Edição 293
Existe vida além do trabalho?
2 de janeiro de 2025
Daiana Gomes Almeida Juíza do Trabalho do TRT7 / Integrante do Conselho Fiscal da Anamatra
Nestes tempos contemporâneos, de jornadas exaustivas, existe vida além do trabalho? A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propõe o fim da escala 6×1 conseguiu fomentar essa discussão, em busca da resposta a essa questão crucial. Há 36 anos, a Constituição Federal chancela a escala 6×1, pelo artigo 7o, XIII e XV, que permite jornadas de até 44 horas semanais, em seis dias de trabalho com um dia de descanso, preferencialmente aos domingos.
Inspirada no Movim ento Vida Além do Trabalho (VAT), que já conquistou mais de 1,3 milhão de assinaturas na internet a favor do fim da escala 6×1, a deputada Erika Hilton (PSOL-SP) apresentou a PEC que propõe o fim da escala de seis dias de trabalho por um de folga no Brasil, sugerindo a redução da jornada de trabalho normal para oito horas diárias e 36 horas semanais e a redução da escala 6×1, para 4×3, sem diminuição salarial, com a alteração do XIII do artigo 7o do CF, para a seguinte redação: “Art.7 – XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana, facultada a compensação de horários e a redução de jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;” (NR)
Para começar a tramitar na Câmara dos Deputados, a proposta precisava de, no mínimo, 171 assinaturas. E, em 15 de novembro de 2024, já havia 231 assinaturas em apoio à pauta. Com isso, após vir a ser efetivamente protocolada pela deputada autora, que está a avaliar o melhor momento político para tal, a PEC será submetida à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e, depois, analisada e votada na Câmara e no Senado Federal. Para a aprovação, precisará de três quintos de votos favoráveis dos parlamentares, em ambas as Casas, em dois turnos de votação, entrando em vigor 360 dias após a data de sua publicação.
Pelo menos outras duas PEC tratam de redução de jornada no Congresso Nacional: a PEC 148/2015 e a PEC 221/2019. A primeira, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), propõe reduzir a jornada de 44 horas para 40 horas semanais no primeiro ano e, em seguida, ir-se reduzindo em uma hora por ano, até chegar a 36 horas semanais, o que levaria, portanto, cinco anos até a completa redução. A segunda, apresentada pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), visa reduzir a jornada de 44 para 36 horas semanais, em um prazo de 10 anos. Ambas estão na CCJ, aguardando a inclusão na pauta.
Embora proponham redução de jornada, nenhuma dessas PEC propõe formalmente acabar com a escala 6×1. A primeira a propor de forma expressa o fim dessa modalidade, para a adoção da escala 4×3, é a da deputada Erika Hilton (PSOL-SP) e, além disso, com prazo de implementação mais rápido, de um ano.
Em contraposição, o deputado federal Mauricio Marcon (Podemos-RS), vice-líder da oposição na Câmara, crítico da PEC contra a escala 6×1, apresentou proposta alternativa, baseada no modelo norte-americano, mediante a qual um empregado receberia por hora trabalhada, ficando a definição quanto à quantidade de horas da jornada semanal a cargo de negociação individual, entre empregado e empregador. O problema dessa proposta é que não garante a redução dos dias de trabalho e nem da jornada, que é a fonte central de adoecimento e desconexão de vida do trabalhador e de prejuízos na produtividade econômica, em decorrência de sua exaustão.
Cenário de jornadas e escalas no mundo – Segundo dados da OIT, a jornada de trabalho dos países das principais economias do mundo varia de 32 a 47 horas semanais, conforme dados aproximados na página 40.
Quanto às escalas, o modelo 6×1, que permite apenas uma folga semanal ao trabalhador após 44 horas semanais normais de trabalho, durante seis dias consecutivos, é o mais comum no Brasil, principalmente no segmento de comércio e serviços, embora excepcionalmente, haja outros, como indústria e administrativos, onde a ativação ininterrupta empresarial é menor, vigorando a escala 5×2, onde o trabalhador cumpre cinco dias de trabalho, com duas folgas semanais, totalizando 40 horas semanais normais. Isso, na teoria, porque na prática há grande realização de horas extras, tanto na escala 6×1, como na 5×2.
De todo modo, enquanto no Brasil a escala 6×1 é a regra e a 5×2 é exceção, em países como os Estados Unidos, Canadá, Austrália e em alguns países da União Europeia, a 5×2 já é a regra.
