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Estupro e Atentado Violento ao Pudor – (voto da Ministra Ellen Gracie no habeas corpus 81.288-1 de Santa Catarina)

5 de janeiro de 2002

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“Em que pese alguma vacilação da jurisprudência do STJ quanto ao tema, de ser o delito de estupro, e também o delito de atentado violento ao pudor, em suas formas básicas, incluível no rol dos crimes hediondos ou não, e, sem embargo, também das respeitáveis vozes que nesta Casa se manifestam em sentido contrario (e refiro expressamente o Habeas Corpus n° 78.305, Rel. Min. Jose Neri da Silveira, in DJ de 8/6/1999, o Habeas Corpus n° 80.223, Rel. Min. Nelson Jobim, in DJ de 15/8/2000 e o Habeas Corpus 80.479, Rel. Min. Nelson Jobim, in DJ de 5/12/2000), tenho por irretocável o raciocínio que colhi, de manifestação perante o Superior Tribunal de Justiça, do eminente Ministro Felix Fischer, que naquela Corte capitaneia a corrente que prevaleceu em diversos julgamentos.

A Lei n° 8.072, de 25 de julho de 1990, ao relacionar quais os delitos considerados hediondos, foi expressa ao referir o estupro, apondo-lhe, entre parênteses, a capitulação legal: art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único. Vale dizer, foi intenção do legislador, ao utilizar-se da conjunção coordenativa aditiva, significar que são considerados hediondos: (I) o estupro em sua forma simples, que, na definição legal, corresponde a: constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça; (2) o estupro de que resulte lesão corporal de natureza grave; e (3) o estupro do qual resulte a morte da vitima.

A analise sistêmica do artigo 1 ° da Lei n° 8.072/90 revela a correção desta assertiva, pelo tratamento dado a outros delitos igualmente classificados entre os que merecem especial repudio do corpo social. Assim, na extorsão (art. 158, parágrafo 2°), no roubo (art. 157, parágrafo 3°, in fine), na epidemia (art. 267, parágrafo 1°), o legislador delimitou a reprimenda exclusivamente para a forma qualificada. Não o fez relativamente ao delito de estupro. Assim deliberando, mostrou-se o legislador atento a efetiva gravidade deste crime, raras vezes denunciado, e que produz em suas vitimas tantas seqüelas, tão graves e de tão extensa duração. Creio ser possível afirmar, com base cientifica, não haja no rol do Código Penal, excetuado o próprio homicídio, outra conduta agressiva que sujeite a respectiva vitima a tamanhas consequencias nefastas e que tanto se prolonguem no tempo.

Ou seja, o legislador pretendeu – e corretamente redigiu o dispositivo para tanto­ significar que estava apontando, para inclusão no rol dos delitos considerados hediondos, o estupro, tal como vai descrito no art. 213, mais as suas formas qualificadas pela lesão corporal de natureza grave e a morte.

Insistem, alguns defensores, na tese de que o delito, em sua forma simples, vale dizer, aquela correspondente ao art. 213, teria sido retirado do rol dos crimes hediondos, quando, a partir da edição da Lei n° 8.930/94, foi eliminada da redação do art. 1°, inciso V, da Lei n° 8.072/90, a referencia ao caput do mesmo art. 213. O argumento, que a primeira vista pode impressionar, todavia, não se sustenta.

