Edição

É o rabo que abana o cachorro

20 de dezembro de 2017

José Geraldo da Fonseca Desembargador do TRT 1ª Região

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Introdução

José Geraldo da Fonseca, Desembargador Federal do Trabalho no Rio de Janeiro

Certas “teses” jurídicas que leio por aí são tão nonsense quanto qualquer uma que quisesse provar que “é o rabo que abana o cachorro”. Antes mesmo de viger, a “reforma trabalhista” trazida pela L.no 13.467/2017 foi alvo do fogo cruzado de quem era a favor ou contra a mudança. Tinha gente que sabia do que estava falando e gente que falava pelos cotovelos apenas para sair bem nas selfies e vender livros de auto-ajuda jurídica, desses que prometem ensinar aquilo que nem mesmo os seus autores sabem. Juízes, advogados, professores e estudiosos de todos os credos reuniram-se em congressos pagos para dizer que não cumpririam a lei ou que somente iriam cumpri-la depois de interpretá-la segundo “princípios universais do direito do trabalho” coados na peneira fina da sua própria maneira de ver o mundo. Um punhado de “enunciados” de óbvia inutilidade foi escrito no calor desses debates ocos, como se o mundo do trabalho prestasse alguma atenção no que essas pessoas diziam.

Tudo era, ao fim, um pretensioso exercício de premonição e de soberba jurídica.

Pois bem.

Três dias depois da entrada em vigor da L.no13.467, o próprio governo editou a MP no 808, por meio da qual pretendeu consertar os desvãos da “reforma” ou acomodar interesses de ocasião de quem o ajudara a salvar o pescoço e livrar-se das flechadas do Janot.

Agora que todos já gozaram dos seus “quinze minutos de fama”, outra jihad parece estar prestes a incendiar a discussão. Todos os que supõem conhecer um pingo de exegese já buscam a mídia para dizer se a lei nova se aplica às ações ajuizadas anteriormente à sua entrada em vigor ou se somente alcança as ações aforadas depois de sua vigência.

É disso que venho falar.

Quando uma lei entra em vigor?
O art.1o do DL. no 4.657/1942 diz que, “salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”. O §1o do art.8o da LC. no 95/1998 diz que “a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação integral”.

Essa é a regra geral.

O art.6o da L.no 13.467/2017 diz que a reforma entraria em vigor depois de decorridos cento e vinte dias de sua publicação. Como foi publicada em 14/7/2017, uma sexta-feira, entrou em vigor em 11/11/2017, um sábado, porque a contagem do prazo começou em 14/7/2017 e terminou em 10/7/2017 (sexta-feira). Assim é porque o art.8o, §1o da LC no 95/1998 diz que toda lei com vacatio entra em vigor no dia seguinte ao término da vacância.

O §3o do art.1o do DL. no 4.657/1942 diz que se houver nova publicação do texto da lei, para simples correção, antes que a lei tenha entrado em vigor, o prazo de 45 dias começará a correr da nova publicação. Como a MP no 808/2017 foi publicada quando a L.no 13.467/2017 já estava em vigor, o prazo de 120 dias fica mantido.

O §4o do art.2o do DL. no 4.657/1942 diz que as correções a texto de lei já em vigor se consideram lei nova. Nesse sentido, a MP no 808/2017 é lei nova. 

Por fim, o §1o do art.2o do DL. no 4.657/1942 diz que a “lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. A L. no 13.467/2017 revogou a CLT nos pontos em que o disse expressamente e naqueles em que se mostrar incompatível com ela ou regular inteiramente a mesma matéria.

O que é uma “lei processual?
Ouço dizerem aqui e ali que as “leis processuais” se aplicam aos processos em curso e têm, portanto, efeito retroativo.

Onde essas pessoas leem isso?
Separemos o joio porque há lamentável confusão de conceitos. Que a lei processual se aplica aos processos em curso me parece óbvio porque toda lei, material ou processual, tem efeito imediato e geral. Efeito imediato e geral significa que a lei está vigendo desde o momento em que foi publicada, tem eficácia cogente e se aplica a todos. Mas isso não quer dizer que seja retroativa.

O que é, afinal, uma “lei processual”?
Salvatore Satta, ressalvando, embora, que se trata de uma “tautologia sublime”, diz que “…a regra processual é aquela do exercício da jurisdição civil; e uma vez que esta se pratica através do processo, norma processual é aquela reguladora do processo”.

Aqui, pois, o conceito de constrangedora obviedade: lei processual é a que regula o processo. E para que não sobre dúvida sobre o que se deve entender por “lei processual”, Satta adverte que deve porém se tratar “de lei reguladora do processo e não daquela que rege a relação substancial, ainda que influa sobre o processo”. Ora, a CLT não é um código de processo, mas uma consolidação de leis. O que nela se contém de regras processuais é muito pouco. Ainda assim, tomado por empréstimo à L.no 6.830/80, por autorização expressa do art.889. A L.no 13.467/2017 não regula processo algum, mas o direito material trabalhista. Aplica-se ao processo do trabalho, desde logo, não porque seja uma “lei processual”, mas porque é lei, e toda lei publicada vige imediatamente e toma os processos no estado em se encontrem no momento da sua publicação.

Daí a retroagir vai distância grande.

