Compromisso com a Justiça

14 de fevereiro de 2013

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Entrevista com o ministro do STF, Teori Zavasck

Teori Zavascki, o mais novo ministro a tomar posse no Supremo Tribunal Federal, falou com exclusividade à revista Justiça & Cidadania, abordando temas como gestão dos tribunais, a reforma do Poder Judiciário e dos Códigos legais.

Empossado em 29 de novembro do ano passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki foi indicado pela presidente da República, Dilma Roussef, para assumir a vaga do ministro Cezar Peluso, que se aposentou compulsoriamente em agosto, quando completou 70 anos.

O catarinense, nascido em Faxinal dos Guedes, pequena cidade com cerca de onze mil habitantes, obteve o bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também fez mestrado e doutorado em Direito Processual Civil. Começou a atuar na profissão um ano antes da formatura, como advogado concursado do Banco Central. De 1991 a 1995 foi juiz do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RS) e presidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no biênio 2001-2003.

Casado e pai de três filhos, Zavascki também atua como professor na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Conhecido por possuir um perfil discreto e técnico, o ministro é especializado em Direito Tributário, tema sobre o qual tem livros publicados. Desde 2003 até ser empossado no STF, o magistrado integrava a Primeira Turma da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Revista Justiça & Cidadania – Quais são os desafios que o novo cargo no Supremo Tribunal Federal agrega ao seu trabalho?

Teori Zavascki – O desafio que se agrega à atividade até agora exercida como juiz do STJ – também de alta responsabilidade, como o é qualquer função na magistratura – é próprio de quem integra a mais alta Corte de Justiça do País, especialmente o que decorre das atribuições que dizem respeito ao poder-dever de dar a palavra final sobre a interpretação e a aplicação das normas constitucionais e de exercer, como órgão de última instância judiciária, o controle da legitimidade jurídica dos atos administrativos e normativos emanados dos órgãos de cúpula dos demais poderes da União.

JC – A imprensa tem se referido ao senhor como um magistrado de “perfil mais técnico”. Em entrevista, o senhor também declarou que os colegas do STJ o viam como aquele que se preocupava com pequenos e mínimos detalhes, sempre os apontando nos processos. Qual o entendimento que faz do seu modo de julgar?

TZ – Vivemos, nas últimas décadas, uma realidade nova, no que se refere à natureza das demandas judiciais. Além das causas de características tipicamente individuais, fundadas em circunstâncias de fato bem diferenciadas – a demandarem exame e decisão também individualizadas e praticamente “artesanais” –, o Judi­ciário tem recebido uma pletora de demandas que se costuma denominar de repetitivas, porque reproduzem, em sua essência, as mesmas questões jurídicas fundadas em situações de fato semelhantes. O que se exige dos julgadores, hoje, é dar atenção às peculiaridades de casos que se situam na zona intermediária dessas duas grandes classes de demandas, a fim de não atribuir a elas um indevido tratamento padrão, o que pode gerar grandes injustiças.

JC – O Supremo Tribunal Federal é também um órgão político? Quais seriam os limites dessa atuação política?

TZ – Depende do que se entende por “atuação política”. Juízos políticos, em sentido mais comum, são juízos de conveniência e oportunidade. São juízos próprios dos órgãos do Poder Executivo, na prática dos atos chamados discricionários, e dos órgãos legislativos, quanto à eleição das áreas de interesse a serem normatizadas e aos valores que merecem sagração no direito positivo. A atividade jurisdicional não tem como essência editar atos discricionários e nem criar normas à base de juízos dessa natureza. Consiste, sim, na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, que não comporta a alternativa de deixar de aplicar o direito por razões de conveniência ou oportunidade. Somente as normas constitucionalmente ilegítimas e assim reconhecidas é que podem e devem ser desprezadas pelo juiz. Sob esse aspecto, portanto, o Judiciário não exerce atuação política. Todavia, as normas jurídicas são, como antes referido, produto de juízos políticos. Interpretá-las e aplicá-las pode envolver, por isso mesmo, em maior ou menor escala, a necessidade de identificar o sentido e o alcance dos valores jurídicos nelas politicamente consagrados e com base nessa identificação julgar as controvérsias judicializadas. Esse é que se pode considerar o conteúdo político da atividade jurisdicional.

JC – Qual sua opinião sobre a quantidade de Emendas que a Constituição Federal já recebeu e que estão tramitando no Congresso?

TZ – Nossa Constituição tem, como é de conhecimento geral, a característica de um diploma analítico e com disciplina de matérias das mais variadas áreas, institucional, social, política, econômica, adminis­trativa, civil, penal, disciplinar. Essa opção do legislador constituinte traz como subproduto, quase que necessário, a indispensabilidade de uma constante atividade revisional, destinada a modificar dispositivos incompatíveis com a natural evolução dos fatos e da realidade social.

JC – Para muitas pessoas, o Judiciário é tido como um órgão moroso e há também certa desconfiança em relação à eficiência deste. No entanto, há alguns anos, especialmente depois da Emenda Constitucional no 45, o Judiciário vem se tornando mais e mais acessível. Afinal, qual é a realidade da instituição “Justiça” no Brasil?