A extração da palavra caput da redação do art. 1°, V, corresponde, não a uma alteração de conteúdo do dispositivo, mas tão ­somente, a adaptação de sua forma as alterações legislativas que se seguiram a redação original da Lei dos Crimes Hediondos. Para compreender adequadamente essa evolução legislativa, e precise remontar a redação original do Código Penal, que impunha ao delito de estupro penalidade de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos. Em 1990, o Congresso Nacional editou uma das legislações mais modernas de proteção da infância, o conhecido Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n° 8.069, de 13/7/90. Esta Lei, entre tantos outros dispositivos acauteladores dos interesses dos menores, inseriu, por meio de seu artigo 263, parágrafos únicos aos artigos 213 e 214 do Código Penal, agravando as penas aplicáveis a tais delitos, quando cometidos contra menores de 14 anos. Estabeleceu o referido artigo 263 pena de reclusão de 4 a 10 anos para o estupro praticado contra menor e pena de 3 a nove anos de reclusão para o atentado violento ao pudor quando, igualmente, a vitima fosse menor. Todavia, o referido estatuto teve sua vigência protraída por noventa dias (art. 266), entrando em vigor apenas em 13/10/90. Antes dessa data, a saber, em 25/7/90, foi promulgada, e com vigência imediata, a Lei dos Crimes Hediondos, que veio a prever para os mesmos delitos, penas ainda mais severas, vale dizer, reclusão de seis a dez anos, tanto para o estupro, quanto para o atentado violento ao pudor. Em razão dessa incongruência, os parágrafos introduzidos pela Lei n° 8.069/90, se porventura aplicados, levariam a situação paradoxal de reprimir-se com menor severidade as violações praticadas contra menores do que aquelas que fossem perpetradas contra pessoas adultas, em clara contradição com o espírito inspirador da norma protetiva da infância. Por isso mesmo, considerou-se que tais parágrafos haviam sido tacitamente revogados pela Lei n° 8.072/90, antes mesmo que entrasse em vigor a Lei n° 8.069/90, que os estabelecera. Não fazia mesmo qualquer sentido, viesse o agressor de menores a ser beneficiado com apenamento mais branda, invocando-se justamente a legislação concebida para estender maior proteção a criança e ao adolescente. Tal revogação se fez, afinal, de forma expressa, por meio da Lei na 9.281/96. Portanto, a expressão caput, cuja inclusão em qualquer redação legislativa só faz sentido quando existam parágrafos que qualifiquem os dispositivos inseridos na cabeça do artigo, era, e é, de todo desnecessária, e sua exclusão não leva a conseqüência pretendida pelos ilustres defensores. Como se viu, embora inicialmente introduzidos na redação original do Código Penal, tais parágrafos, na realidade, nunca foram implementados, pois sua aplicação pelo julgador resultaria em solução aberrante do sistema de proteção ao menor.

Tal raciocínio vem desenvolvido em excelente artigo publicado na Revista do Tribunal Federal da 1ª Região, da lavra da Dra. Lilian da Costa Tourinho, onde se referem os autores que tem abonado idêntico entendimento, a saber: Damasio Evangelista de Jesus, Julio Fabbrini Mirabete, Antonio Scarance Fernandes, Celso Delmanto, Paulo Jose da Costa Junior entre outros, já referidos pelo eminente Ministro Carlos Velloso.

Colho subsidio precioso em precedente da lavra de meu ilustre antecessor, Min. Octavio Gallotti, que, a propósito, tratando embora do delito de atentado violento ao pudor, em tudo assemelhável a hipótese do estupro, assim ementou julgado unânime da Primeira Turma: “Crime hediondo. A classificação prevista no art. I” da Lei n”8.072/90 diz respeito tanto a forma simples do delito tipificado no art. 214, como a qualificada, capitulada no art. 223, caput e parágrafo único, ambos do Código Penal ‘ (Habeas Corpus 74.710, in DJ de 25.04.97.). O delito de que estamos tratando é daqueles que, por suas características de aberração e de desrespeito a dignidade humana, causa tão grande repulsa, que as próprias vítimas, em regra, preferem oculta-lo e que a sociedade, em geral, prefere relegar a uma semiconsciencia sua ocorrência, os níveis desta ocorrência e o significado e repercussões que assume para as vítimas deste tipo de violência. Talvez, por isso, significativamente, o grupo de estudos de violência contra a mulher da Pontifícia Universidade Cat61ica do Rio Grande do Sul, em trabalho organizado pelas Profª. Patricia K. Grossi e Graziela C. Werba, deu ao livro que recentemente publicou o titulo “Violências e Gênero -Coisas que a gente não gostaria de saber” (EDIPUCRS, Porto Alegre, 2001).

