Direito e Religião: Conflitos entre a presença do Sagrado e o Estado Laico

17 de fevereiro de 2014

Bacharela em Direito pela Faculdade Pitágoras - Divinópolis/MG e Pós-Graduanda pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus em Direito Público e Direito de Sucessões e Família

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Larissa-Silveira-Emery-Resumo

O presente artigo visa abordar a influência da religião no Direito, uma vez que, sendo o Brasil um país laico e não-confessional, ainda sim é possível vislumbrar a ação de grupos religiosos especialmente em relação à tessitura da lei. Para isto, faz-se uma leitura panorâmica pela história para se detectar onde as crenças começaram a interagir com as regras da sociedade, iniciando pela idade antiga, passando pela era medieval até encontrar os dias atuais. Discorre-se também sobre decisões de casos inéditos em que o Estado teve que se posicionar levando em consideração o interesse público, seguindo os princípios que regem o ordenamento pátrio, ora afastando o moralismo religioso, ora afastando o radicalismo dos não-confessionais.

Palavras-chaves: Direito, religião, leis.

Abstract:

This article aims to address the influence of religion in law, since, with Brazil being a secular country and non-confessional, yes you can still glimpse the action of religious groups especially in relation to the fabric of the law. For this, it is a panoramic reading the story to detect where the beliefs began to interact with the rules of society, starting with the old age, through the medieval era to find nowadays. It also talks about unpublished decisions of cases in which the State had to stand considering the public interest, following the principles governing spatial patriotic, religious moralism away now, away from the radicalism of the now non-denominational.

Key-Words: Law, religion, laws.

1 Introdução

Historicamente o ser humano atribui seus conceitos de ética e moral bem como as esperanças de conseguir o que a priori não está ao seu alcance em forças superiores ou divinas. Entretanto, essa concepção do divino é subjetiva para cada um, justamente aí que surge o conflito.

O homem se esquece da finalidade do Estado – regramento do convívio social e a promoção de uma vida no mínimo digna ao cidadão (entre outras funções) – e do Direito – proteção contra os eventuais abusos do Estado e a fiscalização do respeito aos direitos e garantias fundamentais (idem) – para atribuir a estes a tessitura de um ordenamento conforme a ideologia da religião que segue.

Recentemente teve-se notícia nas mídias acerca do embate do Ministério Público Federal para retirar das cédulas do Real a expressão “Deus seja louvado”, o que veio a causar grande polêmica entre grupos religiosos, ateus e a justiça.  O que veio gerar muita polêmica, inclusive segundo o “Jornal O Globo” José Sarney, responsável pela introdução da expressão em 1986 quando era presidente, alegou que “retirar esta expressão da cédula é falta do que fazer”. 1

2 Dados históricos 

Em “A cidade antiga” Fustel2 relata que a primeira influência da religião foi nas civilizações greco-romanas onde se cultuava os antepassados. Na idéia de religião deles não havia a concepção de céu/inferno, a pessoa que morria continuava a viver, não num estado corpóreo, mas endeusado pela situação da morte e sua felicidade eterna dependia dos sacrifícios e presentes ofertados por seus descendentes que, em contrapartida, receberiam proteção e prosperidade e quando morressem ganhariam este status. E esta crença nos antepassados – os deuses lares e manes – era passada de geração em geração.

Esta religião primitiva despertou os primeiros passos do Direito Civil, pois determinava as relações de parentesco (eram parentes aqueles que cultuavam os mesmo ancestrais e não necessariamente aqueles nascidos do mesmo sangue), as relações do casamento (a esposa passava a cultuar os deuses do marido, desligando-se do culto aos deuses da família paterna uma vez que não se podia adorar a dois troncos de deuses lares e, portanto, os filhos dessa união não possuíam parentes maternos).

O Estado em nada poderia intervir no âmbito doméstico, ele apenas tutelava as relações entre patriarcas, e estes por sua vez faziam as leis julgava os membros da família, tendo o poder de rejeitar um recém-nascido ou adotar um (para o caso daqueles que não tinham nenhum filho somente, sendo proibida a prática do celibato), infligir castigos sobre aqueles que transgredissem sua lei (até com a pena de morte, e isso incluía a esposa), ou em caso da mulher ser estéril, poderia divorciar-se dela, já que não era permitida a poligamia neste período. (Eis a origem do casamento monogâmico).