TZ – A morosidade do Poder Judiciário é, realmente, a sua deficiência mais visível e com toda a razão criticada, até porque a duração razoável do processo é direito constitucional dos litigantes. Tem havido um constante esforço, no plano normativo, para dotar o sistema de mecanismos de agilização da atividade judicial. Exemplo significativo são as normas editadas nos últimos tempos no sentido de dar eficácia vinculante ou, pelo menos, altamente persuasiva, às decisões dos tribunais superiores: as súmulas vinculantes, a repercussão geral nos recursos extraordinários perante o STF e o julgamento de recursos especiais repetitivos, no STJ. A potencial eficácia desses instrumentos ainda não foi inteiramente exaurida e, nesse ponto, cumpre a esses tribunais um papel estratégico de alta relevância que não pode ser menosprezado. De qualquer modo, é preciso registrar que há uma demora que é natural e ineliminável na solução dos litígios, já que está sujeita a processo formado em contraditório, em que se asseguram amplos meios de defesa e inúmeros recursos às partes litigantes. Não se pode deixar de reconhecer, quanto a isso, uma certa contradição no discurso de quem reclama agilidade extrema na solução dos litígios, mas não admite medidas restritivas à interposição de recursos.

JC – Qual sua opinião sobre a súmula vinculante, ela restringe a autonomia dos magistrados de 1ª instância?

TZ – As súmulas vinculantes nada mais são do que a resposta dada pelo Supremo Tribunal Federal a certas questões constitucionais reiteradamente judicializadas, respostas essas que, obviamente, tem como parâmetro o ordenamento jurídico.  Ora, o que restringe a autonomia do juiz é esse ordenamento, em face do qual os órgãos judiciais não têm liberdade de atendê-lo, ou não. As súmulas vinculantes, produto da interpretação dada às normas pelo órgão com atribuição constitucional de dar a palavra final a respeito, exercem, nesse aspecto, uma importante função uniformizadora e agilizadora da atividade jurisdicional.

JC – Quais são, sob seu ponto de vista, os problemas que demandam mais ágil solução e o que pode ser feito para, por exemplo, reduzir os volumes de processos que, ano após ano, chegam aos tribunais?

TZ – Há, certamente, um vasto número de problemas decorrentes da ineficácia gerencial dos órgãos do Poder Judiciário, aferrados, muitas vezes, a práticas obsoletas que são elevadas à categoria de dogmas inamovíveis. O Conselho Nacional de Justiça exerce, nesse aspecto, um papel estratégico fundamental, tendente a identificar esses problemas, cuja solução pode ser encontrada no âmbito do próprio Judiciário, em muitos casos mediante simples mudança de padrões culturais e sem grandes dispêndios financeiros. No que se refere especificamente aos tribunais superiores, é indispensável que sejam promovidas medidas destinadas a exaurir o potencial de eficácia dos instrumentos já existentes, de modo especial no julgamento dos recursos extraordinários com repercussão geral e dos recursos especiais repetitivos. A eficácia vinculante e expansiva desses julgamentos contribui decisivamente para a redução do número de recursos e mesmo de novas demandas judiciais.

JC – O senhor acredita ser necessário o aumento do número de magistrados nas cortes superiores?

TZ – A natureza constitucional dos recursos extraor­dinários (o especial, para o STJ e o extraordinário, para o STF) deve ser devidamente identificada. Não se pode transformar esses recursos em corriqueiros instrumentos de revisão das decisões dos tribunais estaduais e regionais, sob pena de não podermos superar a sobrecarga dos tribunais superiores, a não ser com um significativo aumento do número de seus juízes. A clara opção do constituinte brasileiro foi a de conferir ao STF e ao STJ, nos respectivos campos de competências, uma função uniformizadora da interpretação das normas de direito, função essa que certamente comporta mecanismos – que, aliás, já existem, mas que devem ser aprofundados, se for o caso – de filtragem dos temas que podem ser submetidos à sua apreciação.

JC – Em entrevista recente o senhor teria declarado ser “a favor do ativismo do Judiciário, quando o Legislativo deixar lacunas”. De que maneira o senhor acredita que este princípio poderia ser aplicado na realidade atual do País?

TZ – Todos sabemos, até porque é norma do próprio Código de Processo Civil, que o juiz não pode deixar de decidir alegando lacuna ou obscuridade na lei, cabendo-lhe, nesses casos, formular solução segundo a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Trata-se de hipótese típica de intervenção judicial formulando lei para o caso concreto. Por outro lado, a Constituição de 1988 instituiu mecanismos específicos que permitem, havendo omissão do legislador, reclamar do Judiciário o preenchimento de lacunas normativas. É o caso da ação de inconstitucionalidade por omissão e do mandado de injunção.

JC – O intervencionismo judicial e o aumento da judicialização dos conflitos são a prova de que estamos vivendo um momento de casuísmo jurídico?