No entanto, tanto o legislador que atua sobre a realidade, para transformá-la, quanto o interprete que complementa esse esforço de aperfeiçoamento da sociedade necessitam, por doloroso ou repugnante que seja, ter exato conhecimento da realidade sobre a qual irão incidir suas intervenções. Por isso, peço vênia aos colegas para trazer dados que acredito importantes para o exato dimensionamento do problema de que estamos tratando. Eles me foram fornecidos principalmente pelo Grupo de Saúde da Mulher da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul liderado pela Dra. Assuncion Caputi, pela Profª. Dra. Aida Santin do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clinicas de Porto Alegre, pelo Serviço Especializado em Atendimento de Mulheres Vitimas de Violência do Hospital Perola Byington de São Paulo, entidade reconhecida internacionalmente pelo trabalho nesta área, alem de entidades diversas cuja preocupação se centra nas questões de gênero, como o UNIFEM, órgão das Nações Unidas que, no Brasil, tem por representante a Dra. Branca Moreira Alves, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher presidido pela Dra. Solange Bentes Jurema, a Oficina dos Direitos da Mulher/SP, coordenada pela Dra. Norma Kyriakos e a Comissão da Mulher Advogada da OAB/SP, fundada por esta ultima. Para bem compreender a terminologia técnica, prestou-me preciosa colaboração a Dra. Dea Márcia Martins Pereira, Secretaria de Serviços Integrados de Saúde deste Tribunal, e ela mesma integrante da Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS (CN-DST/AIDS), do Ministério da Saúde. Retirei a maior parte dos dados da monografia produzida pelo Prof. Dr. Jefferson Drezett Ferreira, Coordenador do Serviço de Atenção Integral a Mulher Sexualmente Vitimada do Centro de Referencia da Saúde da Mulher e Consultor sobre Violência Sexual do International Project Assistence Service – IPAS, EUA. O referido especialista analisou, em sua tese de doutorado, 1.189 casos de agressão sexual.

Segundo suas informações, “acredita­-se que 12 milhões de mulheres a cada ano sejam vitimas de violência sexual em todo o mundo (BEEBE, 1998).” “A verdadeira incidência dos crimes sexuais e desconhecida, acreditando-se ser essa uma das condições de maior subnotificação e sub-registro em todo o mundo. Nos EUA, calcula-se que apenas 16% dos estupros são comunicados as autoridades competentes (NATIONAL VICTIM CENTER, CRIME VICTIMS RESEARCH AND TREATMENT CENTER, 1992).”

Tais dados vem corroborados pela Profª. Lori Heise, diretora do Projeto Violência, Saúde e Desenvolvimento do Instituto do Pacifico para a Saúde da Mulher, publicado pela Organização Pan-americana da Saúde, em 1994. Segundo ela, “as estatísticas de delitos são virtualmente inúteis para estimar a incidência do abuso de gênero, devido ao amplo sub-registro que existe. De acordo com recentes enquetes sobre vitimização nos Estados Unidos, somente são denunciados a polícia 2% dos casos de assedio sexual infantil dentro da família, 6% de abuso sexual fora da família e 5 a 8% de assedio sexual a adultos“. Enquanto isso, diz ela: “Comparativamente são denunciados 61,5% dos assaltos e 82,5% dos roubos“.

Algumas condições específicas podem comprometer ainda mais a notificação destes crimes. Assim, e possível que a agressão sexual ocorrida dentro das relações de matrimonio ou união consensual esteja entre as mais ocultadas (GRAMS et al., 1997). Nos casos de incesto, estes percentuais podem ultrapassar os 95% em determinadas comunidades (SANCHEZ, 1989; URRERA & SCH, 1993)”.