Já na Era Medieval, o Estado era totalmente submetido ao poder da Igreja Católica, tanto que era por ela que eram feitos interrogatórios à procura de “bruxas e hereges”.

No livro O Martelo das Feiticeiras3 há ensinamentos aos juízes de como reconhecer as bruxas, os métodos de se infligir os males utilizados por elas com suas respectivas classificações, e a terceira parte se refere às regras para agir “legalmente” contra elas, da instauração do processo até a lavratura da sentença.

Observa-se aí a clara intromissão da religião no processo judiciário, inclusive tratando sobre questões civis e penais e negando aos cidadãos direitos básicos como devido processo legal e ampla defesa e a dignidade humana, já que a maior parte dos processos corria em “segredo de justiça”. Os presos não sabiam claramente do que estavam sendo acusados, sendo levados por vezes á confissão de crimes que possivelmente não cometeram por meios ardilosos.

Vale lembrar também das Ordálias (judicium Dei), meio pelo qual eram avaliadas as provas de culpa ou inocência. A idéia era que Deus protegia o inocente e, partindo disto, submetia-se o suspeito a práticas tortuosas como afogamentos, provas com queimaduras na pele e etc. Caso o indivíduo nada sofresse ou se recuperasse dentro de determinado prazo, ele era inocentado.

No Brasil, observa-se a influência da religião já no início da colonização, quando padres jesuítas foram trazidos de Portugal para catequizar os povos indígenas que aqui viviam. Acerca disto escreveu Oswald de Andrade4

ERRO DE PORTUGUÊS

Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena! Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português

Sendo Portugal um país tradicionalmente católico, viu aí uma oportunidade de domesticar os índios (que não se curvaram sob as armas) e torná-los dóceis e aptos ao trabalho escravo.

3 Daí a Deus o que é de Deus  e a César o que é César  

A frase que inicia esta parte do texto foi retirada do Evangelho de Marcos 13, 13-17 onde o próprio Cristo faz menção de separar o que é de Deus do que é do Estado. Entretanto, no ordenamento brasileiro nem sempre foi assim, pois a religião era uma questão estatal, tratada inclusive na Constituição.

Embora o Brasil se declare um país laico, encontramos em muitas repartições públicas objetos como crucifixos, Bíblias, e outras imagens. Inclusive no preâmbulo de nossa Constituição há a invocação ao divino:5

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (grifo próprio)

A Lei Maior do Império datada de 1824 iniciava-se com a seguinte com a seguinte inscrição: “Em nome da Santíssima Trindade […]” onde em seu artigo 5º deixava-se claro que a religião Católica era a oficial do Estado e, ao assumir o trono o imperador era juramentado a mantê-la como tal, posto que era acusado de traição quem quer que fosse que algo fizesse para desmantelá-la.

Outras religiões eram toleradas desde que se mantivessem dentro de seus cultos domésticos e os efeitos civis de nascimento, casamento e óbito eram alcançados de forma extensiva àquelas pessoas que professavam fé diferente do Estado em razão dos princípios defendidos na Lei Maior.

Já na transição do Império para a República houve uma ruptura do Estado com a igreja no tocante a intervenção. O Decreto de número 119-A de 7 de janeiro de 1890 proibia qualquer interferência estatal em assuntos religiosos, aclamando-se daí a plena liberdade religiosa, acabando com o padroado.

Com o advento da Constituição Federal de 1988 ampliou-se não só a liberdade religiosa como também se consagrou o princípio da laicidade da República Federativa do Brasil constante no artigo 19 a vedação à União, Estados e Municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou estabelecer relações de dependência ou aliança […]”.

Entretanto a CF/88 é alvo de questionamentos por trazer em seu preâmbulo a expressão “sob a proteção de Deus”. Sobre este fato, disse uma vez o ex-ministro Sepulveda6 que não se deve levar tanto a sério, pois esta expressão não tem qualquer força normativa, uma vez que não se pode incumbir a nenhuma divindade a proteção da Constituição. (É apenas uma forma jacintosa, pretensiosa, como se Deus estivesse preocupado com a feitura da Lei Maior). Nada mais é que uma forma de chamar a atenção da adesão popular.

