Edição 258
Dispute boards e a prevenção de litígios complexos
4 de fevereiro de 2022
Álvaro Ferraz, Paula Menna Barreto Marques
Advogados

Os denominados disputes boards são um tema da última hora para o contencioso estratégico. Mas o que seriam e qual é a real utilidade desses dispute boards? Esse é o tema que passaremos a abordar neste trabalho. Não se pretende, aqui, esgotar a matéria, mas somente trazer algumas breves considerações e premissas que visam a ampliar os olhares sobre a questão.
Os dispute boards são comitês criados para resolver litígios oriundos de um determinado contrato, compostos por especialistas nomeados pelas partes. A especialidade em questão diz respeito não só na matéria objeto do contrato, mas à própria relação jurídica estabelecida, já que eles vão acompanhar, pari passu, o contrato desde a sua formação.
Nessa linha, qual seria, então, a diferença entre esses comitês e o tribunal arbitral, no qual também as partes nomeiam os árbitros? A principal distinção é que se pressupõe a resolução da lide – ou seja, do problema – antes mesmo da necessidade da propositura de um processo (seja arbitral ou judicial).
O comitê, na verdade, será uma espécie de instância revisora das intercorrências ocorridas durante toda a execução do contrato. Os seus principais objetivos serão acompanhar a execução do contrato, formular recomendações ou decidir pelas partes, conforme forem demandados.
Como se tratam de comitês vinculados à avença, o ideal é que sejam formados no início da relação contratual, para evitar que a sua criação ocorra no momento em que o conflito já se encontre instaurado, o que dificultaria, em tese, até mesmo a sua formação. A ideia é a de que o comitê esteja hábil a decidir qualquer conflito relacionado ao contrato prontamente, por já estar familiarizado com a relação contratual desde o início. Ou seja, já estará plenamente a par das minúcias do contrato em caso de existência de qualquer dúvida.
Além disso, comungamos do entendimento de que a decisão a ser formada pelo dispute board é definitiva e deverá, por este motivo, ser considerada vinculativa às partes. Assim, tomada a decisão pelo conselho, as partes contratantes devem obedecê-la, em atenção ao princípio da pacta sunt servanda, já que a submissão ao comitê foi estipulada por livre e espontânea manifestação de vontade.
Trata-se, entretanto, de uma definitividade relativa, pois as partes poderão desafiar a decisão do comitê por meio de ação judicial ou arbitral, a depender da hipótese.
E aqui também está uma diferença da arbitragem, afinal, como se sabe, a decisão arbitral, assim como a decisão judicial, é final entre as partes; e só pode vir a ser questionada, em tese, por meio de ação anulatória ou rescisória, conforme o caso. A decisão do comitê, portanto, não terá como uma de suas qualidades a definitividade conferida pela denominada coisa julgada material.
O mecanismo pode ser utilizado em três modalidades: (1) dispute review board (DRB), que aconselha as partes com sugestões; (2) o dispute adjucation board (DAB), no qual o comitê desempenha função decisória, a impor soluções; e (3) combined dispute board (CDB), que pode tanto emitir recomendações não vinculantes quanto proferir decisões vinculantes.
Uma preocupação comum das partes em relação a utilização dos comitês diz respeito às provas apresentadas e produzidas durante a sua formação. O Manual da Dispute Resolution Boards Foundation sugere uma espécie de utilização do instituto da “common law do without prejudice status”, para que as partes efetivamente se empenhem para a resolução do conflito, sem se preocupar com as consequências na utilização do eventual litígio futuro.
Acredita-se, nessa linha, que a adoção do “without prejudice” seja compatível com o Direito brasileiro, desde que mediante expressa disposição contratual. O fundamento constitucional basilar é o princípio da legalidade (Constituição Federal, art. 5o, II) e o fundamento legal é o da cláusula geral de negócios processuais (Código de Processo Civil, art. 190).
Esse método de resolução de disputas está sendo mais utilizado especialmente em contratos de infraestrutura, construção e concessão, além de eventuais disputas societárias. A utilização dos comitês nos dias atuais é mais comum em contratos internacionais.
Hoje, a considerar o dinamismo das relações contratuais, em especial nos casos de relação continuada e de grande complexidade, que por vezes englobam grandes grupos econômicos e diversas empresas, os contratantes poderem contar com um comitê especializado, realmente especialista na matéria e no próprio contrato, para resolver o problema de forma mais célere e de maneira mais técnica é fundamental. Trata-se de uma espécie de gerenciamento do contrato e dos litígios, de modo a prevenir e evitar conflitos de grandes proporções.
A verdade é que, mesmo na arbitragem, os procedimentos têm levado cada vez mais tempo. Não há mais, na arbitragem, a tão almejada celeridade do procedimento. E, enquanto não há uma resolução final, as partes ficam “a ver navios”, sem uma definição concreta para o problema ali submetido.
Na prática, nos contratos de relação continuada, surgem, inevitavelmente, dúvidas e impasses durante a execução do contrato. Sem a previsão dos dispute boards, as partes acabam somente trocando e-mails e notificações, sem dar uma verdadeira solução prática para a questão na maioria dos casos. O que se vê, portanto, é somente uma tentativa de produção de prova documento para o fim único de embasar um eventual litígio futuro.
No Brasil, o instituto vem ganhando relevância em razão da obrigação imposta pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial para a realização de financiamento de obras. Atualmente, os dispute boards já são especificamente regulados pela recém promulgada Lei de Licitações e Contratos (Lei no 11.133/2021), v.g., com citação expressa nos artigos 138, II, 151 e 154.
Além disso, há, desde 2018, um Projeto de Lei em trâmite perante a Câmara dos Deputados (PL no 9883/2018). Recentemente, o Projeto foi apensado ao PL no 2421/2021, que veio do Senado Federal, a considerar que ambos têm por objeto regular a criação de dispute boards nos contratos no âmbito da Administração Pública. Os projetos foram remetidos em agosto de 2021 para a Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público. Há, passe o truísmo, uma rica discussão jurídica sobre a necessidade de regulamentação e previsão em Lei para autorizar a utilização dos dispute boards em contratos com a administração pública.
A maioria das câmaras arbitrais no Brasil já preveem em seus respectivos regulamentos a criação dos comitês. As previsões seguem a linha sugerida, com algumas adaptações, pelo Manual da Dispute Resolution Boards Foundation: “Guide to Best Pratices and Procedures”.
Entendemos, assim, que, apesar de se tratar de um instituto ainda incipiente em nosso sistema jurídico, a sua utilização, se realizada de maneira séria e correta, é verdadeiramente louvável. Dados da Dispute Resolution Boards Foundation apontam que 99% dos litígios apresentados aos comitês são finalizados no prazo de 90 dias; já 98% dos casos a solução adjudicada ou recomendação é tida como definitiva.
Conclui-se que os dispute boards tendem a ser cada vez mais utilizados em casos de maior complexidade, em especial nos que se relacionam com contratos de relações continuadas, diante da velocidade de sua resposta, da especialidade dos experts que tratarão do tema e do conhecimento profundo e prévio da relação jurídica. Cabe a nós advogados entendermos e estimularmos a utilização deste novo meio de desjudicialização de conflitos, a buscar cada vez mais proporcionar a pacificação dos conflitos por meio de uma decisão mais acertada para a relação jurídica em disputa.