Edição

Direito Desportivo e Justiça Desportiva – Linhas gerais

31 de maio de 2010

Compartilhe:

A nossa trajetória na seara do Direito Desportivo, tanto no meio acadêmico quanto no dia a dia dos Tribunais desta Justiça especializada, nos motivou a tecer estas breves linhas, que têm por objetivo agregar, compilar e, principalmente, contribuir para a iniciação na introdução ao Estudo do Direito Desportivo. Não temos a pretensão de esgotar o tema, muito menos a ousadia de apresentar um tratado sobre o assunto, mas queremos, sim, realizar este artigo trazendo, em linhas gerais, um panorama legislativo e prático deste tão sedutor e inovador ramo do Direito.

O Direito Desportivo surgiu para atender a uma demanda da sociedade em disciplinar/organizar a prática desportiva através de normatização, e tem escopo precípuo de introduzir garantias de todas as espécies, desde a organização até a incolumidade de participantes e espectadores.

Nossa doutrina reconhece o Direito Desportivo como ramo autônomo do Direito, sem, logicamente, olvidar sua correlação com as outras divisões do Direito, seja em posição de subordinação (ex vi, Direito Constitucional) ou em caráter de coordenação com as demais disciplinas jurídicas, tais como: o Direito Civil, Processual Civil, Penal e Processual Penal.

Na lição de Álvaro Melo Filho, o Direito Desportivo “é o conjunto de técnicas, regras, instrumentos jurídicos sistematizados que tenham por fim disciplinar os comportamentos exigíveis na prática dos desportos em suas diversas modalidades”. (MELO FILHO, Álvaro. “Direito Desportivo Atual”. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1986, pág.12.)

O Direito Desportivo se mostra como uma realidade mundial. No Brasil não poderia ser diferente, afinal somos o “País do Futebol”, só do futebol não! Somos um País cuja imagem no cenário internacional está intimamente ligada à prática desportiva.

O arcabouço do Direito Desportivo pátrio data dos idos de 1941, com a criação do Conselho Nacional de Desportos – CND, que, segundo a previsão contida no artigo 1o do Decreto-Lei no 3.199/1941, tinha função de “orientar, fiscalizar e incentivar a prática dos desportos em todo o país”.

Como corolário, segundo o Desembargador Luiz Zveiter, o surgimento da Justiça Desportiva remonta à Portaria 24/1941 e à Resolução 4/1942, ambas do CND, que instituíram a criação de um “Tribunal de Penas destinado à aplicação de sanções disciplinares” (PERRY, Valed. Direito – Temas, Rio de Janeiro: Editora Destaque, 1981: Justiça Desportiva – Segunda Instância, in “Direito Desportivo”, pág. 213).

Mais adiante, o ilustre Procurador de Justiça do Ministério Público, Max Gomes de Paiva, elaborou o “Código Brasileiro de Futebol”, que como a alcunha já anuncia, se aplicava à modalidade de futebol. O codex passou a viger mediante a resolução no 48/1945 do CND.

A codificação introduziu significativa alteração na organização da Justiça Desportiva ao prever a criação, em substituição ao Tribunal de Penas, do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), com competência para julgamento de questões no âmbito das Confederações Brasileiras de Desportos, em todo o território Nacional; dos Tribunais de Justiça Desportiva (TJD), com competência na esfera estadual junto às Federações; e, Juntas Disciplinares Desportivas (JDD), na seara das ligas municipais. Vale consignar que o poder judicante do CND em grau recursal foi mantido.

Através da Deliberação no 3/1956 do CND, “(…) foi adotado o Código Brasileiro de Justiça e Disciplina Desportiva (CBJDD), o qual pouco depois ficou apenas para os esportes amadores, passando o futebol a adotar o Código Brasileiro de Futebol (CBF), conforme Deliberação no 7/56, do CND, a qual organizou de vez os Tribunais e suas normas processuais e penais” (PERRY, Valed. Direito – Temas, Rio de Janeiro: Editora Destaque, 1981: Justiça Desportiva – Segunda Instância, in “Direito Desportivo”, pág. 214,  autor: Luiz Zveiter).

Já em 1962, o CND aprovou a vigência do Código Brasileiro Disciplinar de Futebol (CBDF), dividido em duas partes, processual e penal, com aplicabilidade exclusiva para a modalidade de futebol, restando ao Código Brasileiro de Justiça e Disciplina Desportiva (CBJDD) as demais modalidades.

