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Direito, economia e corrupção

30 de abril de 2010

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O chamado Estado Liberal, paradigma constitucional surgido no século XVIII, teve como pedra angular o princípio da legalidade (SARAIVA, 1983:8-11). Era calcado na teoria dos três poderes de Montesquieu. Intentava coibir o arbítrio dos governantes e oferecer segurança jurídica aos governados. O Estado legalmente contido é denominado Estado de Direito.
Consolidada a Revolução Industrial, emergiram necessi­dades sociais expostas pelos sucessivos movimentos socia­listas. Demonstravam não bastar ao ser humano o atributo da liberdade; era preciso conferir a ele condições socioeconômicas dignificantes da pessoa humana.
Diante da crise econômica do primeiro pós-guerra, o Estado teve de assumir papel ativo. Premido pela sociedade, tornou-se agente econômico, instalou indústrias, ampliou serviços, gerou empregos e financiou diversas atividades. Intermediou a porfia entre poder econômico e miséria, assumindo a defesa dos trabalhadores, em face dos patrões, e dos consumidores, em face de empresários.
Desde as Constituições Mexicana, de 1917, e de Weimar, de 1919, os textos constitucionais incorporaram compromissos de desenvolvimento da sociedade e valorização dos indivíduos socialmente inferiorizados. O Estado abandonou o papel não intervencionista e assumiu postura de agente do desenvolvimento e da justiça social (SUNDFELD, 1997:50-54). É o denominado Estado Social.
Prosseguiu a evolução dos paradigmas até culminar no Estado Democrático de Direito. Superada a fase inicial, paulatinamente o Estado de Direito incorporou instrumentos democráticos e permitiu a participação do povo no exercício do poder. Manteve o projeto inicial de controlar o Estado. Dessarte, o Estado Democrático de Direito é aquele: a) criado e regulado por uma Constituição; b) onde os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres; c) onde o poder político é repartido entre o povo e órgãos estatais independentes e harmônicos, que se controlam uns aos outros; d) onde a lei, produzida pelo Legislativo, é necessariamente observada pelos demais Poderes; e, e) onde os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive políticos, podem opô-los ao próprio Estado.
Paralelamente a esses paradigmas de organização política do Estado, fala-se também nos direitos de primeira geração (individuais), direitos de segunda geração (coletivos e sociais)
e direitos de terceira geração (difusos, compreendendo os direitos ambientais, do consumidor e congêneres).
O historiador britânico Eric Hobsbawm (1995) considerou breve o século XX. Começou somente em 1914, até quando foram mantidas as mesmas características histórico-políticas  dominantes no século XIX. Terminou em 1989, com a queda do Muro de Berlim. A partir de então, aceleraram-se mudanças radicais e se constituiu novo estágio na História Contemporânea.
Fala-se em crise da pós-modernidade (MARQUES, 1999:91). Operam-se mudanças legislativas, políticas e sociais. Os europeus denominam esse momento de “queda, rompimento ou ruptura”. É o fim de uma era e o início de algo novo, ainda não identificado: pós-modernidade. Entraram em crise os ideais da Era Moderna, concretizados na Revolução Francesa. Liberdade, igualdade e fraternidade não se realizaram para todos e nem são hoje considerados realmente realizáveis. Desconfia-se da força e suficiência do Direito para servir de paradigma à organização das sociedades democráticas. Viceja o capitalismo neoliberal, bastante agressivo e com perversos efeitos de exclusão social.
Nos anos 1980, o chamado Welfare State, que combinava democracia liberal na política com dirigismo econômico estatal, cedeu espaço ao novo liberalismo. Foram questionadas as políticas de benefício social até então praticadas. Estados Unidos e Inglaterra, sob os governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, respectivamente, lideraram a implantação de uma nova política econômica. Assentava-se precipuamente nos conceitos liberais: Estado “mínimo”, desregulamentação do trabalho, privatizações, funcionamento do mercado sem interferência estatal, e cortes nos benefícios sociais.
Norberto Bobbio, grande pensador contemporâneo, sintetizou (1995:87-89): “Por neoliberalismo se entende hoje, principalmente, uma doutrina econômica consequente, da qual o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre necessário; ou, em outros termos, uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário.(…) Na formulação hoje mais corrente, o liberalismo é a doutrina do ‘Estado mínimo’ (o minimal state dos anglo-saxões)”.
No Brasil, Roberto Campos (in A Reinvenção do Estado, 1996) foi arauto do resgate do ideário liberal: “A esperança que nos resta é um choque de liberalismo, através de desregulamentação e de privatização. Governo pequeno, impostos baixos, liberdade empresarial, respeito aos direitos de propriedade, fidelidade aos contratos, abertura a capitais estrangeiros, prioridade para a educação básica — eis as características do Estado desejável: o Estado jardineiro”.
