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Exame de DNA pode relativizar a coisa julgada na ação de Investigação de Paternidade?

31 de janeiro de 2008

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Introdução
Em decorrência da evolução científica, a questão da prova na ação de investigação de paternidade ganhou novo relevo, sendo superada a simples presunção da paternidade pela semelhança ou a exclusão da mesma pela falta de provas.
O surgimento do exame de DNA desencadeou grande dúvida no meio jurídico sobre a possibilidade de se ajuizar novas ações de investigação de paternidade, tendo em vista que, com tal exame, é possível ter a margem de 99,999% de certeza para a exclusão ou conclusão da paternidade. Além disso, as pessoas passaram a requerer ao Poder Judiciário a reapreciação das questões das paternidades transitadas em julgado, causando uma elevada discussão tanto no âmbito dos tribunais como na Doutrina.
Ilustradas essas questões iniciais, o presente trabalho apre-sentará as principais discussões envolvendo o tema, desta-cando, inclusive, como o tema vem sendo enfrentado no mundo jurídico e qual o meio que a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo como adequado para solucionar o presente conflito.

A noção de princípio e o conflito existente entre os princípios da coisa julgada e da filiação.
Inicialmente, para que possa resolver esse conflito, é imprescindível que se tenha conhecimento da importância dos princípios dentro de nosso ordenamento jurídico.
Conforme ensina o Professor Luis Roberto Barroso, os princípios consistem em uma síntese dos valores existentes
no nosso Direito, de modo que eles espelham a ideologia da sociedade, ou seja, seus postulados básicos e seus fins, dando assim unidade e harmonia ao sistema, servindo também de parâmetro para o intérprete aplicar o Direito ao caso concreto.
A questão começa a ganhar mais relevo quando na ação de investigação de paternidade é levantada a possibilidade de violação de um dos princípios invocados neste tipo de ação, que são os princípios constitucionais da coisa julgada e da filiação, devendo, nessas situações, ser estabelecido o peso de cada um no conflito existente.

A ponderação de interesses como solução do conflito
O método apresentado pela doutrina e pela juris-prudência para buscar um resultado justo e eficiente para resolver a questão é através do instituto da ponderação de interesses, tendo em vista que se trata de meio capaz de estabelecer o peso de cada um dos princípios no conflito ocorrido na ação de investigação de paternidade.
Para o Professor Luis Roberto Barroso, em razão de não existir um critério abstrato que tenha condições de garantir a superação de um princípio sobre o outro, o ideal é que, ao se analisar o caso concreto, sejam realizadas concessões recíprocas a fim de que seja alcançável a produção de um resultado socialmente almejado, sacrificando o princípio em oposição da menor maneira possível.
De acordo com o Professor Belmiro Pedro Welter, para que se possa mitigar um princípio é fundamental que seja respeitada a igualdade entre as partes, pois tanto o investigante quanto o investigado possuem um direito fundamental a ser tutelado, podendo o seu desrespeito gerar a inconstitucionalidade do ato. Além disso, nesse caso, deve ser observado também o princípio da proporcionalidade, que consiste no meio de menor interferência possível, ou seja, no meio mais suave de resolver o conflito existente, em razão de se aplicar o instituto da ponderação de interesses para a solução da questão.
Segundo Vladimir Brega Filho, não é possível que um desses direitos seja totalmente suprimido, pois, caso isso ocorra, a norma constitucional será violada, devendo, nesse caso, prevalecer a interpretação que preserve ambos os direitos, de forma que, se a coisa julgada for considerada direito fundamental absoluto, conseqüentemente, será extinto por completo o direito ao respeito e à convivência familiar do investigante, tendo em vista que o mesmo jamais poderá saber quem é o seu pai e exercer os direitos que tal conhecimento vincula, de sorte que, caso seja possibilitada a reabertura da discussão da paternidade, será preservado o direito do investigante e será denegrido o princípio constitucional da coisa julgada.
Diante disso, podemos concluir que o instituto da ponderação de interesses é o meio mais prudente para se buscar a resolução da questão da relativização da coisa julgada na investigação de paternidade, cabendo ao magistrado, quando realizar o julgamento da lide, resolver a questão da maneira menos gravosa possível, baseando-se, para tanto, nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Os entendimentos existentes contra a relativização da coisa julgada
Há quem entenda que, mesmo com o surgimento do exame de DNA, não é possível o reexame da investigação de paternidade transitada em julgado, tendo em vista que deve ser respeitada a estabilidade jurídica trazida pela coisa julgada, devendo, para tanto, ser observado o artigo 5º, XXXVI, da Constituição da República Federativa do Brasil e o artigo 471 do Código de Processo Civil.
Nesse sentido já se pronunciou a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgando no sentido de que a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, não tem o condão de reabrir a investigatória de paternidade em razão de o julgado estar coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada.