“Segundo TUCKER et al. (1990), cerca de 96% dos agressores não são condenados, por falta de provas materiais, muitas vezes exigidas pela justiça.” Exemplo dessa afirmação pode ser verificado em nosso meio, na cidade de São Luis, no Maranhão. Entre os anos de 1988 e 1990, mais de 4000 queixas de abuso sexual foram registradas pelas autoridades policiais. No entanto, cerca de 300 acusados foram levados aos tribunais, e apenas dois efetivamente condenados (HUMAN RIGHTS WATCH, 1992)”.

“A atitude da vitima em não denunciar o ocorrido parece estar relacionada com múltiplos fatores. Em nosso meio, acredita-se que a maior parte das mulheres não registre queixa por constrangimento e medo de humilhação, somados ao receio da falta de compreensão ou interpretação dúbia do parceiro, familiares, amigos, vizinhos e autoridades. Também se deve considerar que, quando o crime é perpetrado por agressor desconhecido, é comum que ocorram ameaças a integridade física da vitima ou de algum familiar, caso revele-se o ocorrido (DREZETT FERREIRA, JEFFERSON et al., 1998)”.

“Apesar de causar grande perplexidade, é fato incontestável que a agressão sexual durante a infância é, geralmente, perpetrada por pessoas que a criança conhece e em quem confia. Incapaz de revelar o que lhe ocorre, o processo pode se prolongar ate a idade adulta (WESTCOTT; 1984; TETELBOM et al., 1991)”.

Por todos esses motivos, “as estatísticas sobre o abuso sexual são variadas e quase sempre imprecisas. Porem, quaisquer que sejam os números observados, todos são assustadores. Considerando-se sua elevada incidência e prevalência, bem como as consequencias biológicas, psicológicas e sociais que determinam, os crimes sexuais adquiriram proporções de um complexo problema de saúde publica (AIKEN; 1993) “.

“A violência representa uma das principais causas de morbidade e mortalidade, principalmente entre a população jovem. Enquanto os homicídios ocorrem em espaços públicos, atingindo principalmente o sexo masculino, a agressão sexual atinge preferentemente o sexo feminino, dentro do espaço domestico. Estas mulheres são alvo de seqüelas físicas e psicológicas, tornando-se mais vulneráveis a diversos problemas de saúde (BRASIL, 1999) “.

“Entre as crianças, o impacto do abuso sexual pode produzir uma importante condição futura de vulnerabilidade, facilitando uma revitimização na adolescência ou na vida adulta. Particularmente naquelas envolvidas com formas severas de violência, observa-se uma menor prevalência de uso de contraceptivos e de praticas sexuais seguras. consequentemente, durante a adolescência, apresentam maior risco de gravidez e de contrair uma DST (Doença Sexualmente Transmissível) (FERGUSSON, HORWOOD, LYNSKEY, 1997; KENNEY et al., 1998; FLEMING et al., 1999). Nas vitimas adultas, a severidade da agressão sexual pode diminuir a percepção futura da própria saúde, especialmente a reprodutiva (ULLMAN & SIEGEL, 1995)”.

“A aquisição de uma Doença Sexualmente Transmissível, em decorrência da violência sexual pode implicar severas consequencias físicas e emocionais. Atualmente, a principal preocupação entre as vitimas de agressão sexual é a possibilidade de se infectarem pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) , expressada por 70% das mulheres americanas (NATIONAL VICTIM CENTER, CRIME VICTIMS RESEARCH AND TREATMENT CENTER, 1992; GOSTIN et al., 1994)”. Os aspectos clínicos da infecção pelo HIV podem variar desde sinais e sintomas inespecíficos, como sudorese noturna e emagrecimento, passando por processos oportunistas comuns na fase sintomática inicial, como candidiase oral e vaginal, gengivite, ulceras aftosas, diarréia, herpes simples recorrente, herpes zoster, ate a fase em que se instalam as doenças oportunistas. A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e a fase da infecção pelo HIV em que se instalam as doenças que se desenvolvem em decorrência de uma alteração imunitária do hospedeiro. As doenças oportunistas associadas a AIDS são varias, podendo ser causadas por vírus, bactérias, protozoários, fungos e certas neoplasias.