Mudando a ideologia dominante, muda a forma de se conceber o Estado e a Administração Pública. Não se quer mais o Estado prestador de serviços, mas, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (1997:11-12): “Quer-se o Estado que estimula, que ajuda, que subsidia a iniciativa privada; quer-se a democratização da Administração Pública pela participação dos cidadãos nos órgãos de deliberação e de consulta e pela colaboração entre público e privado na realização das atividades administrativas do Estado; quer-se a diminuição do tamanho do Estado para que a atuação do particular ganhe espaço; quer-se a parceria entre o público e o privado para substituir-se a Administração Pública dos atos unilaterais, a Administração Pública autoritária, verticalizada, hierarquizada”.
Nos Estados Unidos, a nova ideologia consolidou-se. Curiosamente, na pátria do New Deal, conjunto de reformas econômicas e sociais implantadas pelo Presidente Franklin Delano Roosevelt após a crise de 1929, abrangendo a intervenção do Estado na economia e várias medidas de cunho social, inclusive para a contenção do desemprego.
Em agosto de 1996, o Presidente norte-americano, Bill Clinton, anunciou a reforma da assistência oficial aos pobres, pondo termo à política social implantada com o New Deal. Proclamou o fim do Welfare State, considerando-o “falido” (Jornal do Brasil, 2.8.1996).
Ao lado do triunfo neoliberal, propaga-se a globalização, consistente na “mundialização da economia, mediante a internacionalização dos mercados de insumo, consumo e financeiro, rompendo com as fronteiras geográficas clássicas e limitando crescentemente a execução das políticas cambial, monetária e tributária dos Estados nacionais” (José Eduardo Faria, 1996:10).
Com invulgar franqueza, John Kenneth Galbraith salientou não ser a globalização um conceito sério. Inventado pelos americanos, dissimula a sua política de entrada econômica nos outros países (Folha de São Paulo, 3.11.1997).
Essa “nova ordem internacional”, uma ordem sobretudo econômica, mas também política, despreza os valores sociais e humanitários. Significa economia globalizada e desemprego incessantemente gerado (CASTRO, 1996:134). É “um desígnio de perpetuidade do status quo de dominação, como parte da estratégia mesma de formulação do futuro em proveito das hegemonias supranacionais já esboçadas no presente” (BONAVIDES, A Globalização  que  Interessa, 1996).
A Constituição de 1988, saudada por Ulysses Guimarães como “cidadã”, foi impiedosamente retalhada para assegurar uma controvertida “governabilidade”. Celso Antônio Bandeira de Mello condenou acerbamente o desmantelamento das instituições políticas estabelecidas juridicamente. Processam-se, mediante o desfazimento da Constituição da República, democraticamente promulgada, o aniquilamento dos direitos fundamentais, conquistados ao longo através de embates históricos, e o comprometimento da própria dignidade humana (Jornal do Advogado, OAB-MG, janeiro de 1998): “Imperialismo, hoje, chama-se globalização, queda de fronteiras, destruição da economia nacional, cujo resultado é o agravamento da miséria, em função do bem-estar de um grupo. Não se pode aceitar isso com submissão”.
Alain Touraine proclama já ser hora de eleger como prioridade sair do liberalismo e não entrar nele. Parece não haver mais sistema político capaz de administrar os problemas sociais. De um lado, o Estado se submete aos ditames da economia internacional; de outro, crescem os protestos por alteração de rumos. Amplia-se o vazio, preenchido pelo caos e pela violência. A prioridade é reconstruir o sistema político e abandonar a perigosa ideia de que os mercados podem regular a si mesmos. Essa ideia, do ponto de vista político, é gravemente insatisfatória. O desemprego em massa, a queda do nível de vida, para muitos, e o aumento das desigualdades, não são apenas variáveis econômicas. São, sobretudo, vidas e sofrimentos (Um Equilíbrio Precário, 1998).
O Brasil é um país com notória desigualdade social. Não obstante, no limiar da década 1990, o então Presidente Fernando Collor de Melo aderiu incondicionalmente ao modelo neoliberal. Fernando Henrique Cardoso, seu sucessor, consolidou-o em seus dois mandatos. Consequentemente, o País teve uma “década perdida”, com estagnação econômica, desemprego e endividamento externo e interno. Estropiado, chegou ao século XXI.