Quanto à escala 4×3, que corresponde a quatro dias de trabalho por três de folga, que vem sendo adotada, experimentalmente, em alguns países e em certos segmentos, a PEC propõe que o Brasil também siga esse alinhamento. De acordo com o Projeto 4 Day Week Global, essa escala foi utilizada por empresas dos seguintes países: Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, França, Alemanha, Islândia, Irlanda, Japão, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Escócia, África do Sul, Espanha, Suécia, Suíça, Reino Unido, EUA, Emirados Árabes Unidos, além do Brasil.
Em 2022, o Reino Unido foi um dos primeiros a testar oficialmente, com sucesso, a semana de quatro dias, em 61 indústrias diferentes, e os resultados foram tão satisfatórios, que 92% dessas empresas mantiveram o modelo após o fim do piloto, inclusive com 30% delas reportando aumento na produtividade.
Os testes no Brasil são mencionados na justificativa da PEC de Hilton. O programa piloto de implementação de jornada de quatro dias começou a ser realizado aqui no país em setembro de 2023, em 22 empresas, com até 250 colaboradores, pela Reconnect Happiness at Work em parceria com a 4 Day Week Global e a Boston College, apresentando redução do número de faltas dos empregados e aumento da produtividade.
Já a Bélgica merece destaque, pois foi o primeiro país da Europa a legislar sobre a semana de quatro dias. Na intenção de tornar a economia mais dinâmica e melhorar a compatibilidade entre família e trabalho, desde fevereiro de 2022, os belgas podem optar por distribuir a jornada semanal de quatro a cinco dias, sempre mantendo-se a mesma carga horária total. Como a jornada semanal clássica belga é de 38 horas, o empregado tem a opção de trabalhar 45 horas em uma semana e deduzir as sete horas adicionais na seguinte, laborando apenas 31 horas, sendo essa uma decisão do próprio trabalhador, que poderá renovar ou alterar o pedido a cada seis meses.
Sim, existe vida além do trabalho! – Como em toda transformação juslaboral, parece inevitável que as tensões entre o capital e o trabalho surjam, gerando retóricas conservadoras, refratárias e voltadas a interesses privados, desvinculados do valor social do trabalho e dos próprios ganhos econômicos que essas transformações podem trazer.
Sendo assim, é fato que, em certos segmentos empresariais, especialmente do comércio, indústria e transporte, tem-se argumentado que a redução da jornada poderia gerar diminuição da produtividade e, consequentemente, custos adicionais com novas contratações, inviabilizando pequenas empresas, que têm margens de lucro mais estreitas.
Outro receio seria o comprometimento da continuidade de serviços essenciais, que exigem operações ininterruptas, em 24/7, como hospitais, indústrias e logística.
Em primeiro lugar, desmistificando essa alegação de queda de produtividade, importa ressaltar a existência de falsa crença cultural de atrelar o quantum de produção ao número de horas trabalhadas em escalada linear crescente e diretamente proporcional ad infinitum, mas essa equação não se mantém necessariamente verdadeira e nem tampouco em uma constante de proporção direta ao longo do tempo.
Basta imaginar que, a partir de demasiado tempo de trabalho, o ser humano começa a entrar em exaustão física e mental e, por conseguinte, a curva de sua produtividade e qualidade do serviço, que estivesse em uma crescente, em proporção direta, inevitavelmente tenderia a cair, passando a se comportar de forma inversamente proporcional. Portanto, graficamente, a relação entre produtividade e tempo de trabalho não seria uma linha reta crescente e infinita, mais se assemelhando, na verdade, a uma parábola decrescente, que possui ponto ótimo de produtividade, ao atingir uma quantidade máxima de horas trabalhadas, dentro do humanamente suportável, mas que, depois desse ponto ótimo, começa a decrescer, mesmo diante de mais horas de trabalho, face ao esgotamento físico e mental do trabalhador, que pode até mesmo bugar completamente, chegando a zero em produtividade, em caso de fadiga, burnout e outros acidentes de trabalho e doenças ocupacionais.
Dentro dessa compreensão, o que a PEC de Hilton pretende é que se faça uma atualização legislativa, reconhecendo-se que, diante dos experimentos empresariais da jornada de quatro dias, bem como diante da conjuntura atual de avanços tecnológicos facilitadores da produção e da busca por desenvolvimento sustentável e pelo trabalho decente, o ponto ótimo de combinação entre produtividade e horas de trabalho, em perfeita ponderação entre valores econômicos e sociais, está atualmente situado na escala 4×3, e não mais na 6×1.
