Edição

Eleições e Reforma Política

31 de agosto de 2006

Aurélio Wander Bastos Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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Cícero, notável tribuno romano, em clássica expressão, observou que “a historia é a mestra da vida, senhora dos tempos e luz da verdade”. Os revolucionários de 1930, quando tomaram o poder, empolgados pela liderança de Getúlio Vargas, imediatamente derrotado nas eleições presidenciais, pelo acordo oligárquico comandado pelo Presidente Washington Luís, que elegera Julio Prestes, não perderam seu tempo discutindo os mecanismos (de fato) que permitiram fraudar (coativamente) as eleições e desviar a representatividade do poder político, mais tarde, brilhantemente diagnosticado por Vitor Nunes Leal (in “Coronelismo, enxada e voto”), trataram de restaurar os fundamentos de legitimidade do processo eleitoral.

O governo provisório, como ato revolucionário, editou o Código Eleitoral (de 1932), que, não apenas criou a Justiça Eleitoral, para subtrair o processo de apuração de votos das comissões de verificação eleitoral do(s) velho(s) partido(s) republicano(s), que fraudara a própria República (de 1889/1891), como também, vivida a experiência da reforma constitucional de 1926, concluiu que os (republicanos) oligarcas não emendariam (legalmente) a Constituição para afastá-los do próprio poder. Em nosso trabalho de doutorado (USP. 1983) mostramos que os revolucionários suspenderam o uni-partidarismo dos PRs estaduais, o voto distrital ou eleições por círculos, o voto majoritário fechado em chapa única para a presidência da República e dos Estados, alistamento, votação e apuração pelos grandes contribuintes do fisco rural, assim como, identificaram que as mulheres não tinham direito de voto e os empresários que negociassem com recursos do estado, bem como os operários analfabetos e, da mesma forma os imigrantes e militares subalternos estavam excluídos do processo eleitoral.

O Código Eleitoral de 1950, que aperfeiçoou o Código Eleitoral de 1932, independentemente da criação da Justiça Eleitoral, uma grande conquista institucional, compõe-se de juízes requisitados, embora sempre de especial qualificação em Direito Eleitoral, mesmo com a redução da intermitência eleitoral devido à grande abertura democrática e dos direitos de cidadania e, inclusive a redução da temporalidade, dos mandatos. Por outro lado, estes dois códigos iniciais incentivaram o pluripartidarismo, cada vez mais aberto, assim como o voto proporcional para a eleição de deputados federais e estaduais e vereadores, assim como redefiniu o voto majoritário para a eleição de Presidente da República e Senadores e suspendeu as exclusões eleitorais trazendo para o contexto eleitoral o direito de voto e elegibilidade das mulheres e dos empresários,  muito embora tenha mantido, inclusive com base na Constituição de 1946, a exclusão eleitoral dos analfabetos, que deixou de alcançar os operários e militares subalternos. Estes procedimentos eleitorais presidiram a composição do poder político no Brasil até o Código de 1965, que não alterou a estrutura de composição da justiça eleitoral, mantendo o seu caráter funcional intermitente, assim como, os legistas do militarismo passaram a utilizar dos poderes de exceção dos governantes para evitar, através de casuísmos, os efeitos eleitorais provocados pelo voto majoritário, pelo voto proporcional (de extensão estadual) e para modificar o quorum constitucional com efeitos eleitorais, mesmo em eleições indiretas, que introduziram, imediatamente após a Revolução de (31 de março/1º de abril) 1964, promovidas em colégios eleitorais.

Estes tantos anos de vigência do modelo pluripartidário e majoritário proporcional legaram algumas lições que os militares procuraram “corrigir” com seus “casuísmos” de exceção, mas, que a democracia da Constituição de 1988 e a legislação eleitoral subseqüente não corrigiram, ao contrário, mantiveram, até mesmo porque predominou, no processo constituinte de 1987/88, uma verdadeira vontade restauradora ou, mais que isso, conservadora, porque os deputados constituintes foram eleitos na forma da Emenda Constitucional n° 26/85 e do Código de 1965 que, não propriamente, se preocupava(m) com o voto proporcional e seus efeitos (ou majoritário, no caso dos Senadores), mas com os quoruns para emendas constitucionais (que se modificavam casuisticamente de acordo com seus diagnósticos ou estratégias eleitorais). Neste sentido, os deputados constituintes e a constituição de 1988 foi votada (mesmo nas suas dimensões de grandeza) por constituintes eleitos pelo voto proporcional em que o candidato, seja o pragmático, o oportunista ou o ideológico, buscam seu voto ao norte e ao sul, ao leste e ao oeste do estado, o que torna o procedimento eleitoral muito sensível e suscetível a qualquer apoio político e ou financeiro. A multiplicação partidária, por outro lado, amplia descontinuamente a competição, e a imprescindibilidade da comunicação televisiva para alcançar grandes distâncias. Estes dessintonizados mecanismos têm efeitos de longo alcance, porque, em primeiro lugar, dispersam a representatividade, em segundo lugar, eliminam as possibilidades do controle direto do eleitor e, em terceiro lugar, supervalorizam o voto do “painel” e nas comissões, porque tornam o parlamentar mais sensível a mecanismos que podem favorecer a sua (caríssima) reeleição (proporcional).