Ambas as codificações estenderam o leque de competência de julgamento pelos Tribunais de Justiça Desportiva, dando azo ao julgamento não só de infrações disciplinares, mas também dos litígios entre clubes, entidades e atletas em matéria cível (contratos, cobranças, cessões de direitos) e trabalhista (demandas laborais envolvendo atletas). A título exemplificativo, trazemos à colação o artigo 28 do CBDF, litteris:

Art. 28. Os órgãos da Justiça Desportiva, nos limites da jurisdição territorial de cada entidade, têm competência, observadas as disposições especiais deste Código, para processar e julgar as infrações disciplinares praticadas por pessoas físicas ou jurídicas direta ou indiretamente subordinadas à Confederação ou a serviço de qualquer entidade e para processar e julgar os litígios entre associações e seus atletas, entre entidades dirigentes e atleta, entre associações, entre entidades dirigentes e entre estas e associações.

Com a Carta da República de 1988, o desporto erigiu ao patamar Constitucional, sendo reconhecida a Justiça Desportiva como um de seus consectários através de disposição esculpida no seu artigo 217, parágrafo primeiro, que demanda a necessidade de esgotamento das instâncias da Justiça Desportiva, para que questões referentes à disciplina e  às competições desportivas possam ser enfrentadas pelo Poder Judiciário, verbis:

Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II – a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não-profissional;

IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1o – O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

Verifica-se que este dispositivo introduziu significativa mudança que sedimentou em definitivo a competência em relação à matéria afeta à Justiça Desportiva, no caso: disciplina e competição desportiva. Todas as demais questões retornaram ao crivo do Poder Judiciário.

Passado este pequeno intróito e restando delimitados os feixes de atribuição, acreditamos que uma questão possa ter vindo à mente do leitor: a Justiça Desportiva é ou não instância integrante do Poder Judiciário? Não tem “jurisdição”? Não tem competência? Mas mesmo com essas premissas, que poderiam levar a uma conclusão diversa, a resposta negativa se impõe.

Nossa mais renomada doutrina entende que a Justiça Desportiva não pode ser considerada instância judicial, muito menos administrativa, pois exerce, em geral, atividade no ramo privado (maiores detalhes serão dados a seguir ao falarmos de atribuição), devendo, pois, ser considerada como  meio alternativo de solução de conflitos. A respeito da questão, vale a leitura do aresto do Superior Tribunal de Justiça, verbis:

CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DESPORTIVA – NATUREZA JURÍDICA – INOCORRÊNCIA DE CONFLITO. 1. Tribunal de JUSTIÇA DESPORTIVA não se constitui em autoridade administrativa e muito menos judiciária, não se enquadrando a hipótese em estudo no art. 105, I, “g”, da CF/88. 2. Conflito não conhecido.” STJ no 000220441 – rel. Min. Waldemar Zveiter.

Mergulhando no mundo desta instância sui generis, é de suma importância trazer o teor da Lei nº 9.615/1998 — que instituiu normas gerais sobre o desporto (apelidada de Lei Pelé ou Lei Geral Sobre Desporto – LGSD) e possui capítulo específico regulamentando a Justiça Desportiva —, pois com base em seus preceitos podemos traçar um apanhado das linhas gerais da Justiça Desportiva Brasileira.

À guisa de introdução, para facilitar o entendimento da questio, cumpre-nos explicitar que a referida legislação sofreu diversas modificações, as principais através das Leis no 9.981/2000, 10.264/2001 e 10.672/2003. A LGSD se mostra bastante retalhada, o que dificulta seu entendimento em uma interpretação sistemática.

No artigo 50 da LGSD está previsto que a organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva, limitadas ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas, serão definidas em códigos desportivos, facultando-se às ligas constituir os próprios órgãos judicantes desportivos, com atuação restrita às suas competições.

As transgressões referentes à disciplina e às competições desportivas sujeitam o infrator a penas que vão de advertência à indenização e suspensão por partida ou prazo (artigo 50, §1o, da Lei no 9.615/1998).

A relação jurídica entre os atletas e entidades de prática desportiva, com os Tribunais de Justiça Desportiva é, em sua essência, contratual e exsurge dos pactos firmados entre os clubes e atletas com suas respectivas entidades de administração do desporto (v.g Confederações e Federações), que propiciam sua participação nas competições oficiais.