A lei nova aplica-se aos processos antigos?
É princípio fundamental que a lei estabelece sempre ad futuram, e como o processo se realiza no tempo, uma lei nova pode colhê-lo enquanto ainda tramita. Daí dizer-se que o processo é regulado pela lei nova tão logo essa lei nova entre em vigor. Tanto quanto as leis materiais, as leis ditas processuais não têm efeito retroativo. Simplesmente apanham o processo no estado em que estiver, no momento de sua entrada em vigor, mas somente regulam os atos processuais dali para a frente. Os atos processuais já praticados antes que a lei nova entre em vigor são mantidos incólumes em todos os seus efeitos e se regram pelas leis que vigiam quando esses atos foram praticados. Sempre foi assim e sempre será assim. Apenas os atos posteriores à entrada em vigor da nova lei é que serão regulados por ela. Em regra, portanto, a lei nova aplica-se, apenas, aos processos novos, assim entendidos aqueles ajuizados após a sua entrada em vigor. Mas é possível que uma lei nova alcance processos antigos, ajuizados antes de sua vigência se disser expressamente que o faz e se respeitar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. O art.6o do DL. no 4.657/42, que define quando e em quais situações a lei nova pode retroagir, explica cada um desses conceitos. Por ali se sabe que ato jurídico perfeito é aquele já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou; consideram-se adquiridos os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, bem assim aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo ou condição pré-estabelecida inalterável pela vontade de outrem; e, por fim, que coisa julgada é o efeito de uma decisão judicial contra a qual não já não caiba nenhum recurso. sses são, portanto, os limites da aplicação retroativa da lei nova.

Direito intertemporal
Como regra, prevalece no nosso ordenamento jurídico a máxima “tempus regit actum”, isto é, o tempo rege o ato. Como é da natureza da leis que disponham para o futuro, apenas excepcionalmente podem retroagir para apanhar situações jurídicas nascidas antes de sua entrada em vigor. Saber se uma lei nova aplica-se ou não aos processos nascidos antes de sua vigência, ou quais atos dos processos ainda em tramitação são regulados por ela ou pela lei antiga, é uma questão de direito intertemporal. A esse fenômeno dá-se o nome de “conflito entre leis no tempo e no espaço”. Os conflitos entre leis no espaço são relativamente fáceis de resolver: como a lei é um ato de Estado para a disciplina da jurisdição, e jurisdição é um atributo da soberania, toda lei é territorial e, como regra, só vale nos limites (espaço) do território que a produziu. Já os conflitos de leis no tempo comportam alguma divagação útil. A doutrina costuma adotar três sistemas para resolver os problemas de direito intertemporal:

1o – Sistema da Unidade Processual;

2o – Sistema das Fases Processuais;

3o – Sistema do Isolamento dos Atos Processuais.

Conforme o primeiro sistema (unidade processual), o processo é um todo, um corpo único encadeado para um único fim, que é a sentença sobre o mérito. Assim, ainda que em curso, a lei nova apanha o processo nesse estado e passa a disciplinar as suas fases, tornando ineficazes todos os atos praticados na constância da lei antiga. Para o segundo sistema (fases processuais) o processo, embora uno, é uma soma de fases autônomas: postulatória; probatória; decisória e recursal. Cada uma dessas fases constitui-se de um conjunto inseparável de atos que, ao fim, formarão o processo como instrumento da jurisdição. Por fim, para o último sistema (isolamento dos atos processuais), ainda que admitindo a evidência de que o processo é uma unidade que busca um fim (sentença), esses conjuntos de atos encadeados podem ser considerados isoladamente para a aplicação da lei nova. Para esse sistema, como a lei nova tem efeito imediato e geral e apanha o processo em seu desenvolvimento, mas respeita a eficácia e os efeitos dos atos já praticados na constância da lei velha, apenas os atos processuais que ainda tiverem de ser praticados serão alcançados pela disciplina da lei nova.

O direito brasileiro adota os sistemas de isolamento dos atos processuais e da irretroatividade das leis e a regra “tempus regit actum”.

Conclusões
1a Como toda lei regularmente publicada, a L.no 13.467/2017 tem eficácia imediata e geral e se aplica aos processos em curso, mas todos os atos processuais praticados antes de sua entrada em vigor serão regulados pela legislação anterior.

2o A L.no 13.467/2017 não é processual, não tem efeito retroativo e se aplica apenas aos processos novos. Poderia, eventualmente, aplicar-se aos processos ajuizados anteriormente à sua vigência se o dissesse expressamente e, além disso, se preservasse o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Ato jurídico perfeito é aquele já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou; adquiridos são os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, pode exercer, bem assim aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo ou condição pré-estabelecida inalterável pela vontade de outrem; coisa julgada é a decisão judicial contra a qual já não cabe nenhum recurso.

3o No processo do trabalho, o fiel da balança é a data da sentença. Se a ação tiver sido proposta antes da edição da lei nova e todos os pedidos forem anteriores à sua vigência (11/11/2017), não importa quando a sentença foi prolatada. Todos os atos processuais relevantes já foram praticados pelas partes e resta apenas o ato do juiz (sentenciar).

4o Na sentença, o juiz não poderá aplicar a lei nova para resolver lide estabilizada antes da sua entrada em vigor. Se o juiz publicar a sentença depois que a L.no 13.467/2017 entrou em vigor e a parte praticar contra ela qualquer ato em que a sua responsabilidade processual seja punível (embargos de declaração protelatórios, recurso ordinário abusivo, agravos desnecessários ou protelatórios etc), o juiz poderá aplicar a lei nova apenas em relação àqueles atos processuais procrastinatórios ou desleais praticados após a sua edição.