De modo surpreendente, o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a despeito do discurso vigorosamente contrário do combativo Partido dos Trabalhadores (PT), manteve a política econômica calcada na busca do superávit primário. Não obstante o bem sucedido programa social Bolsa Família, permanecem intocados os altos índices de analfabetismo, desemprego e problemas sanitários. Só para exemplificar.
Nessa quadra de insucessos, verificamos que passou a ser cobrado também do Poder Judiciário o compromisso com a dita “governabilidade” do País. É conceito fluido, porque deriva das concepções subjetivas dos governantes de momento.
Contudo, a princípio, o juiz deve estar subordinado aos fundamentos democráticos (AGUIAR JÚNIOR, 1998). Responde, perante a sociedade, pelo exercício da sua função. Essa, como as demais funções do Estado, é meio de realização dos valores fundamentais socialmente consagrados. No Estado democrático, o juiz assume o compromisso de exercer o poder estatal de acordo com os princípios orientadores do ordenamento jurídico, do qual derivou sua investidura no cargo e de onde lhe advém a força da decisão.
Miguel Reale, um dos responsáveis pela elaboração do novo Código Civil, sublinhava a diferença entre o Código de 1916, elaborado para um país predominantemente rural, e o Código de 2002, projetado para uma sociedade na qual prevalece o sentido da vida urbana. Passamos do individualismo e do formalismo do primeiro para o sentido socializante do segundo. Ficamos mais atento às mutações sociais, numa composição equitativa de liberdade e igualdade. Além disso, é superado o apego a soluções estritamente jurídicas, reconhecendo-se o papel que na sociedade contemporânea voltam a desempenhar os valores éticos, a fim de que possa haver real concreção jurídica. Socialidade e eticidade condicionam os preceitos do novo Código Civil, atendendo-se às exigências de boa-fé e probidade, em um ordenamento constituído por normas abertas, suscetíveis de permanente atualização. Reale perorou (Sentido do Novo Código Civil, 2002): “O que importa é verificar que o novo Código Civil vem atender à sociedade brasileira, no tocante às suas aspirações e necessidades essenciais. (…) É indispensável, porém, ajustar os processos hermenêuticos aos parâmetros da nova codificação. (…)Nada seria mais prejudicial do que interpretar o novo Código Civil com a  mentalidade formalista e abstrata que predominou na compreensão da codificação por ele substituída”.
A atividade do juiz não pode ser discricionária e nem neutra (AGUIAR JÚNIOR, 1998).  Deve ser exercida em consideração a regras e princípios, implícitos e explícitos, adotados pelo sistema. A decisão, ainda que inovadora, deve manter coerência com o ordenamento jurídico vigente, para que esse não perca sua identidade. O sistema jurídico de um Estado democrático permite liberdade decisória, nas condições acima referidas. Espera-se do juiz, a quem garante independência institucional e funcional, a utilização dessa liberdade para a realização dos seus valores. Por isso, o magistrado tem responsabilidade social.
Em voto lapidar, o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira sublinhou: “O jurista, salientava Pontes de Miranda em escólio ao Código de 1939 XII/23, ‘há de interpretar as leis com o espírito ao nível do seu tempo, isto é, mergulhado na viva realidade ambiente, e não acorrentado a algo do passado, nem perdido em alguma paragem, mesmo provável, do distante futuro’. ‘Para cada causa nova o juiz deve aplicar a lei, ensina Ripert (Les Forces Créatives du Droit, p. 392), considerando que ela é uma norma atual, muito embora saiba que ela muita vez tem longo passado’; ‘deve levar em conta o estado de coisas existentes no momento em que ela deve ser aplicada’, pois somente assim assegura o progresso do Direito,  um progresso razoável para uma evolução lenta” (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n. 196-RS, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, in Revista dos Tribunais, vol. 651, janeiro de 1990, p. 170-173).
De outro ângulo, no mundo contemporâneo — inclusive em nosso país —, surgem cada vez maiores tensões entre o Direito e a Economia. Segundo Giorgio Del Vecchio, as considerações meramente econômicas representam apenas um dos aspectos da realidade, a qual, em concreto, é sempre mais alguma coisa do que econômica.
Entretanto, o fenômeno da globalização econômica faz com que os mercados globalizados obstem a capacidade dos governos nacionais de condicionar politicamente o ciclo econômico. É crescente a integração dos sistemas financeiros e econômicos, em escala global. Aumenta a capacidade dos movimentos mundiais de capital de condicionar as posturas internas. Não são apenas as economias nacionais que se inserem nas fronteiras dos estados, pois os esses também estão inseridos nos mercados. O peso determinante dos processos econômicos — em particular os financeiros — transformou os atores econômicos transnacionais em poderosos competidores dos estados nacionais. São transpostas barreiras comerciais e abertos novos mercados. Aos atores políticos reserva-se somente a “tarefa de recriar, em nível global, as tradicionais garantias de segurança jurídica própria do direito privado nacional” (GREBLO, 2005:30-32).