“Registra-se que entre 28 a 60% das vitimas de violência sexual serão infectadas por uma DST (JENNY et al., 1990; ROSS, SCOTT; BUSUTTIL. 1991; BALDACINI et al., 1997)”.

Apesar da subnotificação e da falta de uniformidade quanto aos critérios de investigação laboratorial e dos sujeitos estudados puderam os especialistas apurar que “a taxa de infecção por Neisseria gonorrhoeae pode variar entre 0,8 a 9,6%; entre 1,5 a 26% para Chlamydia trachomatis; de 3, 1 a 22% para Trichomonas vaginalis; de 12 a 50% para vaginose bacteriana; e de ate 1,6% para o Treponema pallidum (FORSTER et al., 1986, ESTREICH; FORSTER, ROBINSOM, 1990; JENNY et al., 1990; LACEY, 1990; GLASER et al., 1991; BALDACINI et al., 1997). Seguindo a mesma tendência, a infecção pelo Papillomavirus humano (HPV) varia entre 2 e 40% (ESTREICH et al., 1990; JENNY et al., 1990; LACEY, 1990; BALDACINI et al., 1997)”. “Para ESTREICH et al. (1990), em 3% das, vitimas de estupro foi encontrada positividade sorológica para a hepatite B”. “Estudando 126 mulheres vitimas de abuso sexual, BALDACINI et al. (1997) encontraram taxa de prevalência de 1,6% para o Herpesvírus-simples; 1,6% para hepatite B; 0,8% para hepatite C; e 0,8% para infecção pelo Citomegalovirus. Pouco se conhece sobre a incidência e prevalência de Mycoplasma hominis, Ureaplasma urealyticum, e Candida albicans. Quanto a prevalência de vírus Linfotrópicos de células T humanas (HTLV), tipo I e II, os autores encontraram taxa de 1,6%”.

Ate aqui, os danos de contagio.

“Poucos estudos tem avaliado a prevalência e a importância de danos genitais (vale dizer, as machucaduras ou ferimentos) entre vitimas que, no momento do estupro, não haviam iniciado vida sexual.” Ainda assim, “segundo BIGGS et al. (1998), a ocorrência de traumas genitais foi significantemente maior nessas mulheres (65,2%) do que naquelas sexualmente ativas no momento da agressão (25,8%)”.

Mas ha, ainda, as consequencias de ordem emocional, que, embora não se possam, por vezes, demonstrar com a mesma clareza e precisão numérica das moléstias físicas, tem também sido estudadas, com detalhe, pelos especialistas. “Os primeiros relatos, acerca dos transtornos psicológicos decorrentes do abuso sexual datam de 1890, através das observações de Freud” (FREUD, 1995; MILLER, 1998). Atualmente, de acordo com a AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION COMMITTEE ON NOMENCLATURE AND STATISTICS (1994), a violência sexual associa­se com a Síndrome da Desordem Pós­-Traumática (SDPT), entidade nosológica desenvolvida após qualquer evento traumático ou extraordinário, dentro da experiência humana. De acordo com BRESLAU et al. (1998), cerca de um terço dos casos de SDPT são relacionados com o abuso sexual”.

“A SDPT divide-se em duas fases. A primeira, denominada “fase aguda “, caracteriza-se por processo psíquico de desorganização, durando de poucos dias a algumas semanas. Os sintomas referidos pela mulher incluem a angustia, o medo, a ansiedade, a culpa, a vergonha, a humilhação, a auto-censura e a depressão. Podem ocorrer reações somáticas, como: fadiga, tensão, cefaléia, insônia, corrimento vaginal, pesadelos, anorexia, náuseas e dor abdominal (BURGESS & HOLMSTRON, 1973). Nesta fase, o evento de uma gravidez decorrente de estupro intensifica e agrava as consequencias da SDPT (DREZETT et al., 1998)”.

