O papel das mulheres no Judiciário

5 de outubro de 2004

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A sociedade teme sua metade, as mulheres? Todos somos diferentes, mas todos somos iguais. A Ciência, abrindo o livro da vida, assim constatou.

Quando o filósofo e economista britânico John Stuart Mill publicou, em 1869, a obra “A Sujeição das Mulheres”, sustentando a causa da igualdade dos gêneros, o tema veio à baila, após a noite que se seguiu à defesa de Platão de que meninos e meninas deveriam ser criados em pé de igualdade.

Dois mil anos se passaram entre as pregações de Platão e a defesa de Epicuro, sobre a igualdade dos sexos. Para não irmos muito longe, num tema apaixonante como o da história da cidadania feminina, vê-se que o século XIX se ofereceu como período de menor nível dos poderes e chances da emancipação feminina.

A literatura especializada noticia o perfil ideal do homem no século XIX, como alguém corajoso, pronto a tomar decisões, empreendedor, racional e preparado à vida pública, em oposição ao perfil feminino, que idealizava a mulher como dependente, recolhida ao lar, passiva, casta e vulnerável.

Nele ganhou popularidade o ideal da mulher circunscrita à atividade doméstica, cuidando do lar e da família, com perspectivas limitadas e quase anuladas, quanto ao seu próprio desenvolvimento político e social.

Nesse período, constata-se que, do ponto de vista democrático, a distribuição dos direitos reconhecidos ofereceu-se deficitária na sociedade mas, para as mulheres, em especial, estes se mostraram quase inalcançáveis.

Mas a opressão gera a reação e foi o século XIX que viu ganharem força o feminismo e a ação das mulheres em movimentos sociais.

Os novos códigos de leis, regulamentando a posição das mulheres, realçaram essa submissão e essa dependência, que eram tidas como naturais.

Ilustro com anotações do texto sobre “Igualdade e Especificidade”, de Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro, a seguinte nota de rodapé:

“Nas cidades  alemãs, antes do novo Código Civil Prussiano de 1794, as mulheres casadas podiam fazer negócios em seu próprio nome, mesmo contra os desejos de seu marido e todos os seus ganhos separados eram de sua propriedade; sob o novo Código, o marido tornou-se o guardião da esposa e dono de todas as propriedades. Sob a lei romana, que prevalecia no sul da França antes da Revolução Francesa, mulheres casadas tinham algumas capacidades legais; sob o Código Napoleônico de 1804 (o mesmo que consolidou muitos ganhos revolucionários para os homens), as mulheres perderam terreno e foram niveladas legalmente aos menores, loucos, criminosos e incompetentes.” (“História da Cidadania”, Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky – São Paulo: Ed. Contexto, 2003, p. 305).

Essa posição do Código de Napoleão, que este ano completa seu bicentenário, saudado como monumento jurídico, só foi alterada no começo do século XX (Lei de 10 de agosto de 1927).

Importante relatar que, até o último quartel do século XIX, poucas mulheres da classe trabalhadora, que tinham dupla carga de trabalho, podiam deixar de ganhar dinheiro, porque sua remuneração era essencial à sobrevivência da família, visto que o salário do marido, quase sempre, era insuficiente para sustentar essa mesma família.

Ainda assim, seus ganhos não passavam de metade até dois terços do que ganhava o homem.

O casamento, também, se oferecia como uma parceria de trabalho.

Mudou? Não.

Nas primeiras décadas do século XX, as mulheres continuaram ganhando bem menos do que os homens e aquele discurso de que elas deveriam estar nos lares, cumprindo seu papel de esposa e mãe respeitável, remanesceu.

Nessa etapa, grupos femininos reivindicavam mais fortemente que as mulheres tivessem os mesmos direitos políticos e civis que os homens e essas bandeiras se chamaram de “movimentos pelos direitos iguais”.

Aqui, impõem-se duas constatações: as mulheres se tornaram beneficiárias da conquista da cidadania, mas, nos momentos de ampliação de direitos e progressos democráticos, não foram contempladas na mesma medida que os homens.

O século XX foi chamado século das mulheres, posto que muitas de suas reivindicações restaram atendidas, embora a cidadania plena terá sempre de ser buscada.

De relevante, o acesso ao direito político de votar e ser votada, atendido, pontualmente, em 1869, no Estado de Wyoming, nos Estados Unidos, e, em 1913, nove dos Estados da Federação americana admitiam o voto feminino.

Louve-se, por seu avanço, a Nova Zelândia, que, em 1893, conferia às mulheres esse direito político, em âmbito nacional.

Em sentido oposto, demonstrando posição mais conservadora, a Espanha admitiu o voto feminino, com a República, em 1931, e a Itália, em 1945, após a derrocada do regime fascista.

