Edição 105
Embargos de declaração, o abuso no seu exercício
30 de abril de 2009
Paulo Furtado Ministro convocado do STJ
É absolutamente natural que o exercício reiterado da judicatura, por vários anos, provoque o questionamento sobre matérias que, muitas vezes, passam ao largo da meditação do jurista preocupado com objetivos outros, também louváveis quando se tem em conta o aperfeiçoamento do sistema processual. Se bem que não seja apenas este o responsável pelo que se convencionou chamar de “crise” permanente da Justiça, é incontestavelmente uma das razões dessa “crise” e até já se tornou cansativo ouvir as mesmas queixas, sobre a morosidade do Judiciário, sobre as ultrapassadas regras de procedimento com que ainda convivemos, sobre as dificuldades para a obtenção célere da prestação jurisdicional, etc., etc.. Isso talvez explique a constante busca de mecanismos mais ágeis para amenizar essa “crise” que nos atormenta e perturba, quase sempre, nossa própria consciência, (e aqui, é evidente, refiro-me ao profissional do Direito responsável).
Não me atrevia, até hoje, a discutir sobre a real necessidade de inclusão dos embargos declaratórios no rol dos recursos com que se pode, em nosso sistema, hostilizar as decisões judiciais. Aliás, não foram poucos os autores que lhe negaram o caráter de “recurso”, no sentido estrito da palavra. E, como lembra Barbosa Moreira, “…os remédios análogos, nas mais importantes legislações estrangeiras, ficam fora do elenco dos recursos, tendo sido essa a orientação abraçada entre nós, por alguns Códigos estaduais, como o gaúcho e o paulista.” (in “Comentários ao CPC”, Forense, vol. V, 5ª ed., 1985, p. 535).
Se, conceitualmente, recurso é o direito de provocar o reexame da decisão, com vistas à sua modificação, ou reforma, os embargos de declaração jamais poderiam definir-se como tal, além de que, se é verdade que há um “recorrente”, definitivamente “recorrido” não há, tanto que ao adversário do embargante sequer se viabiliza o oferecimento de contra-razões. Esta última circunstância, aliás, já está a reclamar um novo tratamento procedimental, em virtude da hoje reconhecida admissibilidade dos embargos com efeito modificativo e em face do princípio do contraditório, como adiante se verá.
Não pretendo, absolutamente, sustentar a inutilidade dos declaratórios. O fato de que o Direito comparado revela seu emprego em quase todo o mundo (até o “Codice di procedura civile” do Estado do Vaticano o contempla), atesta sua necessidade. O que questiono é, concretamente, seu uso sob a forma de “recurso”.
A prática forense infelizmente revelou a condenável utilização dos embargos declaratórios como expediente de procrastinação, pelo vencido, sobretudo depois que o art. 538 do CPC (com a redação que lhe emprestou a Lei nº 8.950/94) optou pela interrupção do prazo de outros recursos, substituindo a suspensão do prazo, como ocorria anteriormente. Como se sabe, o prazo interrompido recomeça a fluir após afastado o óbice, enquanto o prazo suspenso continua a correr. E, assim, enquanto pendente o desate dos declaratórios, nenhum prazo flui para o recurso principal. O cotidiano do foro demonstrou, por exemplo, de forma veemente, que 99% (noventa e nove por cento) dos embargos de declaração agitados objetivam interromper o prazo do recurso próprio para alvejar a decisão, com o que dispõem as partes de mais esse expediente protelatório para retardar a entrega da prestação jurisdicional. É prática comum a utilização sistemática dos embargos declaratórios para, sob a alegação de “prequestionamento”, dilatar o prazo do recurso principal. E o prolator da sentença ou do aresto embargado, quase sempre às voltas com a sobrecarga de serviço, por vezes relega a um segundo plano o julgamento dos embargos, impedindo assim que a decisão objurgada adquira eficácia. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, já se viu a braços com situação singular, para a qual teve de adotar tratamento processual diferenciado do previsto em lei. Acórdão do ministro Celso de Mello, ao julgamento de terceiros embargos ao aresto proferido no RE 202.097-SP, de 27.8.2004, proclamou: “A reiteração de embargos de declaração, sem que se registre qualquer dos pressupostos legais de embargabilidade (CPC, art. 535), reveste-se de caráter abusivo e evidencia o intuito protelatório que anima a conduta processual da parte recorrente. O propósito revelado pela embargante, de impedir a consumação do trânsito em julgado de decisão que lhe foi inteiramente desfavorável — valendo-se, para esse efeito, da utilização sucessiva e procrastinatória de embargos declaratórios incabíveis — constitui fim ilícito que desqualifica o comportamento processual da parte recorrente e que autoriza, em conseqüência, o imediato cumprimento da decisão emanada desta Suprema Corte, independentemente da publicação do acórdão consubstanciador do respectivo julgamento e de eventual interposição de novos embargos de declaração ou de qualquer outra espécie recursal. Precedentes.” (Tribunal Pleno, julgado em 29.4. 2004, DJ 27.8.2004, RTJ Vol. 00194-01, pp-00325).