“Na segunda, chamada de fase crônica”, desenvolve-se um processo de reorganização psíquica que pode durar de meses a anos. A vitima passa a rememorar intensamente a violência, construindo pensamentos estupros-relacionados (SHIPHERD & BECK, 1999). Podem se estabelecer diversos transtomos da sexualidade, incluindo o vaginismo, a dispareunia, a diminuição da lubrificação vaginal e a perda da capacidade orgasmica “.

“Cerca de 40% das mulheres apresentam queixas sexuais após o estupro, sendo que algumas podem evoluir para quadros mais severos, culminando na completa aversão ao sexo (BURGESS & HOLMSTRON, 1973; MASTERS & JOHNSON, 1979; BECKER et al., 1984)”.

“A fase crônica também se caracteriza pela ocorrência de problemas como: depressão, bulimia, anorexia nervosa, baixa auto-estima, fobias diversas e dificuldades de relacionamento interpessoal (HALL et al., 1989; MOSCARELLO, 1990; MACKEY et al., 1992; DANSKY et al., 1997; KULKOSKI & KILIAN, 1997; THELEN, SHERMAN, BORST, 1998; ROOSA, REINHOLTZ, ANGELINI, 1999)”.

“A prevalência de ideias suicidas persistentes e de tentativa de suicídio e elevada nos casos de SDPT, principalmente entre adolescentes abusados durante a infância. Neste grupo, a tentativa de suicídio alcança ate 15% das vitimas femininas, com percentual semelhante para o sexo masculino (BOWYER & DALTON, 1997; BRYANT & RANGE, 1997; STHATAM et al., 1998). Ha dados que sugerem que o risco seja ainda maior para mulheres revitimizadas (CLOITRE, SCARVALONE, DIFEDE, 1997). Em nosso meio, há registro de taxas um pouco menores, em tomo de 10% (DREZETT et al., 1996)”.

“SUTHERLAND & SCHERL (1970) enfatizam uma fase intermediaria na SDPT, chamada de “ajustamento exterior”, caracterizada pelo esforço da vitima em negar o ocorrido e retomar as suas atividades normais. As alterações do comportamento, nesta fase, são variáveis e mostram grande coexistência de sintomas, geralmente relacionados com a modalidade do abuso (RONA & MOYA,1989)”.

“As consequencias psicológicas da violência sexual tendem a se tomar mais graves após os sete anos, idade em que a criança, geralmente, passa a compreender os valores morais e sociais relacionados ao sexo (SANCHEZ, 1989). Qualquer disfunção psicossocial, na infância, pode ser sugestiva de abuso sexual, variando de acordo com a idade e estagio de desenvolvimento da criança. Em idades precoces predominam sintomas físicos e comportamentais, como: medo, encoprese, enurese, irritabilidade, distúrbios do sono e da alimentação. Em vitimas pré-­púberes, destacam-se os distúrbios psicossomaticos e de comportamento, como: ansiedade, isolacionismo, depressão, sintomas conversivos, perda de peso e diminuição do rendimento escolar (TETELBOM et al., 1991)”.

“Na adolescência predominam os distúrbios comportamentais, psicossomáticos e psiquiátricos: fuga de casa, maior prevalência de uso de drogas, prostituição, autoflagelação, depressão e sintomas conversivos (TETELBOM et al., 1991). Alguns distúrbios observados na criança podem estar presentes de forma exacerbada na adolescente, em função de sua maior autonomia e desenvolvimento biopsicossocial. Outro aspecto relevante refere-se a revitimização por múltiplos agressores durante a infância e adolescência. Nestes casos, há indícios de que as sequelas psicológicas possam ser ainda mais severas (KELLOGG & HOFFMAN; 1997)”.