No Brasil, as mulheres puderam votar a partir de 24 de fevereiro de 1932, quando se expediu o Decreto nº 21.076, instituidor do Código Eleitoral Brasileiro, cujo artigo 2º disciplinava ser eleitor maior de 21 anos, sem distinção de sexo. Em 03 de maio de 1933, na eleição à Assembléia Nacional Constituinte, a mulher brasileira, pela primeira vez, em âmbito nacional, votou e foi votada, cabendo à médica paulista Carlota Pereira de Queiroz, a primazia de ser eleita a primeira deputada brasileira.

Mas causa espécie que o voto feminino só tivesse sido aceito na Suíça em 1971, e, em Portugal, em 1976.

Esse esboço histórico não prescinde de uma incursão sobre as principais reivindicações das mulheres, na luta por seus direitos sociais, como o de receber salário por seu trabalho, escolher a profissão que deseja exercer e ganhar remuneração igual à dos homens, por trabalho igual.

Quanto à escolha da profissão, o Direito foi uma área de difícil acesso às mulheres. Na França, tornou-se necessária a emissão de uma lei para permitir às mulheres atuarem na advocacia.

Nos tempos que correm, é evidente a presença de mulheres em todos os níveis de ensino e de atividades profissionais, após uma trajetória de luta, para fazer valer os seus direitos.

Avançamos, a despeito da recomendação de Catão, o Antigo, que, em Roma, ao defender a Lei do Estado, declarou:

“Os nossos antepassados quiseram que as mulheres estivessem em poder dos pais, irmãos ou maridos. Lembrem-se de todas as leis pelas quais os nossos pais restringiram a liberdade das mulheres, pelas quais as submeteram ao poder dos homens. No momento em que elas se tornassem nossas iguais, tornar-se-iam nossas superiores” (apud “A Mulher e o Trabalho”, Sheila Lewenhak –  Lisboa : Editorial Presença, p. 93).

Cumprida essa etapa de rememoração, deparamo-nos com o fenômeno do questionamento da feminização da magistratura.

A magistratura estaria vivendo essa feminização, por causa do número de juízas ou porque a forma de distribuição de justiça, feita pelas mulheres, é diferente daquela realizada pelos homens?

Há muitas mulheres na Magistratura?

Alguns dados estatísticos merecem registro.

Nos Tribunais superiores, a proporção é a seguinte:

No Supremo Tribunal Federal, 01 (uma) Ministra em 11 (onze) cargos, ou seja, 90,9% do Colegiado é masculino.

No Superior Tribunal de Justiça, em 33 (trinta e três) cargos, 04 (quatro) são ocupados por mulheres, 12,5% do total.

No Tribunal Superior do Trabalho, 01 (um) dos 17 (dezessete) cargos de Ministro é ocupado por mulher, isto é, aproximadamente 6%.

O Superior Tribunal Militar e o Tribunal Superior Eleitoral não possuem mulheres em seus cargos.

Dispenso-me de uma averiguação mais profunda em relação aos Tribunais Regionais Federais, mas com respeito ao da 3ª Região, que integro, em 43 (quarenta e três) cargos, 18 (dezoito) são femininos, ou seja, 42,9%.

Quanto aos Tribunais de Justiça, o do Pará, com 30 (trinta) cargos, 21 (vinte e um) pertencem às mulheres, vale dizer, 70%.

E Roraima, Espírito Santo e Amapá não têm desembargadoras.

Em São Paulo, com 128 (cento e vinte e oito) desembargadores, ostenta, em seu Colegiado, a presença de 01 (uma) desembargadora, é falar, menos de 1%.

Há muito espaço a ocupar.

Sob outro prisma, questiona-se se as mulheres pensam e resolvem os conflitos jurídicos, a partir de uma lógica diferente da utilizada, tradicionalmente, pelos homens-juízes.

Ao que parece, não.

Voltemos ao perfil feminino, remodelado no século XIX, cujos traços foram suavizados no século XX, mas não de todo desfigurado, da mulher “do lar”, ligadas às atividades domésticas, responsável pelo equilíbrio da família, ainda que submetida à dupla jornada.

Desponta o conflito quando do ingresso feminino numa carreira pública, através de um concurso difícil, passando a ocupar, muitas vezes, o lugar central na família, a exigir uma postura compatível com seu prestígio social, autonomia e independência econômica e a limitação imposta pela tradição de que cuidar da casa, dos filhos e do marido sempre foi e continua ser uma tarefa das mulheres.

Tem-se revelado como aceito pela sociedade que, ao homem, é legítimo sacrificar a família pela carreira mas, para a mulher, isso é inadmissível.

A entrada na magistratura altera, significativamente, a vida conjugal das magistradas, sendo freqüentes as separações, posto que o cônjuge não compreende a extensão das novas responsabilidades que a mulher assumiu profissionalmente.

Depoimentos de juízas vêm demonstrando que, mesmo nos casos em que houve o auxílio do marido durante o concurso, a partir do momento da admissão na carreira, o cônjuge passou a repudiar a inserção profissional da mulher, sob a alegação de que, dentro da tradicional divisão do trabalho doméstico, a esposa deve permanecer em casa e dedicar-se aos filhos.

