Edição 69
Do paradoxo da regulamentação do instituto da união estável
30 de abril de 2006
Maria Regina Nova Desembargadora do TJRJ
Inserido no Código Civil Brasileiro, em vigor desde janeiro de 2003, o instituto da união estável passou a fazer parte do corpo organizador das disposições legais da sociedade civil, consolidada, de maneira pragmática, essa forma de família no nosso ordenamento jurídico.
Considerando-se o lapso temporal da vigência da referida disposição normativa, já se mostra possível proceder a uma análise de sua conseqüência no campo social e jurídico, destacando os conflitos advindos da regulamentação desse tipo de união, surgida e estabelecida de maneira absolutamente livre, desprovida, portanto, de qualquer formalidade.
Com efeito, a normatização estabelecida na Lei Civil para balizar a existência de uma relação que tem como opção o desejo de um outro tipo de conjugalidade, afastado daquele preestabelecido pelo Estado, acabou, naturalmente, por esbarrar em contradições. Afinal, é o Estado adentrando num espaço do não instituído por sua própria natureza.
Se por um lado, é certo que o reconhecimento do Estado a esse tipo de união mostrava-se necessário, sua regulamentação, entretanto, revela-se contestável.
Afinal, passou-se a questionar se é justo impor ao Estado regras de conduta para um tipo de relação que tem como essência exatamente não estar sob a égide das normas legais.
Vislumbra-se, na regulamentação da união independente, uma tendência moralista (equivocada) do Estado, como se não conseguisse aceitá-la como uma forma de família, deixando implícito o desejo de resgatá-la da “imoralidade”.
E aí reside o excesso e a contradição, criando um paradoxo inerente à essência do tema, que, repita-se, buscava a proteção do Estado, mas não parece comportar uma rígida regulamentação que acabou por tornar a união livre símile ao ato formal do casamento civil.
DA ORIGEM DO TEXTO NORMATIVO
Primeiramente, relembre-se que o texto normativo foi objeto de projeto datado de 1975, e que, por isso, revelou-se significativamente defasado diante da própria e natural evolução dos costumes da nossa sociedade.
Desse modo, sua regulamentação acabou efetivada com embasamento em situações já bastante ultrapassadas, inobstante todas as alterações procedidas, não se mostrando em sintonia com a realidade atual diante da dinâmica da vida moderna.
Analisando-se a regulamentação da união estável pelo aspecto legal, pondera-se o fato de somente ter sido ela efetivada quando já instituído o divórcio sem restrições no Brasil. Afinal, o reconhecimento, de forma ordenada desse tipo de união, mostrava-se necessário quando eram os conviventes impedidos de casarem-se por força da impossibilidade de desfazer-se, legalmente, o vínculo do matrimônio. Nesses casos, muitas injustiças eram sem dúvida cometidas, pois era inevitável a existência de relacionamentos entre pessoas que conviviam afetivamente ostentando uma comunhão de vida com a efetiva intenção de constituir uma família, mas que não podiam concretizar o desejo, presos que estavam ao liame do matrimônio anterior, já, de fato, desfeito.
DA EVOLUÇÃO DAS RELAÇÕES AFETIVAS INFORMAIS
Fazendo-se um breve retrospecto a respeito das relações afetivas não cobertas pelo manto do ato oficial do casamento, é de ser lembrado que constituem elas uma instituição jurídica já bastante antiga, remontando à história da Grécia antiga.
No Direito romano, o concubinato passou a ser considerado como um “casamento inferior”, qualificado de “2º grau”, já contando, entretanto, mesmo que de maneira acanhada, com o reconhecimento do Estado.
Na realidade, embora freqüente a existência de relações estabelecidas sem formalidades desde aquela época, esse tipo de união afetiva era vista como uma “relação desonesta”, desprovida, portanto, de consideração.
Com a evolução dos costumes, e a conseqüente alteração dos valores basilares da vida em sociedade, passou-se a olhar a relação informal sob uma ótica mais respeitosa.
Destaque-se que não se está aqui referendando o concubinato adulterino, instituição mantida até os tempos atuais e normatizada no Código Civil brasileiro como qualificação das relações constituídas com pessoa casada de direito e de fato, geradora, porém, de efeitos patrimoniais pela sociedade efetivamente celebrada. A proteção que se requer do Estado é, assim, para o “concubinato” não adulterino pelo princípio da monogamia ordenador das relações afetivas no Brasil.
A denominação “união estável”, afinal empregada para as relações tidas como honestas, surgiu, por isso, plenamente justificado pela necessidade de expurgar-se a carga negativa, pejorativa e, portanto, preconceituosa que o termo concubinato carregava.
A união estável se caracteriza, enfim, como o concubinato não adulterino.
DA REGULAMENTAÇÃO LEGAL
A primeira disposição normativa sobre esse tipo de relação informal foi elaborada na França em 1912, considerada, por isso, como “a pátria do direito concubinário”.