Os entendimentos existentes a favor da relativização da coisa julgada
Entretanto, deve ser ressaltado que se encontra crescente no nosso Direito o entendimento no sentido contrário ao exposto acima, em que se defende a possibilidade da reabertura da questão da paternidade com fundamento no exame de DNA inexistente à época do fato.
Para Marcela de Jesus Boldori Fernandes, o entendimento que nega a possibilidade de se rediscutir a questão da paternidade, com fundamento na realização do exame de DNA, viola os princípios constitucionais da filiação e da dignidade humana, acarretando no abandono da verdade real em prol da manutenção do formalismo e do legalismo, não se lembrando o valor da Justiça que fundamenta a função jurisdicional do Estado, atingindo, portanto, a liberdade que se trata de valor supremo de um Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido julgou a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, entendendo que a coisa julgada nas ações de estado, como na ação de investigação de paternidade, deve ser mitigada, pois não se pode esquecer que, em uma sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança jurídica, em razão de que sem Justiça não há liberdade. Portanto, a mitigação fica estritamente vinculada à substituição da verdade ficta pela verdade real, trazida pela realização do exame genético do DNA.
Expostos esses entendimentos, deve ser destacado que, apesar de ser favorável à relativização da coisa julgada na ação de investigação de paternidade, Vladimir Brega Filho leciona que a sua ocorrência só é cabível nas situações em que não ficou comprovado que o investigado era o pai do investigante. Nesse passo, não haverá assim motivo para impedir a reabertura da investigação da paternidade em razão de que a situação muda de contexto quando a decisão conclui de forma absoluta a paternidade, sendo, diante disso, inviável a rediscussão da questão, pois não há qualquer colisão de direitos em razão de já existir prova incontestável que confirme a decisão judicial proferida.
Outra ressalva que é feita por Vladimir Brega Filho é que não será possível a reabertura da discussão da paternidade nas situações em que se tenha reconhecido a paternidade, porque tal ato após o devido processo legal, além de não violar o direito fundamental do investigado, não ofende o princípio da dignidade da pessoa humana.
Dada a importância do tema, a questão foi um dos temas do II Encontro de Direito de Família realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), no dia 22/02/2006. Neste evento, a questão da relativização da coisa julgada na filiação foi apresentada pelo Ministro Castro Filho, do Superior Tribunal de Justiça, que se pronunciou no sentido de ser favorável a dar uma maior maleabilidade em casos como o da investigação de paternidade, apesar de a coisa julgada ser uma garantia da segurança jurídica, pois está se chegando à conclusão de que em algumas questões, como as inerentes à paternidade, deve ser preservada a dignidade da pessoa humana, admitindo-se com as devidas cautelas a fragilização da coisa julgada.
Exemplificando o seu pronunciamento, o referido Ministro afirmou que o seu entendimento se aplica no caso da
ação de investigação de paternidade julgada improcedente por falta de prova em uma época em que não havia o exame genético do DNA, desde que o laboratório seja idôneo e
que sejam respeitadas as técnicas necessárias.
Todavia, vale ressaltar que a discussão da questão não ficou só no âmbito da jurisprudência e da doutrina, sendo apresentado, em 2001, pelo Senador Valmir Amaral, o Projeto de Lei nº 116, que pretendia incluir na Lei 8.560/1992, que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, um parágrafo único, no artigo 8º, estabelecendo que, na ação de investigação de paternidade, realizada sem a prova do pareamento cromossômico (DNA), não faz coisa julgada.
Apesar disso, o referido projeto de lei foi arquivado devido ao final da legislatura, tendo em vista que o art. 332 do Regimento Interno do Senado Federal dispõe que, ao final da legislatura, serão arquivadas todas as proposições em tramitação no Senado Federal, prejudicando a discussão do tema no âmbito do Poder Legislativo.

Conclusão
Ante o exposto, apesar de haver uma maior tendência no sentido de se dar uma maior proteção ao direito constitu-cional da filiação em detrimento da coisa julgada, verifica-se que a questão da relativização da coisa julgada na ação de investigação de paternidade ainda é muito debatida, de sorte que somente com o amadurecimento das discussões no âmbito dos tribunais sobre o tema é que se poderá esta-belecer como será resolvido definitivamente o conflito entre o princípio constitucional da coisa julgada e o princípio constitucional da filiação.
Contudo, deve ser ressaltado que, na sociedade de hoje, não se pode conceber que uma pessoa tenha negada a possibilidade de saber quem é o seu pai biológico, de conhecer a respeito de sua existência. Numa República como a nossa, que tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, conforme previsto no artigo 1º, III, da Constituição da nossa República, é imprescindível o respeito ao direito à filiação para que se garanta uma vida digna e justa, pois só assim se poderá preservar um dos principais meios de formação social de um indivíduo, que é a família.