Ademais, há que se considerar que apenas um dia de repouso semanal, frente a seis dias de trabalho, muitas vezes elastecidos por horas extras, configura tempo livre ou de não trabalho tão ínfimo, que na prática acaba sendo também apropriado pelo capital em sua totalidade, já que as poucas horas de descanso dos trabalhadores só lhes permitem que se recuperem para trabalhar mais e mais na próxima e iminente jornada, não sobrando tempo de vida além do trabalho. Desse modo, o tempo vital do trabalhador submetido a escala 6×1 acaba sendo todo consumido em prol do capital, numa escala 7/7, composta de seis dias de tempo de trabalho e de um dia que deveria ser tempo de vida, mas na prática não passa de tempo para o trabalho.
Em segundo lugar, acredita-se que a PEC não esteja propondo a mera redução irresponsável e descompromissada de jornada e escala de trabalho, até porque a proposição sustenta que, com essa redução, a produtividade, ao contrário, aumentaria ou no mínimo se preservaria, dado que o maior descanso dos trabalhadores no tempo de não trabalho proporcionaria mais foco, motivação e eficiência no tempo de trabalho, com menos desídia, turnover, absenteísmo e menos afastamentos e adoecimentos.
Indubitável que todos esses ganhos terão o condão de compensar a adaptabilidade e a reinvenção empresarial frente à mudança no tempo de trabalho, inclusive em serviços essenciais, já que, com mais razão, é justamente nesses serviços ininterruptos que se necessita de corpo de trabalhadores dispostos e produtivos, e não de trabalhadores exaustos, explorados e sugados pela labuta extenuante.
A própria 4 Day Week Global, mencionada na justificativa da PEC, como uma das responsáveis pelo projeto piloto em 22 empresas no Brasil, tem proposto que se repense a jornada, de modo que o trabalhador otimize o tempo de trabalho, passando a aumentar sua produtividade por hora trabalhada, e vem demonstrando, com êxito, por meio de vários testes de jornada de 32 horas em quatro dias – tempo de trabalho até menor do que as 36 horas propostas pela PEC – que isso é factível.
Nos testes realizados, com menos tempo de trabalho, as empresas têm conseguido obter os mesmos resultados e diversos outros ganhos, com mais satisfação da classe trabalhadora, tanto que, mesmo após findos os testes, muitas delas continuam mantendo a jornada 4×3.
Cumpre destacar que, diferentemente de meramente reduzir a escala, negligenciando a produção e causando prejuízos ao empregador, a ideia exposada na justificativa da PEC parece ser, justamente, a de maximizar a produtividade por tempo de trabalho, mantendo a produção total que se obtinha antes na escala 6×1, para então reduzir essa escala para 4×3. Ou seja, ao ponto ótimo gerador de ganhos para todos, tanto para o capital quanto para o trabalho, mantendo, dessa forma, o equilíbrio econômico e social.
Tanto ressoa que assim seja, que a 4 Day Week Global adota o modelo 100-80-100™ nos testes da jornada de quatro dias, o qual foca na produtividade. Nesse sentido, a 4 Day Week Global explica que os desafios em saúde mental por conta de jornadas exaustivas estão custando muito mais caro para as empresas, sustentando, assim, que a jornada de quatro dias será uma revolução no mundo do trabalho.
“O piloto da jornada de 4 dias permite que, com menos tempo de trabalho, obtermos [sic] os mesmos resultados em produtividade e diversos outros ganhos. As empresas que fizeram a transição para uma semana de trabalho de 32 horas percebem aumentos na produtividade, maior atração e retenção de talentos, envolvimento mais profundo do cliente e melhor saúde, bem-estar e felicidade dos colaboradores. É um projeto com foco inicial no aumento de produtividade, mas que acaba resultando em ganhos para os indivíduos, suas famílias e para todos nós como sociedade. O modelo adotado é o 100-80-100™: 100% de pagamento do salário, trabalhando 80% do tempo e mantendo 100% da produtividade. É bom para a empresa, bom para os clientes e bom para os colaboradores. E no fim, bom para a sociedade, já que hoje temos grandes desafios em saúde mental. Segundo pesquisa da McKinsey com 15 mil funcionários de 15 países, 59% passaram ou estão passando por um desafio de saúde mental. A pesquisa aponta ainda que funcionários que estão enfrentando desafios na saúde mental têm uma chance quatro vezes maior de sair da empresa e duas vezes maior de estar desengajados no trabalho. Ou seja, os desafios da saúde mental estão impactando e custando muito para as organizações, além dos impactos na sociedade. A jornada de 4 dias será uma revolução no mundo do trabalho, possibilitando mudanças em nossa forma de atuarmos, de forma mais produtiva e mais saudável.”