Nesse contexto, cabe aos magistrados analisar cada caso em suas circunstâncias peculiares. Não podem desprezar o impacto macroeconômico das suas decisões. O economista Armando Castelar, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), sustentou que abalam o mercado de crédito a ineficiência do Poder Judiciário e as decisões judiciais causadoras de insegurança jurídica (Folha de São Paulo, 19.2.2003). Igualmente, argumenta Fábio Ulhoa Coelho (Revista da Escola Nacional da Magistratura, 2/ 86): “A instabilidade do marco institucional manifesta-se por vários modos. Um deles é a jurisprudência desconforme ao texto legal. Se a lei diz ‘x’, mas sua aplicação pelo Judiciário implica ‘não-x’, os investimentos se retraem. O investidor busca outros lugares para empregar seu dinheiro; lugares em que ele tem certeza das regras do jogo e pode calcular o tamanho do risco (que sempre existe em qualquer empreitada econômica). Numa economia globalizada, ele os encontra com facilidade. Tanto o investidor estrangeiro começa a evitar o País com marco institucional instável, como o nacional passa a considerar outros países como alternativa melhor para seus investimentos”.
A Magistratura brasileira tem se confrontado com a tensão entre a justiça e a segurança jurídica ou a estabilidade econômica. O ministro Luiz Fux, do Superior Tribunal de Justiça, refletiu (Impacto das Decisões Judiciais na Concessão de Transportes, Revista ENM, nº5, p. 12): “Se nós oferecemos uma justiça caridosa, se nós oferecemos uma justiça paternalista, se nós oferecemos uma justiça surpreendente que se contrapõe à segurança jurídica prometida pela Constituição Federal, evidentemente que isso afasta o capital estrangeiro, como afasta o capital das grandes corporações. É o que sucede com o não-cumprimento de tratados, o não-cumprimento de laudos arbitrais convencionados previamente… Isso, segundo a Corte Especial, aumenta o que se denomina ‘Risco Brasil’”.
Enfim, a tensão entre Direito e Economia torna angustiante o cotidiano do juiz contemporâneo. Deverá enfrentá-la com o sopeso dos interesses individuais e macroeconômicos envolvidos em cada caso. Se for preferível que prevaleça a segurança jurídica sobre interesses dos indivíduos litigantes, assim decidirá. Do contrário, fará prevalecer a justiça sobre os interesses macroeconômicos.
Por derradeiro, a lastimável realidade brasileira, marcada por corrupção e impunidade, influencia negativamente a estabilidade econômica. O economista norte-americano James Robert apontou a queda do Brasil no ranking de liberdade econômica (revista Veja, 3.9.2008, p. 20): “Saiu do que chamamos de ‘moderadamente livre’ para uma economia ‘majoritariamente não livre’. Os dois fatores que empurram o País para baixo são a corrupção e a falta de liberdade financeira (…). As leis brasileiras são pouco receptivas aos investimentos estrangeiros. O País precisa melhorar as leis de investimento, reduzir as restrições à moeda estrangeira e facilitar a vida dos empresários estrangeiros que queiram operar no País”.
Com efeito, desde o Descobrimento, enraizou-se no Brasil o patrimonialismo. Sérgio Buarque de Holanda destacava no clássico Raízes do Brasil (1976:105-106): “Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade (…) compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário ‘patrimonial’ do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário ‘patrimonial’, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para que se assegurem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida do Estado burocrático”.
As elites econômicas e políticas se apropriaram do Estado, em detrimento da cidadania. Por cidadão designamos o indivíduo na posse dos seus direitos políticos. Cidadania é a manifestação das prerrogativas políticas que um indivíduo tem no Estado Democrático. Consiste, portanto, na expressão da qualidade de cidadão e no direito de fazer valer as prerrogativas que defluem do regime democrático (BASTOS, 1994:19-20). Na sábia reflexão de José Murilo de Carvalho (1995:10-11), cidadania é também a sensação de pertencer a uma comunidade, de participar de valores comuns, de uma história comum e de experiências comuns.
Nos países latino-americanos, o desenvolvimento da cidadania não seguiu o modelo inglês. No Brasil colonial, escravidão e latifúndio não eram sólidos alicerces para a formação de futuros cidadãos. Nem a Independência propiciou a conquista imediata dos direitos de cidadania. A herança colonial fora bastante negativa. O processo de emancipação, bastante suave, não permitiu qualquer mudança radical. Apesar das expectativas, poucas coisas mudaram com a Proclamação da República em 1889. Na Primeira República governaram oligarquias estaduais (CARVALHO, 1995:10-31).