4 Deus seja louvado e o dinheiro

Há inscrições de louvores divinos na moeda corrente. A expressão “Deus seja louvado” aparece nas cédulas do Real desde a década de 1980, que fora solicitada ao Banco Central pelo então presidente José Sarney7, assim como na moeda americana existe a expressão “In God we trust” (Em Deus nós confiamos).

Sabendo que ao Estado é proibido estimular ou denegrir qualquer corrente confessional, no término de 2011 que foi recentemente questionado pelo Ministério Público Federal, porque pressupõe algum “deus” em específico, pois a maioria da população brasileira é cristã e é o que dá base para a fundamentação para quem a favor da retirada da expressão, uma vez que se fossem expressões referentes a Buda, Ganesha ou ainda sobre a não-existência de Deus, não seria aceito pela maioria da população brasileira Ministério Público veio suscitar a questão da frase presente nas cédulas de Real em uma ação civil, onde foi indeferido o pedido de liminar pela juíza federal Diana Brunstein, da 7ª Vara Federal Cível em São Paulo em novembro de 2012 sob o fundamento de que “alegação de afronta à liberdade religiosa não veio acompanhada de dados concretos, colhidos junto à sociedade”8.

Muito embora não se faça menção a nenhum deus em específico, há que se pensar nas pessoas que não professam crença ou os que acreditam em deuses politeístas, pois a frase sugere uma divindade monoteísta.

Da mesma forma abre espaço para o confronto de idéias, podendo servir para os religiosos nominarem entre si, qual deus as cédulas se referem quanto aos ateus questionarem a seriedade do Estado ao envolver divindades em seu cerne.

Para os contrários a retirada, o argumento é que esta é uma coisa menor, pois, o país tem assuntos mais importantes a tratar; também que a frase não estimula ninguém a seguir qualquer tipo de religião, além do gasto que seria necessário inclusive com publicidade para explicar à população sobre a retirada da frase que está presente desde o governo Sarney, e ainda poderia gerar intranqüilidade na população quanto a autenticidade da cédula.

Atribui-se a laicidade estatal, segundo Daniel Sarmento, 9 um princípio de caráter duplo: tanto proteger o Estado da intervenção indevida da religião quanto também proibição de interferência estatal em assuntos religiosos, desde que estes últimos não perturbem a paz, a ordem pública nem a segurança.

Cuida observar que a democracia não pode ser orientada por qualquer corrente moral ou de fé. Mas não é legítimo em uma democracia olvidar qualquer grupo social, como bem lembrou o Procurador Geral da República quanto ao mérito da ADPF 54/DF.

O Estado não é confessional nem muito menos descrente ou agnóstico, mas sim neutro e deve dar oportunidade dentro dos limites legais a todos no que tange a expressar a opinião.

5 Resquícios dos aspectos religiosos na formação do ordenamento jurídico brasileiro

É evidente que o início do regramento da sociedade brasileira se deu por normas morais, religiosas e costumes do populacho, entretanto, conforme foi se consolidando a seara jurídica, tornou-se inviável a influência de alguma crença no munus Estatal, pois esta limitava sua soberania. Desta forma, fez-se necessário distanciar Direito e religião.

Contudo, depois de mais de vinte anos da promulgação da Constituição Federal, encontram-se resquícios da fé no que toca ao ordenamento, podendo citar como exemplo a antecipação de partos de anencéfalos, transfusão de sangue entre testemunhas de Jeová, casamento homoafetivo, a polêmica quanto a crucifixos e símbolos religiosos em repartições públicas, pesquisas com células-tronco e, entre outras mais, a existência de uma “bancada religiosa” no Congresso.

5.1 Antecipação de parto de feto anencefálico

No julgamento do ADPF 54/DF10 sobre a possibilidade da antecipação do parto de anencéfalos, houve um grande embate entre os grupos religiosos e o Estado. Alguns líderes religiosos uniram-se em uma só voz para pedir o veto da idéia, sob o argumento de que somente Deus, que deu a vida e somente Ele poderia tirar. Outro argumento seria que esta possibilidade abriria precedentes para possibilitar o aborto de fetos sadios.