Isto significa, conseqüentemente, como reconheceram os revolucionários de 1930/32, que o sistema eleitoral pode corromper o político mais desavisado, assim como o ideologicamente  despreparado ou mesmo, pelo oportunismo do sucesso, na ausência de controles institucionais, possa colaborar para a maior durabilidade do sistema. Neste sentido, não há como desconhecer que o voto proporcional, como os círculos eleitorais no Império, e o voto distrital por círculos (ou currais na linguagem de Vitor Nunes) está corrompido, perdeu sua qualidade representativa; muito embora tenhamos dignos expressivos deputados, que, aliás, por razões éticas ou ideológicas são os mais qualificados para instaurar o processo de avaliação dos mecanismos eleitorais. Por outro lado, o sistema herdado de 1932, que em 1985, durante a convocação constituinte já estava fragilizado pelas tantas e sucessivas intervenções na Câmara dos Deputados. Muitas dessas intervenções eram para desviar o sentido próprio do quorum constitucional, que sustentara suas decisões. Da mesma forma, têm um vicio histórico congênito: o voto proporcional como o próprio nome indica, relativiza o voto majoritário das eleições presidenciais ou de senadores; ou, quando assim não ocorre, submete o projeto majoritário da presidência (ou do senado) aos pactos ou tendências da câmara. Teoricamente este fenômeno seria uma ocorrência democrática normal se o sistema político fosse presidencial-parlamentarista, mas não o sendo, pode provocar, na ausência de harmonia, muitas vezes de altíssimo custo político, (e os últimos tempos têm mostrado que o custo é, também, financeiro) efeitos sobre a própria estrutura de convivência dos poderes, fragilizando o Estado.

Por outro lado, a prática do voto majoritário, na história brasileira, tem demonstrado que ele caminha sempre para a vitória do candidato populista, cujo discurso alcança as grandes massas da população (não pelo seu caráter ideológico) mais condicionadas para a solução de seus problemas imediatos do que para expectativas reformistas ou propósitos abstratos. Neste sentido, assim ocorreu com a vitória de Dutra (1945) apoiado por Getúlio, como candidato a Presidente da República; do próprio Getúlio (1950); de Juscelino (1955), também no pacto Getulista, com João Goulart; de Jânio Quadros (1960), substituído por João Goulart (1962) no pacto populista-Getulista; com Fernando Collor (1990), reconhecido o interegno Fernando Henrique (1994/1998), que vencera (2 vezes); Lula, o candidato ideológico, embora populista; e, há três anos passados, Lula (2002), candidato populista que vencera o candidato ideológico, o próprio Lula. Em todos estes períodos, a eleição majoritária de efeitos populistas, não teve sustentação proporcional na Câmara dos Deputados fazendo da dessintonia, foco de crises governativas, mas, ao mesmo tempo, sugerindo grandes lições para o futuro histórico: precisamos sintonizar o processo eleitoral para o Presidente da República eleito na forma do voto majoritário com a eleição dos deputados na forma do voto distrital majoritário, que contemplará efetivas lideranças e, precisamos sintonizar o modelo presidencialista, com vontade do parlamento, também possível com o presidencialismo parlamentarista. O PSDB, o PMDB e o PT e outros, são partidos estatutariamente parlamentaristas.Resta evitar que a história condicione a solução pois basta que os partidos assumam um projeto de reforma política para recuperar a legitimidade dos poderes. Finalmente, o quadro da estabilidade democrática, sintonizado pelo tipo de voto e pelo sistema de governo, exige que se amplie os direitos de cidadania e a regularidade do processo eleitoral, uma Justiça Eleitoral estável, insuscetível às circunstâncias dos poderes e dos próprios Tribunais.