No Brasil, o reconhecimento legal da união estável como entidade familiar, ocorreu com a Constituição Federal de 1988, após, é certo, já ter o Supremo Tribunal Federal, através das Súmulas 380 e 382 (que já estabeleciam direitos para a concubina), plantado o esteio para a evolução desse instituto. Como entidade familiar, a questão foi, então, transportada do campo do Direito das Obrigações para o Direito de Família.
A Constituição Federal de 1988 já encontrou a questão bastante maturada pelas decisões jurisprudenciais proferidas a respeito, como acontece, em geral, com a criação de um sistema de relações jurídicas.
Em conseqüência, surgiram as disposições específicas para a regulamentação do assunto, o que foi feito em primeiro lugar, com o advento da Lei 8.971 em 1994 e, posteriormente, com a Lei 9.278 de 1996.
Afinal, é, sem dúvida, sobre as vigas mestras da Constituição Federal que repousa a estrutura do ordenamento jurídico. Porém, também é certo que, enquanto não chamadas a atuar na vida cotidiana através dos instrumentos processuais, as normas constitucionais permanecem numa região periférica.
Comparando-se a norma legal elaborada em 1994, de forma bastante acanhada, ao Código Civil atual, verifica-se o quanto expressiva foi a evolução dessa matéria no sentido de equipará-la ao instituto do casamento, tornando-a, afinal, uma união cravada de direitos e deveres, ou seja, acabou-se formalizando uma união estabelecida, por opção, afastada de convenções.
DA INSERÇÃO DO TEMA NO CÓDIGO CIVIL ATUAL
O Código Civil atual, dedicando um título ao instituto da união estável como entidade familiar, incorporou-o ao livro do “Direito de Família”(Livro IV) – composto dos artigos 1723 a 1727, consolidando, repita-se, esse tipo de família no nosso ordenamento jurídico.
Artigo 1723:
“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
Do conceito acima transcrito, extrai-se, sem o menor esforço, a absoluta vulnerabilidade a que estão expostos os parceiros que mantêm uma união afetiva informal. Com efeito, a princípio, vislumbra-se um limiar bastante estreito entre essa forma de união e o relacionamento afetivo qualificado de namoro nos dias atuais, pois esse tipo de relacionamento também pode caracterizar-se por uma “relação pública, contínua, duradoura”, mantendo-se os companheiros leais um ao outro e terem a pretensão de, “um dia”, constituir uma família.
Por outro lado, constata-se que a caracterização da união estável ficou restrita ao julgamento do subjetivo valor da “intenção” das partes, o que se revela extraordinariamente frágil diante dos rígidos direitos e obrigações estabelecidos pela lei, que, paradoxalmente, tornou-a semelhante ao casamento civil.
No § 1º do referido artigo, o Código Civil, mantendo o conceito instituído na lei 9.278/1996, estendeu, expressamente, o reconhecimento legal da união estável para a relação entre os separados de fato (situação já considerada através de decisões jurisprudenciais).
No seu artigo 1724, consolidou a Lei Civil a imposição de obediência dos companheiros aos deveres de respeito e assistência, guarda, sustento e educação dos filhos, ampliando-os com a inserção do termo lealdade, o que é interpretado, por analogia ao casamento, como dever de fidelidade (com efeito na assistência alimentar), pois não se admite, como união estável, a relação promíscua.
E, na esteira da evolução das decisões jurisprudenciais, instituiu a lei um regime de bens para a união estável – o da comunhão parcial de bens – artigo 1725, que compreende a divisão de aquestos, ou seja, dos bens adquiridos onerosamente durante a convivência (equiparando-se ainda mais essa relação à instituição do casamento).
A questão dos bens, assim, não se refere mais à presunção do direito à comunhão, pois não se questiona o esforço comum dos conviventes na aquisição do patrimônio a ser considerado partilhável (aplicando-se, é certo, as exceções estabelecidas para o ato civil da união legal).
Também à similitude do casamento (pacto ante-nupcial), restou mantida a ressalva da possibilidade de convenção entre as partes, agora através de contrato escrito, dispondo de forma diversa sobre a questão patrimonial (“pacto da união estável”).
Consolidou a Lei Civil a facilitação para a conversão da união “livre” em casamento através da disposição contida no artigo 1726, (fazendo-se uso de prova testemunhal, com dispensa de proclamas).
E, por fim, como já mencionado, o Código Civil acabou por diferenciar, expressamente, o concubinato da união estável, normatizando aquele tipo de relacionamento através da norma inscrita no artigo 1727, como relações adulterinas: estabelecidas entre homens e mulheres impedidos de contraírem matrimônio.
Não restou estabelecido o dever de coabitação;
Não exigiu a norma legal, para seu conceito, a existência de prole;
Não inseriu a Lei dispositivo exigindo um prazo mínimo de convivência, ficando de vez abandonado o critério temporal previsto na Lei 8.971 de 1994;
Primordiou, a Lei, a intenção dos conviventes.