Contrário a este posicionamento o Ministro Marco Aurélio de Mello argumentou em seu relatório que o anencefálico não é uma vida em potencial, mas seguramente uma certeza de morte. Isso porque, seguindo seu raciocínio fundamentado pelas bases da sociedade médica, o feto sob estas condições mesmo respirando e tendo batimentos cardíacos não pode desenvolver vida extra-uterina por não possuir estrutura biológica necessária. Este ser não é nem mesmo sensível a dor ou qualquer outro estímulo físico. A anencefalia também não pode ser considerada deficiência, pois esta última possibilita a pessoa o convívio social ainda que não tenha características padrão. Este feto não teria direitos por quanto já seria para a medicina um natimorto, ao passo que a mãe – que já é vida – teria o direito de por fim ao suplício de não poder projetar um futuro para aquela criança. Rechaça ainda a possibilidade de se obrigar a levar a diante esta gestação para tão somente doar os órgãos do anencefálico. Primeiramente porque não seguem o padrão médico para que se pudesse aproveitar. Segundo, Marco Aurélio ao citar Kant diz que a vida de uma mulher não pode meio para obter doadores de órgãos. Ainda mais porque a doação de órgãos é um ato gratuito e espontâneo, não podendo tipificar a sua não aceitação a uma família que planejava ter um filho sadio.
E prossegue seu raciocínio que, hoje em dia o óbito fetal intra-uterino e a anencefalia são facilmente identificáveis com a crescente evolução tecnológica, e por isto não há riscos de cometer um infanticídio ao antecipar o parto. Neste caso, o Estado deve primar pelo bem-estar daqueles que já estavam com sua vida em curso, devendo abster-se de qualquer corrente moral, filosófica ou religiosa.

5.2 Testemunhas de Jeová

No caso das Testemunhas de Jeová e a polêmica da transfusão de sangue, foi citado anteriormente que, um dos lados da laicidade estatal é evitar também a intromissão na vida dos administrados. Dessa forma é garantida a liberdade de crença a esta corrente.

Analisando esta questão do sangue, historicamente para os seguidores da religião, vem de um mandamento bíblico onde as pessoas teriam responsabilidade sobre o sangue de outrem, e assim seriam considerados “impuros”. Eis uma passagem bíblica que fundamenta sua convicção: “Pois a alma da carne está no sangue e dei-vos sangue para o altar, a fim de que ele sirva de expiação para vossa alma, porque é pela alma que o sangue expia”11.

Esta comunidade defende que existem terapias alternativas12 tais como expansores de plasma, os fatores de crescimento hematopoéticos, a recuperação intra-operatória do sangue no campo cirúrgico, a hemostadia meticulosa, e ouras terapias desenvolvidas por médicos alopatas, desta forma não é necessário recorrer a transfusão.

Outro fundamento, com base legal está na própria Constituição que além de garantir a liberdade de crença, fez a si mesma a proibição de embaraçar a qualquer forma de manifestação religiosa desde que esta não perturbe a ordem.

Entretanto, como nem o direito à vida é absoluto, o Estado pelas mãos do poder Judiciário está decidindo as causas a favor do médico/hospital que libera a transfusão quando nenhum outro procedimento poderia salvar a vida que ali estiver em jogo. Como foi o caso que se deu no Rio Grande do Sul citado por Nisnet Feliciano dos Santos e Hugo Garcez Duarte13

Dentre eles, destacamos um do Rio Grande do Sul (AC 70020868162 – 5ª C. Cível – rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack – j. 22.08.2007):

“APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. […] Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares” (RIO GRANDE DO SUL, 2007, p. 01).

O argumento seria que, além do profissional da saúde ter o dever de salvar vidas, (conforme jurou em sua colação de grau), no Brasil, a prática de eutanásia ainda é proibida, sendo vedada a comunidade médica a encorajar de alguma forma, e o direito à vida é irrenunciável como todos os direitos da personalidade.

5.3 Casamento Homoafetivo

Existe um grande conflito no ordenamento nacional quanto ao casamento de pessoas do mesmo sexo, e grande parte disto se deve a mentalidade religiosa e moral existente não só entre os juristas e agentes políticos, mas também da população, que aos poucos vem sido mudada.