Em contraponto, Joaquim Nabuco considerava a Inglaterra, ainda no século, o “país mais livre do mundo”. Em sua clássica obra “Minha Formação” (1981:85), elogiou a postura da Câmara dos Comuns de se sintonizar com as oscilações do sentimento público. E muito admirava a autoridade dos juízes britânicos: “Somente na Inglaterra, pode-se dizer, há juízes (…). Só há um país no mundo em que o juiz é mais forte do que os poderosos: é a Inglaterra. O juiz sobreleva à família real, à aristocracia, ao dinheiro, e, o que é mais que tudo, à imprensa, à opinião. (…) O Marquês de Salsbury e o Duque de Westminster estão certos de que diante do juiz são iguais ao mais humilde de sua criadagem. Esta é a maior impressão de liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de igualdade de direitos, ou de pessoa, na mais extrema desigualdade de fortuna e condição, é o fundo da dignidade anglo-saxônica” (grifei).
Não olvidemos a postura contemporânea da União Europeia, ao adotar rígidos critérios institucionais para admissão de países-membros. Ao admitir Romênia e Bulgária em seu seio, a Comissão Europeia saudou a “conquista histórica”, mas apontou problemas persistentes, principalmente em termos de luta contra a corrupção e independência do Judiciário, sobre os quais os dois países deverão prestar contas a cada seis meses (Folha de São Paulo, 31.12.2006, caderno Mundo).
O Brasil, mesmo com a notável evolução social verificada no decorrer do século 20, chegou à Assembleia Constituinte de 1987 com enorme débito histórico a resgatar. O desafio era instituir o controle do Estado pelo povo e assegurar a plena cidadania a todos (PINHEIRO, 1985:55 e 68).
Em dado momento histórico, contudo, passamos a nos portar como se estivéssemos na Suécia. Verbi gratia, orgulhosamente poderíamos apontar o enunciado da súmula vinculante n° 11 do Supremo Tribunal Federal: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Em dissonância, o juiz federal Sérgio Fernandes obtemperou (Folha de São Paulo, 12.9.2008, caderno Brasil): “Até ontem, as capas de revistas diziam que o Brasil era o país da impunidade. Agora, falam que o Brasil é um Estado policial. Tenho a sensação de que perdi alguma coisa, de que dormi cinco anos e não vi essa transformação.”
Criada para coibir a corrupção no País, a Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal nº 8.429/1992) tornou-se “símbolo da impunidade”. Apenas cerca de 7% das autoridades processadas por improbidade foram condenadas. Em quinze anos, a maioria das 14 mil ações de improbidade, ajuizadas nos tribunais de todo o País, ainda não recebeu sentença. Nos crimes do mercado financeiro, o índice de condenação não passa de 5% (jornal O Globo, 17.6.2007).
Responsável pelo julgamento das maiores autoridades do País, o Supremo Tribunal Federal instaurou, desde 1968 (ano em que os dados passaram a estar disponíveis), 137 processos criminais contra deputados, senadores, ministros e presidentes da República. Todavia, desde então não condenou um deles sequer. As acusações abrangem desvio de verbas públicas, evasão de divisas e até homicídios. Há processos que tramitaram por mais de uma década, sem conclusão (Jornal O Globo, 18.6.2007).
Em suma, não se nega o avanço da democracia brasileira. As instituições republicanas estão se fortalecendo paulatinamente e se destaca o papel do Poder Judiciário na garantia do Estado de Direito. Há prenúncio de grande desenvolvimento econômico nos próximos anos, em decorrência da descoberta de fartas reservas petrolíferas no mar territorial brasileiro. No entanto, a caminhada será longa até atingirmos a plenitude de uma social democracia. Nesse aspecto, os Poderes constituídos, inclusive o Judiciário, têm enorme passivo a resgatar com a sociedade brasileira.
Para concluir este ensaio, recorro à clássica reflexão de Rudolf von Ihering (1980:94-95), bastante apropriada à realidade brasileira: “Qualquer norma que se torne injusta aos olhos do povo, qualquer instituição que provoque seu ódio, causa prejuízo ao sentimento de justiça, e por isso mesmo solapa as energias da nação. Representa um pecado contra a ideia do direito, cujas consequências acabam por atingir o próprio Estado. (…) Nem mesmo o sentimento de justiça mais vigoroso resiste por muito tempo a um sistema jurídico defeituoso: acaba embotando, definhando, degenerando”.