“Nas crianças, as consequências psicológicas podem ser classificadas em quatro categorias. A primeira, denominada ‘recorrente sensação de medo’, inclui comportamentos de hipervigilância, irritabilidade, ansiedade, hiperatividade física e sintomas regressivos. A segunda refere-se aos ‘distúrbios da memória’, onde prevalecem a dissociação, os pesadelos, as mentiras e a desconexão da realidade. A ‘dificuldade em regular afeto’ comporta fenômenos depressivos, impulsividade e posturas oposicionais. Por fim, descreve-se a ‘tendência a evitar relações intimas’, caracterizada pela dificuldade em confiar no adulto e manter relações de proximidade física ou emocional (JAMES, 1994)”.

Diz a já citada Lori Heise: “As agressões sexuais podem provocar tanto lesões físicas como um serio trauma emocional. (…) As sobreviventes do estupro exibem uma variedade de sintomas induzidos pelo trauma ­pesadelos, depressão, falta de concentração, transtornos do sono e da alimentação e sentimentos de ira, humilhação e auto-acusação. Alem disso, entre 50 e 60% das vitimas experimenta severos problemas sexuais, ai incluídos a coitofobia, a frigidez e uma diminuição de libido (Burnam et al. 1988; Becker et. Al. 1986; Becker et. AI. 1982)”.

“Os efeitos malignos do estupro não surpreendem, considerando-se a violência física, psicológica ou moral que ele implica (Breslau et. al. 1991; Herman, 1992). Um estudo dos EUA determinou que as vitimas de estupro eram nove vezes mais propensas a cometer tentativas de suicídio e duas vezes mais susceptíveis a depressão profunda que as mulheres nao-vitimadas (Kilpatrick, 1990). Os estudos de acompanhamento demonstraram que as sobreviventes de estupro apresentam maiores índices de transtorno de estresse pós-traumático prolongado que as vitimas de outros tipos de violência (Norris, 1992). Alguns especialistas consideram que as mulheres vitimas de abuso e agressão sexual constituem o maior grupo individual com problemas de estresse pós-traumático e que o estupro e o evento individual com maior probabilidade de causar estresse pós-traumático (Foa, Olasov e Steketee, 1987)”.

“Os estudos de acompanhamento das vitimas demonstram que as consequencias traumáticas da violação podem persistir durante muitos anos. Um estudo de validação da prova de sintomas pos-estupro (Rape Aftermath Symptom Test -RAST) demonstrou que o instrumento podia distinguir os sintomas das vitimas de estupro daquelas que não o haviam sofrido ate três anos apos o evento (Kirkpatrick, 1988). De acordo com estudos realizados nos Estados Unidos, uma de cada quatro mulheres violentadas apresenta sintomas disfuncionais mesmo depois de quatro a seis anos apos o assalto (Hanson, 1990, Burgess e Holmstrom 1979). Em nossa mostra, diz a autora, 60% das vitimas de agressão sexual informaram disfunção sexual três anos depois da agressão (Becker et. al. 1986). Inclusive depois de muitos anos, as mulheres que foram sexualmente assaltadas são significativamente mais propensas a ser qualificadas dentro de 10 diagnósticos psiquiátricos diferentes, incluindo depressão profunda, abuso de álcool, transtorno de estresse pós-traumático, abuso de drogas, transtornos obsessivo-compulsivos, ansiedade generalizada, transtornos da alimentação, transtorno de personalidade múltipla e síndrome de personalidade fronteiriça. A taxa de risco relativa a estes diagnósticos em sobreviventes de estupro e agressão sexual e aproximadamente duas vezes maior (Koss, 1990)”.

“A investigação nos EUA demonstrou que em torno de uma quinta parte das vitimas de abuso sexual infantil apresenta sérios efeitos psicológicos de longo prazo (Browne e Finkelhor, 1986). Podem incluir respostas dissociadas e outros indicadores de transtornos de estresse pós-traumático, como excitação sexual crônica, pesadelos, rememorações recorrentes e insensibilidade emocional. Burnam e outros (1988), utilizando técnicas variadas, demonstraram que as mulheres incluídas na enquete da Zona de Capacitação Epidemiológica de Los Angeles (Los Angeles Epidemiological Catchment Area) que haviam sido sexualmente abusadas em sua infância, eram duas vezes mais propensas que as mulheres que não haviam sido abusadas (58,6% contra 24,0%), a apresentar ao menos um diagnostico psiquiátrico em suas vidas”.