É bem verdade que o Cristianismo se preocupou com a forma da entidade família, regulando o formato do matrimônio e dando-lhe status de sacramento, também foi uma forma de “organizar” a sociedade em ordem monogâmica de acordo com a ordem e moral da época. O próprio Jesus, no Evangelho de Marcos14 fala da sacralidade do matrimônio e de sua impossibilidade de dissolução.

Esta questão religiosa remonta a época histórica de Fustel onde marido e mulher formava uma instituição sagrada e cada um tinha seu papel definido no culto prestado aos antepassados – conforme citado anteriormente – que vem perdurando nos diplomas legais, mesmo o Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988 fazem menção de casamento hétero embora jurisprudencial e doutrinariamente a união homoafetiva vem ganhando espaço no cenário do Direito atual mesmo porque os conceitos familiares têm sofrido grandes mudanças ao longo do tempo.

Existem muitos argumentos com base jurídica (da legal a principiológica) para sustentar este tipo de união. O primeiro destes está na dignidade humana garantida no artigo 1º da CF/88 e na igualdade de que fala o caput do artigo 5º sem distinção de cor, credo, orientação sexual. Desta forma, é inadmissível dispensar tratamento desigual as pessoas do mesmo sexo que queiram se unir formalmente infundadamente, considerando que elas também constituem sociedade conjugal, patrimônio e herdeiros.

Para cristalizar o entendimento, o artigo 1513 do Código Civil assinala que “é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”. E ainda na parte de que trata os impedimentos e suspeições não cita em nenhum momento qualquer obstrução a união de pessoas do mesmo sexo.

Ainda dentro do Código Civil, poderia a corrente contrária dizer que importa somente o casamento heteroafetivo porque na hipótese de um dos cônjuges induzir o outro a erro quanto a fertilidade o contrato nupcial poderá ser anulado, sendo que era dada grande importância ao ato sexual para a convalidação do casamento. Entretanto não se pode dizer que a reprodutividade seria requisito exigido legalmente, tanto que caiu por terra este argumento com o CC/02 onde só se invalida o casamento se um dos nubentes não tiver discernimento necessário para o ato, constatando-se vício na vontade, se um dos cônjuges for menor de idade e não houver autorização conforme dispõe a lei para tal ato ou incompetência da autoridade que realizou a celebração.

Com os avanços da sociedade em sua forma de pensar, também evanesceu o modelo tradicional de família qual é pai, mãe, filhos e estrutura hierarquizada e rígida. O conceito foi ampliado e o afeto é mais considerado como elemento básico do que a relação sanguínea. Segundo Evellin Costa e Silva15 em seu artigo O casamento homoafetivo à luz da constitucionalização do Direito Civil para o site Jus Navigandi foram catalogados para o IBGE diversos tipos de entidades familiares diversas do modelo tradicional, a saber:

a) Par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos;

b) Par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos e filhos adotivos, ou somente com filhos adotivos, em que sobrelevam os laços de afetividade;

c) Par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos (união estável);

d) Par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (união estável);

e) Pai ou mãe e filhos biológicos (comunidade monoparental);

f) Pai ou mãe e filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (comunidade monoparental);

g) União de parentes e pessoas que convivem em interdependência afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no caso de grupo de irmãos, após falecimento ou abandono dos pais;

h) Pessoas sem laços de parentesco que passam a conviver em caráter permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem finalidade sexual ou econômica;

i) Uniões homossexuais, de caráter afetivo e sexual;

j) Uniões concubinárias, quando houver impedimento para casar de um ou de ambos companheiros, com ou sem filhos;

k) Comunidade afetiva formada com “filhos de criação”, segundo generosa e solidária tradição brasileira, sem laços de filiação natural ou adotiva regular

Desta forma, se já são incontestadas estas formas de convívio como unidades de família no país não há porque negar o casamento formal (ao menos civilmente) para as pessoas do mesmo sexo, uma vez que já é reconhecida a união estável homoafetiva pelo STF e garantido a todos os nacionais, a isonomia e a dignidade não cabe aos operadores do Direito questionar a orientação sexual de cada um, nem mesmo a entidade familiar quando estas não ameaçam a ordem pública nem a segurança nacional.