Não devemos deixar de mencionar, sem, no entanto, querer complicar, que os Tribunais de Justiça Desportiva possuem natureza privada, quando atrelados à entidade de administração do desporto com natureza de pessoa jurídica
de direito privado (art. 16 da LGSD), mas também podem ostentar natureza pública, quando ligados às competições promovidas pelo Poder Público.

A esta altura, o leitor com formação jurídica deve estar se indagando: temos uma Justiça, uma lei regulamentando sua organização, funcionamento e atribuições, até aqui sem maiores problemas, mas qual o meio normativo que viabiliza o julgamento das questões referentes à disciplina e à competição? Qual o código desportivo previsto no mencionado artigo 50 da LGSD?

A resposta não é tão simples, pois não presenciamos no Direito Desportivo uma codificação de direito material una como ocorre, por exemplo, no Direito Penal (excetuando-se as demais leis extravagantes).

Aprovado pelo Conselho Nacional de Esportes – CNE, através da Resolução no 1 de 23/12/2003, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD foi o primeiro código desportivo aprovado após a promulgação da CRFB de 1988, criado em atendimento ao previsto no artigo 42 da Lei no 10.671/2003, que introduziu a necessidade de o Código de Justiça Desportiva ser adaptado aos preceitos da LGSD.

Cabe-nos aqui fazer um breve parêntese, para explicitar que a edição do CBJD não se deu através de processo legislativo, em virtude da prerrogativa conferida ao CNE, pelo artigo 11, inciso VI da LGSD, que autoriza ao Conselho aprovar os Códigos da Justiça Desportiva e suas alterações.

O CBJD revogou os mencionados CBDF e CBJDD e se destina à organização, ao funcionamento, às atribuições da Justiça Desportiva brasileira e ao processo desportivo, bem como a previsão das infrações disciplinares desportivas e de suas respectivas sanções, no que se referem ao desporto de prática formal, regulam-se por lei e por este Código. (Artigo 1o com a Redação dada pela Resolução CNE no 29 de 2009).

Verifica-se, pois, que o CBJD abarca todas as entidades compreendidas pelo Sistema Nacional do Desporto, que congrega as pessoas físicas e jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos, encarregadas da coordenação, administração, normalização, apoio e prática do desporto, bem como as incumbidas da Justiça Desportiva e, especialmente: as entidades nacionais de administração do desporto; as entidades regionais de administração do desporto; as ligas regionais e nacionais; e as entidades de prática desportiva filiadas, ou não, a estas. Exclui-se da seara do CBJD, por previsão legal expressa, os Comitês Olímpico e Paraolímpico Brasileiros (Art. 51 da LGSD).

Além do CBJD, existem outros códigos desportivos, notadamente na esfera da Administração Pública, editados em virtude do permissivo contido no artigo 25 da LGSD, e vinculados, via de regra, às entidades que possuem personalidade jurídica de direito público, como o Código Nacional de Organização da Justiça e Disciplina Desportiva – CNOJDD, editado pelo Ministério do Esporte e responsável pela organização da Justiça Desportiva, do processo e medidas disciplinares relativas aos eventos esportivos sob a sua organização, coordenação e/ou supervisão.

Deixamos consignado que, por amor à didática, muitas polêmicas foram deixadas de lado, pois caso fossem mencio­nadas, certamente dariam “pano para as mangas” a uma obra literária abordando unicamente estes temas. Certo é que muitas destas questões foram esvaziadas e/ou solucionadas com a aprovação do “novo” CBJD (na verdade, reforma introduzida através da Resolução do CNE no 29 de 2009).

Despedimo-nos, lançando, para fim de reflexão, a mensagem de que “espetáculo” é o Desporto, e tudo o que de positivo está ligado a sua prática; nesta toada, o Direito Desportivo e sua Justiça especializada devem servir, unicamente, como meio, instrumento, de seu fomento.

Referências Bibliográficas _________________________
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988;
BRASIL, Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998;
MELO FILHO, Álvaro. “Direito Desportivo Atual”. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1986. pág.12;
PERRY, Valed. Direito – Temas, Rio de Janeiro: Editora Destaque, 1981: Justiça Desportiva – Segunda Instância, in “Direito Desportivo”, págs. 213/214.