Revelam-se, em maridos de juízas, ciúme social pelo prestígio da mulher e ciúme financeiro, posto que seus ganhos passam a competir com os do cônjuge.

Nesse passo, conclua-se que existe, em muitos casos, embate entre os papéis de juíza, esposa e mãe.

Por que, a despeito dessa notória dificuldade, as mulheres ingressam na magistratura?

Perdoem-me os céticos, os descrentes, os incrédulos: creio na vocação. Vocação é chamado que vem de dentro do ser e de fora, do mundo. É o chamado para agir, para realizar a missão, para cumprir um papel na sociedade. Não basta possuir os conhecimentos que a vocação exige, mas é preciso sensibilidade para visualizar necessidades do mundo que nos cerca e buscar atendê-las.

Aquele que não atende a vocação, não encontrará felicidade e realização em seu trabalho.

E ser juiz não é um encargo, um ônus; é uma honra.

É bom que exista um período de estágio probatório, pois aquele que se equivocou, na escolha da magistratura, deve retomar sua busca e, se possível, seu encontro com a verdadeira vocação.

Sob o aspecto financeiro, reconheça-se, hoje, como ontem, que os baixos salários impedem que o homem, sozinho, desempenhe o papel de provedor da família.

De outra parte, a competição na advocacia e as dificuldades do mercado de trabalho tornam os concursos públicos atrativos e a magistratura é considerada, por homens e mulheres, como o “ápice da carreira”, uma vez que decidirão sobre a liberdade, o patrimônio e as relações inter-individuais.

Merece adição, nesses argumentos, a estabilidade financeira e profissional da magistratura.

A par desses pontos positivos, que chamam homens e mulheres a se tornarem juízes, há outros, nem tanto.

O juiz lida com conflitos humanos, que o mantém ligado nos problemas, não conseguindo separar o espaço do trabalho do da vida privada.

O magistrado padece de isolamento, com o intuito de preservar sua independência, não lhe sendo permitido falar sobre os casos pendentes de suas decisões, e essa solidão se exaspera quando se trata de juíza, porque a sociedade brasileira impõe à mulher normas bastante rígidas de comportamento.

Agregue-se a isso, o volume de trabalho do magistrado, superior ao das demais carreiras jurídicas, a exigirem conhecimento e responsabilidades menores.

Ainda assim, elas estão chegando ao Poder Judiciário, em número cada vez mais expressivo. E essa é uma boa nova!

Diante desse panorama, existe influência da variável gênero nos padrões decisórios, ou seja, juízas decidem diferentemente de juízes?

Aqui impende fazer uma afirmação: desfez-se o mito da neutralidade científica. Ninguém é neutro. A todo momento, valoramos e somos valorados. Há juiz imparcial e independente, exigências resultantes da junção dos predicamentos e vedações impostos à magistratura, pela Constituição, e legalmente regrados. Mas, também, é correto dizer-se que o magistrado usa a técnica jurídica para fundamentar sua opção política, não partidária. E o primeiro valor que deverá resguardar será a dignidade da pessoa humana.

Vitoriosos em certame rigoroso, juízes são e podem continuar independentes, como na antevisão de Cervantes:

“Venturoso aquele a quem o céu deu um pedaço de pão, sem lhe ficar a obrigação de agradecê-lo a outro que não o próprio céu!” (Miguel de Cervantes, Dom Quixote, volume II, 474).

Então, de acordo com o princípio da imparcialidade judicial, o juiz é eqüidistante das partes, o gênero não teria influência no processo decisório.

As balizas da lógica da decisão seriam a personalidade do julgador e sua visão de mundo.

Quem decide não é o homem ou a mulher julgadora, senão o jurista.

Nesse contexto, assenta-se, com firmeza, a afirmação da inexistência de diferenças de gênero no entendimento do Direito, mas cuida-se de destacar que as juízas são mais preocupadas com os detalhes do processo e a fundamentação de sua decisão, ao que parece, é mais aprofundada.

Por conclusão, e a despeito das inegáveis dificuldades na conciliação do modelo de magistrada com o de mulher, as juízas vêm ocupando o espaço que lhes cabe, deixando fluir sua intuição nata, usando sua sensibilidade, demonstrando seus genuínos sentimentos e guardando estilo próprio.

Mãe, companheira, provedora, autoridade, mulher.

Voltemos ao início.

A sociedade teme sua metade, as mulheres?

Recorro, mais uma vez, a Charles Chaplin, em trecho expressivo do discurso de seu personagem, no filme “O Grande Ditador”:

“Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar a todos, se possível: judeus, o gentio… negros… brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo, não para seu infortúnio. (…) Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades (…)” (in “Cem Discursos Históricos”, organização: Carlos Figueiredo, Belo Horizonte, Ed. Leitura, 2002, p. 337).