“A vitimização sexual precoce também pode deixar as mulheres com menos habilidades para se protegerem, menos seguras de seu valor e de seus limites pessoais e mais-propensas a aceitar a vitimização como parte de seu ser feminino. Esses efeitos podem aumentar as possibilidades de uma futura revitimização (Koss, 1990)”.

Peço escusas aos colegas pelo muito que me alonguei na apresentação destas citações. Trouxe-as, contudo, porque acredito não ser possível enfrentar esse tema sem recorrer aos dados científicos que busquei carrear. A violação do corpo humano tem, como se viu, altíssimo potencial de provocar um sem-número de graves moléstias físicas, disfunções orgânicas e traumas emocionais.

De tudo, e possível concluir que, não fora a expressa inclusão do delito, em sua forma simples, entre os que o artigo 1° da Lei n° 8.072/90 reputou hediondos, como procurei demonstrar no inicio deste voto, e, ainda assim, seria viável afirmar que não existe estupro do qual não resulte lesão de natureza grave.

Na lição do mestre Nelson Hungria, em caso de lesão corporal “não se trata, como o nomen juris poderia sugerir, prima facie, apenas do mal infligido a inteireza anatômica da pessoa. Lesão corporal compreende toda e qualquer ofensa ocasionada a normalidade funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de vista anatômico, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico. Mesmo a desintegração da saúde mental e lesão corporal, pois a inteligência, a vontade ou a memória dizem com a atividade funcional do cérebro, que e um dos mais importantes órgãos do corpo. Não se concebe uma perturbação mental sem um dano a saúde e é inconcebível um dano a saúde sem um mal corpóreo ou uma alteração do corpo. Quer como alteração da integridade física, quer como perturbação do equilíbrio funcional do organismo (saúde), a lesão corporal resulta sempre de uma violência exercida sobre a pessoa. “

Para as Profas. Silvia Pimentel, Ana Lucia P. Schitzmeyer e Valeria Pandjiarjian, integrantes do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher­-CLADEM e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. “A violência sexual do estupro, enquanto violência de gênero é fenômeno praticamente universal. Contudo, não e inevitável, e muito menos incontrolável. Como demonstram estudos transculturais, as relações entre os sexos e as políticas dos sexos diferem radicalmente de sociedade para sociedade, sendo em muito determinadas por complexas configurações de arranjos econômicos, políticos, domésticos e ideológicos. “As autoras relembram que “a policia, o Ministério Publico e o Poder Judiciário não se comportam de forma criativa e ativa em relação a providencias que poderiam melhor garantir a efetividade do processo legal” e enfatizam a necessidade de sensibilização quanto a questão de gênero dos operadores do Direito. A esse propósito, nunca será demasiado louvar a iniciativa pioneira da Associação Internacional de Mulheres Magistradas, que, sob a dedicada coordenação da ilustre Desembargadora Shelma Lombardi de Kato, tem promovido os seminários do projeto “Jurisprudência da Igualdade”, nos quais espaço especial e reservado a divulgação e ênfase na efetiva implementação dos instrumentos internacionais a que nosso Pais tem apresentado pronta adesão e que tem por objetivo a garantia dos direitos da mulher, em sua acepção ampla de direitos humanos.

Ao repelir a interpretação que afasta do rol dos crimes hediondos o delito de estupro em sua forma simples, estará esta Corte dando a lei sua correta inteligência e ademais e, principalmente, sinalizando que o Estado Brasileiro, para alem da simples retórica, estende proteção efetiva as mulheres e crianças vitimas de tal violência e reprime, com a severidade que a sociedade exige, os seus perpetradores.