Direito de morrer dignamente*

25 de setembro de 2012

Compartilhe:

“Não é uma questão de morrer cedo ou tarde, mas de morrer bem ou mal. Morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente.” (Seneca, 4 a.C.)

  

INTRODUÇÃO

Recentemente os meios de comunicação brasileiros divulgaram uma importante resolução do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.[1] A partir dessa resolução, qualquer paciente poderá, enquanto lúcido, dispor sobre sua vontade quanto a ser submetido ou não a determinados tratamentos no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

Divulgado com o nome de testamento vital, esse tipo de direito já existe em diversos outros países, tais como Espanha, Holanda, Portugal, Argentina e Estados Unidos (onde existe desde 1970).[2] De fato, o testamento vital nada mais é do que a livre expressão da vontade de um paciente, seu direito legal amparado pelo código civil, em seu Artigo 15, Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica.[3] Oras, as diretivas antecipadas de vontade do paciente tratam exatamente dessa questão: submeter ou não o paciente a tratamentos ou intervenções com risco de vida? Quem deve decidir é o próprio paciente, pois ninguém pode ser constrangido a essa situação.

Talvez a grande controvérsia apareça, na prática, justamente no momento em que mais o paciente precisa ter sua vontade respeitada, que é quando ele perde a consciência. Quando um paciente hospitalizado perde a lucidez devido a sua patologia, e os responsáveis médicos avaliam sua situação como irreversível, exceto por talvez dez por cento de chance de sobrevida caso seja submetido a uma cirurgia dolorosa ou tratamentos invasivos, quem deve tomar a decisão de submeter ou não esse paciente a tais procedimentos? Antes do atual testamento vital eram os familiares que decidiam pelo paciente (e ainda continuará assim para aqueles que não constituírem documento legal expondo suas vontades), porém agora qualquer pessoa pode, antes de perder a lucidez, expor sua vontade e fazer valer seu direito quando não puder mais se expressar.

A Ortotanásia

Existem algumas definições importantes que se fazem necessárias, em vista de que, se não forem bem esclarecidas, podem levar a população leiga a cometer erros de julgamento, confundindo o direito legal de um paciente à ortotanásia com a prática ilegal da eutanásia, por exemplo. Dessa forma, temos que, segundo o Houaiss, ortotanásia é:

O termo utilizado para definir a morte natural, sem interferência da ciência, permitindo ao paciente morte digna, sem sofrimento, deixando a evolução e percurso da doença agirem naturalmente. Portanto, evitam-se métodos extraordinários de suporte de vida, como medicamentos e aparelhos, em pacientes irrecuperáveis e que já foram submetidos a suporte avançado de vida.[4]

Ainda de acordo com o Houaiss, temos a definição de distanásia, que é a “Persistência terapêutica em paciente irrecuperável, podendo ser considerada morte com sofrimento”.[5] A partir disso chegamos a seguinte questão: para realizar a escolha entre uma morte com sofrimento (distanásia), e uma morte natural (ortotanásia), quem seria melhor indicado do que o próprio paciente?

Algumas pessoas podem, erroneamente, confundir a ortotanásia com a eutanásia, e por isso cabe aqui também uma explanação para ressaltar a enorme diferença entre uma e outra. Enquanto a ortotanásia é um termo usado para designar uma morte natural, sem interferências, a eutanásia é a prática pela qual se abrevia a vida de um enfermo incurável, de maneira controlada e assistida por um especialista.[6] Assim, temos que, enquanto na eutanásia o paciente tem sua vida extinguida por um profissional capacitado (e não é uma prática legalizada no Brasil), na ortotanásia o que ocorre é o oposto: é a não interferência médica no estado do paciente, deixando-o morrer naturalmente, sem ser submetido a qualquer procedimento contrário ao exposto em seu testamento vital.

Legislação Pertinente

Mais de uma lei brasileira pode ser associada ao direito de morrer dignamente, e dentre elas destaca-se o art. 1º, III, da CF88, onde consta que a dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado Democrático de Direito.[8] Analisando por esse viés, pode-se relacionar essa legislação ao direito de morrer sem perder a dignidade, pois, se a dignidade da pessoa humana deve ser preservada, por que alguém, em fase terminal e sem chance de recuperação, deveria ser obrigado a sofrer até o último suspiro?

De forma semelhante, temos que, no art. 5º, III, da CF88, consta que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.[9] Associando a lei ao caso concreto, por que aceitar que um paciente sem chance de sobrevida seja submetido a tratamentos como a intubação, que fere o físico e ofende o psíquico?