Com efeito, do texto da PEC de Hilton, extrai-se que o diferencial não é meramente a redução da jornada trabalhada, como nas outras PECs, mas também a flexibilização da escala para a de 4×3, com a redução semanal do número de dias de trabalho para quatro e o aumento dos dias de não trabalho para três, promovendo não só saúde, bem-estar e maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional, mas também oferecendo às empresas a oportunidade de inovarem em suas práticas de gestão e potencializarem a produtividade, a criatividade, a satisfação dos empregados e o aumento de vagas de empregos.
O objetivo é fazer com que o trabalhador alcance a mesma ou maior produção, em menos tempo de labor, obtendo, assim, mais tempo de vida, com redução de estresse, fadiga, burnout, depressão, distúrbios do sono e outras doenças e acidentes do trabalho e com melhora da saúde física e mental, aumento do tempo de lazer e com a família, em reforço à própria dignidade como pessoa humana, convertendo-se esses benefícios em maior motivação, mais eficiência e agilidade dos trabalhadores, também em prol de desempenho junto à empresa.
Na PEC, Hilton argumenta que a escala 6×1 ultrapassa limites razoáveis, prejudicando a saúde e as relações familiares dos trabalhadores, e que a proposta alinha as práticas trabalhistas do país a uma tendência global de flexibilização e humanização dos ambientes de trabalho e posiciona o Brasil na vanguarda das discussões sobre o futuro do trabalho, além de fundamentar-se nos princípios de justiça social e desenvolvimento sustentável, buscando equilíbrio entre as necessidades econômicas das empresas e o direito dos trabalhadores a uma vida digna e a condições de trabalho favoráveis.
Citando a economista Marilane Teixeira da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Hilton sustenta que a redução da jornada de trabalho sem redução dos salários promoverá o impulsionamento da economia brasileira e a redução de desigualdades, na medida em que o aumento do consumo demandará maior produção de serviços, resultando em mais contratações, garantindo mais postos de trabalhos e diminuindo o desemprego no país, vez que, com jornadas menores, quem trabalha vai ter mais tempo para lazer, estudos, vida pessoal, dentre outros, aproveitando melhor o tempo, inclusive para mais consumo, em favor da atividade econômica.
É claro que se faz necessária abertura de olhares, para antever impactos econômicos e formular dispositivos que regulem adequadamente as situações que demandem a continuidade de serviços essenciais ou tratamento peculiar para determinadas atividades, produtos e serviços.
Acredita-se, portanto, que a PEC já está abrindo caminho para a solução no geral, sem prejuízo que haja detalhamento da norma para tratar de casos específicos. O que não pode acontecer é abrir os olhos para os interesses meramente econômicos e fechá-los para os abalos sociais, vitais e existenciais que a exploração do trabalho tem ocasionado, sem buscar avanços e melhorias para todos.
Ademais, no dizer de Ribeiro e Teodoro – que desenvolveram a teoria do desvio indevido do tempo de vida do trabalhador – “estamos em uma sociedade do cansaço, que é, por via de consequência, uma sociedade da escassez temporal, na qual o trabalhador é coagido pelo capital tecnológico a transformar todo resquício de tempo livre em tempo de trabalho ou para o trabalho”. Sendo assim, o tempo – que é um recurso produtivo escasso, limitado e irrecuperável e que corresponde à duração da vida de cada trabalhador, ao longo do qual ele realiza todas as atividades, propósitos e escolhas existenciais – merece tutela e respeito contra seu desvio indevido, pois, além de corresponder a um bem econômico fundamental para o capital, também se configura como bem jurídico extrapatrimonial para o próprio ser humano.
Não é demais lembrar que: “afinal, se do ponto de vista do capital, tempo é dinheiro, do ponto de vista do trabalhador, muito além de dinheiro, tempo também é vida e dignidade. E vida e dignidade não se negociam. Essa conclusão fundamenta, por si só, a importância de se pensar em uma teoria do desvio indevido do tempo de vida do trabalhador, que permita ao Direito do Trabalho cumprir a sua função protetivo-retificadora e reagir a uma realidade inquestionável e recorrente de apropriação indevida do tempo, já escasso, que resta para além do trabalho.” (RIBEIRO, Teodoro, p.67)
Destarte, sendo o tempo de vida atributo integrante dos direitos da personalidade, mais precisamente o de ter uma existência digna, fundada no direito fundamental à vida (CF, artigo 5o, caput) e no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1o, III), pode-se concluir que, sim, existe vida além do trabalho, e ela deve ser vivida com plenitude.
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