TZ – A intervenção do Judiciário, que não é espontânea, mas invariavelmente provocada, será legítima quando observar o ordenamento jurídico e, na sua falta, mediante a colmatação dessas lacunas pelo modo previsto nesse ordenamento. O grande número de conflitos reflete um momento da realidade nacional que não pode ser atribuída a pretenso casuísmo jurídico ilegítimo.

JC – Os números excessivos de ADINs não demonstram que existem muitos vícios na origem da Constituição Federal?

TZ – O expressivo número de Ações Diretas de Inconstitucionalidade pode ser atribuído ao natural incentivo a essas ações propiciado pela Constituição de 1988, que ampliou significativamente o rol dos legitimados a propô-las e ampliou e aperfeiçoou os instrumentos de controle concentrado de constitucionalidade. Não há, no meu entender, uma relação necessária entre aumento do número de ADINs ajuizadas e aumento do número de normas inconstitucionais.

JC – É verdadeiro o conceito de que não existe direito adquirido frente à Constituição Federal?

TZ – Esse é um tema jurídico com aguda divergência de opiniões doutrinárias e ainda não definitivamente resolvido pela jurisprudência. Manifestei meu ponto de vista a respeito em diversas oportunidades, especialmente em plano doutrinário, como, por exemplo, na segunda edição do meu livro “Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional”. Defendi, no capítulo 5, que, observadas as cláusulas pétreas da Constituição, são legítimas as emendas constitucionais com efeitos retroativos, que podem alcançar, eventualmente, direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos e coisa julgada. O tema, como disse, é polêmico, mas emendas constitucionais dessa natureza já foram editadas em várias oportunidades, conforme registrei naquele mesmo estudo doutrinário.

JC – O Constitucionalismo Social, nos termos da Constituição Federal, é uma exigência ou uma utopia?

TZ – A implementação dos princípios e garantias constitucionais que consagram os chamados direitos fundamentais sociais, que envolvem prestações positivas por parte do Estado na área da saúde, da educação, da habitação, do emprego e assim por diante, é o grande desafio enfrentado no atual constitucionalismo, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Tanto nos tratados internacionais quanto nas Constituições nacionais editadas nas últimas décadas em vários países, há um extenso catálogo de normas dessa natureza, cuja efetiva e integral aplicação, todavia, não deixa de representar empreitada quase utópica, mas que deve ser enfrentada e cumprida segundo as forças de cada nação.

JC – Existe efetivamente entre nós uma crise da legalidade e da segurança jurídica?

TZ – Fenômenos de descumprimento da lei e, consequentemente, de  comprometimento da segurança jurídica, apesar de indesejáveis, não podem ser descartados no horizonte das relações sociais, nem representam, necessariamente, situações de crises alarmantes. O importante é que, na ocorrência dessas situações, os poderes constituídos, inclusive o Judiciário, estejam habilitados a atuar sua força controladora.

JC – A Constituição de 1988, no seu entender, tem sido um obstáculo à governabilidade democrática e à efetividade das políticas públicas?

TZ – Embora estejamos muito distantes, ainda, de darmos plena concretude às inúmeras promessas do nosso Constituinte de 1988 – muitas delas, como já se disse, de difícil efetivação porque subordinadas aos limites das forças do Estado e da sociedade –, isso não significa que a Constituição seja empecilho à governabilidade. Seus 25 anos de vigência demonstram o contrário.

JC – O ativismo judicial pode gerar uma crise na independência e harmonia entre os poderes constituídos?

TZ – O exercício pleno das atribuições conferidas ao Poder Judiciário pela Constituição – inclusive, quando for o caso, para suprir eventuais lacunas normativas – de modo algum compromete a harmonia ou a independência dos poderes.

JC – O senhor é favorável a uma revisão constitucional ou uma nova constituinte?

TZ – Conforme já referido, a periódica intervenção revisora do Constituinte é um fenômeno que não pode ser eliminado de nosso sistema, dada a natureza analítica da Constituição vigente. É importante, todavia, que esse sistema constitucional seja mantido na sua essência, naquilo que ele tem de mais sagrado em termos de valores democráticos e de garantia dos cidadãos. Quanto aos demais aspectos, periféricos e circunstanciais, tem sido eficaz a atividade do Constituinte derivado, o que, pelo menos num horizonte de futuro próximo, certamente afasta a necessidade de nova constituinte.

JC – Até junho deste ano, deverão ser votadas pelo Congresso as reformas de seis Códigos legais brasileiros. Qual a avaliação que o senhor faz da necessidade dessas mudanças, especialmente em relação ao Código Penal?

TZ – Há um reconhecimento mais ou menos universal nos meios jurídicos especializados quanto à necessidade de atualizar esse conjunto de normas codificadas, quase todas editadas num cenário social inteiramente diferente do atual. É o caso do Código Penal, que, apesar de ter sido modificado substancialmente em sua parte geral, comporta uma atualização em sua parte especial, ainda que seja para nela incorporar as inúmeras disposições normativas supervenientes, editas em leis ordinárias individuais.