5.4 Crucifixos e símbolos religiosos em repartições públicas

Houve uma época em que o Estado professou uma religião oficial, entretanto para a Constituição Federal este pensamento foi eliminado. Não obstante as pessoas ostentam em alguns órgãos públicos crucifixos e outros símbolos religiosos que dispensam atenção especial para determinada crença.

Devido a este fato, grupos minoritários uniram-se em um ativismo antissimbolista para a retirada desses resquícios dos prédios públicos sob o argumento de estarem sendo “agredidos” ao serem expostos a tal coisa, pois fere a liberdade de crença e consciência.

Atente-se para a idéia de que sendo o Estado laico, não deveria de fato “ostentar” símbolos religiosos ou dar destaque para uma crença em específico. Levando-se em consideração os princípios que regem a Administração Pública como motivação dos atos, impessoalidade e moralidade, questiona-se o objetivo de determinado símbolo ali estar.

Logicamente ao servidor público também é garantido a liberdade do pensamento religioso, mas este deve ser um ato interno que não exponha ou submeta o público a um sentimento de desrespeito. O que se prima é que seja retirado o que é subjetivo para que o ambiente de funcionalismo público seja mais objetivo e neutro possível em virtude da isonomia e do Estado Democrático de Direito.

5.5 Pesquisas com células-tronco

Quando se deu a descoberta de que embriões não-fecundados poderiam ser uma fonte de células-tronco para salvar vidas tanto na sua implementação no corpo humano quanto na modalidade de pesquisa, um coro de vozes se levantou contra a prática, alegando que não poderiam tirar uma vida “que Deus deu” nem para salvar outrem, pois é considerado ser vivo já no primeiro instante de fecundação para os religiosos no país – que são em sua maioria cristãos.

Tanta polêmica quanto ao que seria o início da vida deu origem ao ADI 3510 que pugnou pelo impedimento da linha de pesquisa com células-tronco impetrado pelo ex-procurador da República Cláudio Fontelles16.

Em seus votos sobre a matéria, a maioria os ministros do STF na época votaram pela improcedência da ADI, entendendo que não havia nenhuma inconstitucionalidade na Lei de Biossegurança. O relator da ação o Ministro Carlos Ayres Britto17 argüiu em seu voto que “para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha sido implantado no útero humano.” Destacando que, o direito á pesquisa científica é direito garantido pela Constituição, e que neste caso desta, haveria “espírito fraternal” para com a sociedade, tendo em vista que através das descobertas feitas seria possível combater muitos males que afetam a saúde da população.

Ellen Grace18 que a época também era ministra seguiu o voto do relator argumentando que

[…] Nem se lhe pode opor a garantia da dignidade da pessoa humana, nem a garantia da inviolabilidade da vida, pois, segundo acredito, o pré-embrião não acolhido no seu ninho natural de desenvolvimento, o útero, não se classifica como pessoa. […] Por outro lado, o pré-embrião também não se enquadra na condição de nascituro, pois a este, a própria denominação o esclarece bem, se pressupõe a possibilidade, a probabilidade de vir a nascer, o que não acontece com esses embriões inviáveis ou destinados ao descarte […]

Acompanharam a linha de pensamento do relator e da ex-ministra Ellen Grace os ministros: Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Marco Aurélio de Mello e Celso de Mello. E votaram parcialmente – fazendo algumas ressalvas a lei – o ministro Ricardo Lewandowski e os ex ministros Menezes, Eros Grau, Gilmar Mendes, sendo deste último uma importante observação: as pesquisas deveriam ser controladas por um comitê de ética e pesquisa ligados ao Ministério da Saúde.

O STF ao se posicionar através de seus ministros preocupou-se com a ordem pública e a ética para com as pesquisas, pois entendeu que seria um grande avanço para comunidade científica que poderia traduzir-se em benefícios para a sociedade, afastando a questão religiosa ou moral, uma vez que restou comprovado que a lei 11.105/05, em nada fere os princípios alçados pela Constituição Federal ao se estabelecer critérios para a realização dos procedimentos e a submissão para aprovação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS).

