligência artificial de forma segura, onde haja principalmente transparência e privacidade dos dados, e que não haja viés discriminatório”.

O advogado Elias Mubarak chamou a atenção para a necessidade de regulamentação da inteligência artificial, com destaque para a legislação implementada na União Europeia que cria três níveis de risco do uso da ferramenta: mínimo, elevado e inaceitável.

“O marco da Inteligência Artificial no Brasil é de 2020. Ele foi aprovado na Câmara e está em tramitação no Senado, onde foi criada uma comissão de juristas, presidida pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que vem utilizando como base o princípio do regulamento da União Europeia. Uma das coisas interessantes do marco da IA é que o projeto de lei prevê o princípio da boa-fé para se discutir a responsabilização da pessoa em relação à inteligência artificial. Então, quando você tem risco alto na responsabilização, a culpa é objetiva. Quando você tem risco baixo, a culpa é presumida”, concluiu Mubarak.

Na sequência, Marco Rizzuti, professor da Universidade de Florença, disse que o principal desafio relacionado à inteligência artificial é o impacto que essa tecnologia gera nas relações profissionais e sociais. “A inteligência artificial traz novos desafios, mas também novas possibilidades. A ideia é pensar em como isso pode ser mediado, de modo que a inteligência artificial possa melhorar os resultados em áreas como a justiça, sem desrespeitar os direitos humanos”.

O ministro Afrânio Vilela do STJ também tratou sobre o uso da inteligência artificial no Poder Judiciário pela perspectiva da experiência do magistrado. Segundo ele, é importante observar os aspectos positivos e negativos da aplicação da tecnologia. “É necessário analisar a ética comportamental da máquina para que ela possa auxiliar efetivamente e examinar a inteligência artificial que substitui o julgador, na função de sensibilidade. Esse aspecto é diferente de uma automação a partir de um padrão, por exemplo”.

Impostos sobre consumos – O seminário também debateu as implicações da reforma tributária no Brasil e explorou os modelos tributários internacionais, com destaque para a experiência italiana. Abrindo os trabalhos do terceiro painel do dia, o desembargador Mauro Martins do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ressaltou a relevância da discussão sobre o tema e destacou que, até a recente reforma de 2023, o sistema tributário brasileiro era amplamente reconhecido como um dos mais complexos do mundo, com uma extensa gama de tributos em diferentes esferas, entre eles, o PIS, o Cofins e o IPI na federal, o ICMS nos estados e o ISS nos municípios. “A fragmentação tributária não apenas impactava a competitividade empresarial, mas também interferia diretamente nas decisões de negócios”, afirmou.

Martins também apontou avanços introduzidos pela reforma e pelo Projeto de Lei Complementar no 108/2024, que ainda está em tramitação no Congresso Nacional, e que visa simplificar o sistema tributário com a unificação de tributos por meio do IVA dual, composto pela CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e pelo IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). Segundo ele, o novo modelo busca neutralidade tributária e simplificação, reduzindo conflitos de competência e eliminando a cumulatividade restrita. Contudo, o desembargador alertou para os desafios práticos de implementação, especialmente no período de transição, e enfatizou a importância de aprender com experiências internacionais, como a italiana.

A juíza Elisabete Franco também do TJRJ trouxe reflexões sobre os impactos práticos da reforma tributária, mencionando as promessas de maior simplicidade e neutralidade fiscal. Segundo ela, a ampla base de incidência do IBS e da CBS é um dos aspectos centrais da reforma, abrangendo bens materiais, imateriais, serviços e direitos e isso visa alinhar o sistema tributário à nova economia, principalmente com o avanço das tecnologias. No entanto, a magistrada chamou a atenção para os desafios da regulamentação, especialmente em relação à aplicação prática e à operacionalização dos tributos. “A criação de tributos como o imposto seletivo, voltado para bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, é um avanço importante, mas apesar das promessas de simplificação, a reforma ainda precisa superar muitos desafios, incluindo a transição do sistema atual para o novo modelo. Acredito que este é um tema que continuará a gerar debates intensos, não apenas no meio jurídico, mas em toda a sociedade”, explicou.

Desafios jurídicos e administrativos – O desembargador federal Marcus Abraham abordou os desafios do novo modelo tributário brasileiro destacando o potencial aumento da litigiosidade tributária e a diferença do modelo adotado na Itália. “O Brasil adotou um IVA dual, diferentemente do modelo italiano, que tem um IVA único com alíquota geral. Nossa reforma buscou simplificar o sistema tributário e eliminar distorções, como a cumulatividade restrita, que gerava uma carga fiscal excessiva e desigualdade entre os agentes econômicos”, explicou Abraham.