Se, para fazer valer o direito de morrer com dignidade, não bastar a legislação de nossa lei maior, consta no art. 15  do Código Civil, que: “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de morte, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.[10] E também no art. 7º, III, da Lei Orgânica de Saúde, de nº 8.080/90, onde é reconhecida a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral.[11]

Não sendo suficiente toda essa proteção legal quanto ao direito de morrer dignamente, veja-se Lei dos Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde do Estado de São Paulo, de nº 10.241/99, que em seu art. 2º, XXIII, expressa que é direito do usuário recusar tratamento doloroso ou extraordinário para tentar prolongar sua vida.[12]

Quanto a esta última lei, fica o exemplo do ilustre ex-governador de São Paulo, Mário Covas, que em seu governo a sancionou, sabendo ser portador de uma forma de câncer com péssimo prognóstico. Mário Covas morreu no dia 6 de março de 2001, hospitalizado, recebendo apenas medicações para dor, tendo-se recusado a ir para a UTI em função de preferir morrer dignamente, ao lado de seus familiares e entes queridos. Sua vontade foi respeitada graças à lei que ele mesmo sancionara.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao buscar informações para a confecção deste artigo, além das fontes citadas, que escolhi por sua veracidade e confiabilidade, deparei-me com inúmeras outras, com tantas opiniões contrárias quanto a favor do testamento vital. Dentre as fontes que julguei como não confiáveis, o que mais chamou-me atenção foi a presença reiterada de juízo de valor sem real conhecimento de causa. Infindáveis opiniões contrárias respaldando-se na tese de que, ao criar a resolução sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes, o Conselho Federal de Medicina (CFM) estaria “abrindo espaço para matar pacientes”.

Em vista disso, faz-se necessário uma maior divulgação do que na verdade é a Resolução CFM nº  1.995/2012: apenas um documento legal que busca fortalecer um direito já existente do paciente, de escolher como quer ser tratado e se quer ser tratado. Essa resolução não permite aos profissionais de saúde abreviarem a vida de um paciente, nem confere qualquer espécie de direito excepcional ao médico. Pelo contrário, ela apenas faz prevalecer a vontade do paciente sobre seu tratamento.

Como profissional da área da saúde (sou técnico em enfermagem), já presenciei inúmeras intubações de pacientes terminais, massagens cardíacas e procedimentos invasivos diversos, que no fim apenas causaram sofrimento nos últimos instantes de vida desses pacientes. Isso fez com que eu chegasse a uma séria decisão: quando chegar a minha vez de morrer, deem-me analgésicos se eu estiver com dor, deem-me a chance de despedir-me dignamente de minha família, e depois deixem-me exercer meu direito de morrer naturalmente, sem alguém brutalmente tentando enfiar um tubo em minha garganta ou espetando agulhas com drogas em minhas veias.

________________________________________

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Código Civil brasileiro, redação de 06.12.2002, Art. 15.

Constituição Federal de 1988.

Dicionário Houaiss, 2º edição, 2004.

Lei dos Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde do Estado de São Paulo, de nº 10.241/99, art. 2º, XXIII.

Lei Orgânica 8.080/90.

Karl. Os Dez Anos da Lei Mário Covas. Disponível em: <http://scienceblogs.com.br/eccemedicus/2009/07/os_10_anos_da_lei_mario_covas/> Acesso em 09.09.12.

Resolução CFM nº 1.995/2012, publicada no D.O.U. de 31 de agosto de 2012, Seção I, p. 269-70.

Valcarenghi, Aline Leal. Testamento vital pode ser feito mesmo por pessoas saudáveis. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-02/testamento-vital-pode-ser-feito-mesmo-por-pessoas-saudaveis> Acesso em 09.09.12.

Wikipedia, busca por “eutanásia”. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Eutan%C3%A1sia> Acesso em 09.09.12.

 

NOTAS

* O presente artigo foi elaborado como instrumento de avaliação da disciplina de Direito Civil no curso de Direito da Faculdade de Direito de Santa Maria – FADISMA.

[1] Resolução CFM nº 1.995/2012, publicada no D.O.U. de 31 de agosto de 2012, Seção I, p. 269-70.

[2] Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-02/testamento-vital-pode-ser-feito-mesmo-por-pessoas-saudaveis> Acesso em 09.09.12.

[3] Código Civil brasileiro, redação de 06.12.2002, Art. 15.

[4] Dicionário Houaiss, 2º edição, 2004.

[5] Dicionário Houaiss, 2º edição, 2004.

[6] Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Eutan%C3%A1sia> Acesso em 09.09.12.

[7] Constituição Federal de 1988, artigo 1º, inciso III.

[8] Constituição Federal de 1988, artigo 5º, inciso III.

[9] Código Civil, art. 15.

[10] Lei Orgânica 8.080/90, art. 7º, III.

[11] Lei dos Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde do Estado de São Paulo, de nº 10.241/99, art. 2º, XXIII.