5.6 A existência de uma bancada religiosa no Congresso

É garantido pela Constituição Federal a qualquer cidadão que preencha os requisitos do parágrafo 3º do artigo 14 a elegibilidade para um cargo político, como também no artigo 3º do Código Eleitoral. Entretanto, possibilidade sem critério tem levado o povo brasileiro elevar ao posto de legislador, pessoas desqualificadas que levam em contam somente seus interesses, paixões ou ponto de vista moral. O mesmo tem ocorrido com partidos políticos que se formam fazem coligações, e depois suas idéias são constantemente desvirtuadas do estatuto original, o que nem sempre garante ao cidadão a neutralidade estatal, fazendo que haja posições tomadas pelos próprios representantes do povo baseadas em pontos de vistas subjetivos.

Inicia-se nas eleições, quando é aceito partidos com siglas religiosas. É claro que em um Estado Democrático de Direito não se deve excluir a opinião de nenhum grupo social, entretanto amalgamar o processo decisivo das questões advindas da sociedade e a feitura das leis com grupos parciais não parece ser adequado ao ente estatal que pretende ser neutro19.

Há quem diga neste turno que as plataformas políticas religiosas não sejam uma afronta a eqüidistância estatal devido à previsão de liberdade de expressão e de crença presente nos direitos e garantias fundamentais.   Mas quando os agentes do legislativo propõem a tutela de um bem de acordo com determinado valor religioso, estão desrespeitando a pluralidade existente no povo e agindo contra os princípios constitucionais.

É exatamente dentre eles o cerne de onde virá a definição de “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer coisa alguma se não em virtude de lei”, e a fonte propulsora que exalará as diretrizes para os outros poderes – Executivo e Judiciário agirem. Logo há que se ter cuidado para não restar prejudicada a laicidade estatal quando se permite a eleição tanto de líderes religiosos quanto a presença de plataformas políticas que envolvam crenças.

6 Conclusão

Imaginar o Brasil como país totalmente laico é ilusão visto que, este possui uma tradição religiosa muito forte. As pessoas leigas ainda têm uma concepção divina muito arraigada e algumas ainda crêem que a Justiça “de Deus” lhes virá por meio dos agentes públicos.

Entretanto justamente esse conceito a cerca do plano espiritual acaba por vezes pondo em cheque a objetividade jurídica que se pretende chegar, porque enquanto humanos, torna-se impossível ser totalmente isentos de valoração e axiologismos.

Logo, em decorrência desta valoração, acabam por ocorrer colisão entre direitos: a liberdade de expressão colide com a liberdade de religião e consciência, e entre “ofendidos” por estarem expostos a algum simbolismo e “agredidos” pelas legislações que “ferem a moral e os bons costumes” de algumas crenças, o Estado se vê as voltas com os questionamentos que chegam nos dutos –  principalmente da mais alta corte –  do Judiciário.

O país é laicizado porque a hegemonia estatal não depende de nenhuma fé, e a Administração Pública rege-se por meios de princípios jurídicos e pela lei, ocupando-se de questões de ordem pública e segurança nacional.

Insta em ressaltar mais uma vez que, ser laico não se trata de ser descrente, mas sim neutro, não privilegiando nenhuma religião (ou a falta dela), crença, corrente de pensamento, ou valores morais em específico, alcançando desta forma, o respeito pela diversidade existente.

Referências

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Notas

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10 STF.  ADI 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio de Mello Decisão 12/04/2012 Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ ADPF54.pdf Acesso 17 jan 2013

11 Levítico 17, 11

12 Disponível em http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_ leitura &artigo_id=9841 Acesso 17 jan 2013

13 Disponível em http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_ leitura &artigo_id=9841 Acesso 17 jan 2013

14 Evangelho de Marcos 10, 1-12

15 Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/22964/o-casamento-homoafetivo-a-luz-da-constitucionalizacao-do-direito-civil#ixzz2HQwJmdMD Acesso 17 jan 2013

16 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=89917 Acesso em 17 jan. 2013

17 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=89917 Acesso em 17 jan. 2013

18 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=89917 Acesso em 17 jan. 2013

19 Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/20345/o-estado-laico-e-a-reforma-do-codigo-eleitoral#ixzz2HQxYua6b Acesso em 17 jan. 2013