Assim, se o próprio Supremo Tribunal Federal tem de enfrentar, vez por outra, situações como essa, é fácil imaginar o que não têm de suportar os juízes e tribunais inferiores, diante da abusiva reiteração de embargos declaratórios.
Na forma do art. 535, I e II, do CPC, cabem declaratórios quando houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição, ou for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal. Consoante lição de Barbosa Moreira, obscura é a sentença, ou o acórdão, em que falta clareza. Contraditória é a decisão onde se incluam proposições inconciliáveis entre si. E omisso é o pronunciamento quando o juiz ou tribunal deixa de apreciar questões relevantes para o julgamento (suscitadas pelas partes ou examináveis de ofício).
Qualquer desses vícios pode, perfeitamente, ser evidenciado como “preliminar” do recurso principal adequado. E, se efetivamente reconhecido pelo ad quem, impor o retorno da sentença ou do acórdão ao prolator para a indispensável correção. Se rejeitada a “preliminar” de imprestabilidade do pronunciamento objurgado, por tais vícios, de logo se vê o órgão revisor autorizado a proceder ao julgamento do recurso principal.
Todo o questionamento sobre os embargos de declaração se revela ainda mais indispensável quando se tem em conta os declaratórios com o chamado “efeito modificativo”. É certo que as Ordenações Afonsinas já revelavam a primeira manifestação dos embargos modificativos, ao lado dos embargos ofensivos. Deles também se ocuparam as Ordenações Manuelinas e as Filipinas (Livro 3º, tít. 66, parágrafo 6º, tít. 84, parágrafo 8º, tít. 86, parágrafo 17). Contudo, a jurisprudência pátria demonstrava a cautela com que se apreciavam os embargos, sempre rechaçando as tentativas de encobrir-se, com eles, a verdadeira intenção de emprestar-lhes o caráter infringente. Foi mesmo, entretanto, a partir da admissão pela nossa mais alta Corte de Justiça dos embargos com tal efeito, que se começou a ver no País uma autêntica corrida aos embargos com caráter infringente. E não foram poucos os tribunais que trilharam, sem qualquer cerimônia, por esse caminho, na mais intolerável e absurda violação do princípio constitucional do contraditório. A parte deixava a sala de sessões, após um julgamento para o qual fora regularmente intimada, com a certeza do agasalho de sua tese, vitoriosa. E, dias após, deparava-se em cartório com uma decisão diametralmente oposta, passando de vencedor a vencido, após o julgamento de embargos declaratórios modificativos para o qual não fora intimado e destes últimos sequer tinha conhecimento.
Já defendi que são nulas, por escancarada violação do contraditório, todas essas decisões, no âmbito de embargos declaratórios, modificativas da decisão anterior, adotadas em julgamento para o qual não fora intimada a parte antes exitosa, agora vencida. Esse entendimento sedimentou-se, mais tarde, na jurisprudência do STJ: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. EFEITOS INFRINGENTES. A atribuição de efeitos infringentes aos embargos de declaração supõe a prévia intimação da contraparte; sem o contraditório, o respectivo julgamento é nulo. Embargos de declaração opostos por Bancocidade Corretora de valores Mobiliários e de Câmbio Ltda. conhecidos e acolhidos. Prejudicados os embargos declaratórios opostos por Bolsa de Valores do Rio de Janeiro”. (EDcl nos EDcl na AR 1228. RJ, Min. Ari Pargendler, Corte Especial, julgado em 1/8/2008, DJE 2/10/2008).
Tirante esse aspecto, outro a considerar são os embargos de embargos. Na maioria das vezes, uma evidente chicana processual que nem a multa do parágrafo único do art. 538 do CPC, nem a declaração da litigância de má-fé foram, ou são, suficientes o bastante para coibir seu uso, desestimulando a prática. São conhecidos casos em que nada menos que seis embargos foram agitados, não para atacar a decisão embargada, mas perseguindo a modificação do julgado original.
A proposição aqui enunciada que pretende ser a solução para o problema do exercício abusivo dos declaratórios merece certamente maiores considerações (inclusive sobre outros aspectos do tema), assim como reclama mais amadurecimento.
Posso até imaginar o que dirão, a respeito, as críticas que sobre ela se abaterão. Mas, de qualquer sorte, é dever do jurista nunca omitir-se, por mais que seu pensamento o exponha. Até porque, como escreveu Eduardo Girão, “o louvor quase sempre é insincero; a crítica nunca o é, ainda quando injusta.”