Entre os avanços apontados, o desembargador citou o princípio da não cumulatividade plena, que eliminará restrições no crédito tributário e simplificará a vida das empresas, além da inclusão do princípio da proteção ao meio ambiente. “Essa medida deve se aplicar a todo o sistema, promovendo sustentabilidade e justiça fiscal”, disse Abraham. No entanto, ele chamou a atenção para lacunas na reforma, como a ausência de benefícios fiscais para saneamento básico, o que pode gerar custos adicionais em serviços essenciais. 

Abraham também enfatizou que a transição para o novo modelo ocorrerá em etapas, com regulamentações previstas para 2024 e 2025 e a implementação plena do novo sistema em 2033. “Esse período de adaptação é positivo, mas inevitavelmente exigirá que o Poder Judiciário se prepare para lidar com os conflitos decorrentes das mudanças”, afirmou.

Experiência italiana – O professor Francesco Farri, da Universidade de Gênova, trouxe reflexões aprofundadas sobre a experiência italiana com o IVA e as implicações do modelo para a reforma tributária brasileira. Ele ressaltou que, apesar de ser tributo amplamente utilizado na União Europeia desde 1972, o IVA ainda apresenta complexidades consideráveis. “A simplificação que o IVA oferece não é absoluta. Anualmente, enfrentamos dezenas ou centenas de questionamentos administrativos para compreender a aplicação em aspectos específicos”, explicou Farri.

Ele salientou que, apesar de ser um sistema unitário em termos de alíquota, o IVA inclui diferentes variantes, como operações não tributáveis, isentas e com regime de reverse charge. “Essas variantes criam complicações práticas, como problemas de fluxo de caixa e créditos acumulados, que requerem soluções específicas”, disse. Comparando o modelo italiano ao brasileiro, Farri apontou que o sistema dual de IVA do Brasil – composto pela CBS e pelo IBS – pode ampliar a complexidade, ao combinar dois tipos de tributos com estruturas distintas. “Se na Itália já enfrentamos desafios com cinco variantes do IVA, no Brasil, com um
sistema dual, a complexidade será ainda maior, potencialmente multiplicando os cenários tributários”, alertou.

Ao finalizar, o professor destacou a importância de continuar o diálogo entre os dois países, sugerindo que as soluções italianas poderiam inspirar abordagens para mitigar os desafios do sistema brasileiro. “A implementação do IVA no Brasil será um processo desafiador, mas também oportunidade de aprendizado e modernização do sistema tributário. Estamos à disposição para compartilhar a experiência italiana e buscar soluções conjuntas para os desafios que surgirem”, concluiu. 

Globalização de ideias – O professor Stefano Dorigo, do Departamento de Ciências Jurídicas e membro do conselho diretivo da Universidade de Florença, enfatizou que a troca de experiências entre Brasil e Itália na busca por soluções conjuntas para desafios jurídicos contemporâneos promove a “globalização das ideias”. “Estamos acostumados a falar de globalização em termos econômicos, mas essa é a globalização que queremos: a globalização das experiências, das normas e do diálogo jurídico. É uma oportunidade valiosa para enfrentar problemas comuns e buscar soluções conjuntas”, afirmou.

O diretor enfatizou que, apesar das diferenças geográficas e culturais, Brasil e Itália enfrentam desafios semelhantes, como a regulamentação da inteligência artificial e a simplificação de sistemas jurídicos complexos. “Muitas vezes, os problemas são os mesmos, e a troca de experiências nos permite adotar soluções semelhantes ou adaptadas às nossas realidades”, afirmou Dorigo.

Para simbolizar a amizade e o agradecimento pelo intercâmbio, o professor presenteou os representantes da comitiva brasileira com exemplares sobre a Escola de Magistratura Italiana e da cidade de Florença. “Essa troca de experiências é um serviço valioso não apenas para nossos compatriotas, mas para toda a comunidade global. Continuemos nesse diálogo”, concluiu Dorigo.

Durante o encerramento, o vice-presidente do STJ e diretor do Centro de Estudos Judiciários do CJF, ministro Luis Felipe Salomão, destacou a importância do evento como marco para a troca de experiências entre os dois países e como ferramenta de aprimoramento judicial, especialmente no campo do direito tributário e civil. “Foram dois dias intensos, repletos de trocas enriquecedoras, especialmente para nós juízes. Como destacado pelos professores, a formação de juízes bem-preparados é essencial para a qualidade da justiça e para a redução de litígios”, ressaltou.

Ciclo de Estudos Internacionais – O seminário em Florença faz parte do Ciclo de Estudos Internacionais de Direito Comparado da Revista Justiça & Cidadania e contou com o apoio da Universidade de Florença, da Escola Superior da Magistratura Italiana, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal e do Núcleo de Estudos em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Nefit). A coordenação acadêmica ficou a cargo do vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Luis Felipe Salomão, do professor da Universidade de Florença Stefano Dorigo, do professor da Universidade de Gênova Francesco Farri, do professor da Uerj Marcus Lívio Gomes, do editor-executivo da Revista Justiça & Cidadania, Tiago Salles, e da diretora de Redação, Erika Branco.

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