O Código Civil assemelhou a situação do companheiro também no campo do Direito sucessório, previdenciário, no processo de adoção, submetendo os que convivem de forma “informal” à quase todos os preceitos legais instituídos para o cônjuge.
DA EVOLUÇÃO DO INSTITUTO DA UNIÃO ESTÁVEL
Traçando-se um paralelo entre o regramento instituído na Carta Magna e os estabelecidos na Lei Civil, constata-se, insofismavelmente, sua evolução no sentido de estender à união estável, repita-se, a formalidade do ato civil do casamento.
A união afetiva acabou, assim, eivada por normas, que a acompanham, conseqüentemente, até o momento de sua dissolução diante do comprometimento com as severas disposições que traçam seus contornos e limites, a ponto de alcançar, a Lei, a presunção da vontade dos que mantêm esse tipo de relação.
Do conceito da união estável preconizado no Código Civil extrai-se, sem esforço, a vulnerabilidade a que ficaram expostos os conviventes no Direito brasileiro, restringindo o Estado um dos princípios fundamentais do direito individual, ao conceder ao Judiciário o poder de interferir na liberdade de ação do sujeito, avaliando seus desejos e delimitando um modo de agir dentro de um valor absolutamente subjetivo, mostrando-se, por isso, premente a necessidade de normas complementares, de modo a proteger e garantir ao indivíduo seu direito constitucional de livre arbítrio, certamente que no sentido honesto da expressão.
DA AUSTERA REGULAMENTAÇÃO ESTABELECIDA DA CONSEQUENTE EXTINÇÃO DAS UNIÕES INFORMALMENTE ESTABELECIDAS
Analisando-se os efeitos da regulamentação da união estável, conclui-se, impositivamente, que, da maneira como acabou instituída, representou, sem dúvida, um paradoxo. Afinal, a característica básica desse tipo de união é exatamente a de fugir das solenidades, sendo certo que, após a instituição do divórcio livre no Brasil, as pessoas só não se casam se não desejarem formalizar a relação.
Na realidade, testifica-se que, na prática, houve um comprometimento das relações afetivas informais diante do receio de verem os conviventes sua vontade, sua liberdade de sentimento, delimitada, subjugada a austeros direitos e deveres, aos quais impunham eles resistência.
Afinal, não parece ser mais permitido estabelecer-se uma simples união afetiva de forma pública, duradoura, leal, afastada dos pragmas do casamento civil.
E, daí, eclodiu, conseqüentemente, a expressiva procura de clientes aos escritórios de advocacia temerosos com as conseqüências que possam advir de relacionamentos estabelecidos, por natureza, diferente dos instituídos por Lei, onde não há a intenção de constituir uma família normatizada pelo Estado.
Na busca por orientação sobre a forma de descaracterizar a relação afetiva que se tornou notória, contínua e se estende por largo período, considerando-se o constrangimento que causa a imposição do contrato convencionando normas distintas das legalmente estabelecidas (pacto da união estável), não são poucos que concluem por ser mais seguro realizar-se um casamento, onde as regras já estão solidificadas e indene de dúvidas, do que viver um relacionamento cuja essência mostra-se absolutamente vulnerável à interpretação dos julgadores (não se olvidando, é certo, dos instrumentos probatórios).
Por parte dos que não pretendem formalizar a situação vivenciada, nem se submeterem ao regramento legal, surge, não raras vezes, o questionamento sobre a possibilidade de realizar-se um “pacto de namoro”! Diante da inexistência desse procedimento, muitos decidem por alterar o modus procedendi nas relações que se encontram na fase da experiência da paixão, pondo, por vezes, fim a uma afetividade que poderia tornar-se uma verdadeira comunhão de sentimentos!
Clama-se, por isso, pela urgente necessidade de normas complementares à Lei Civil, de modo a que, sem deixar o Estado de respeitar e proteger, quando se mostrar necessário, todas as relações afetivas estabelecidas de forma honesta, ressalvar as garantias dos que não pretendem viver o amor sob a ótica do sistema jurídico convencional, preservando, assim, o direito constitucional do indivíduo à liberdade de ação.
Conclui-se, de seu exame na prática, que o texto normativo caracterizador da união estável incorreu no equívoco de igualizar a relação afetiva estabelecida de forma livre e que assim pretendia se manter, à instituição do casamento.
Da maneira genérica como acabou sendo regulamentado o instituto da união estável, silogiza-se que houve uma indiscutível e expressa ingerência do Estado na liberdade de ação do sujeito, o que poderá provocar, presume-se, a extinção desse tipo de relação.
Mostra-se, portanto, inconteste, que a regulamentação da união livremente constituída, da forma consolidada na Lei Civil, está inibindo sobremaneira as relações informais, fazendo com que as pessoas se preocupem mais com a maneira “legal” de se relacionarem, do que com a essência do amor que deve nortear as uniões afetivas, conceituado pelo inesquecível Carlos Drumond de Andrade, como “a razão de ser”.